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A ética foucaultiana como uma estética da existência

No documento Subjetivação e liberdade em Michel Foucault (páginas 119-122)

PARTE 2: A LIBERDADE, UM TEMA PROSPECTIVO EM FOUCAULT

6 ÉTICA, ESTÉTICA E GOVERNO DE SI

6.1 A ética foucaultiana como uma estética da existência

Em uma entrevista concedida a Dreyfus e Rabinow, Foucault diz:

Alguns dos principais princípios de nossa ética foram relacionados, num certo momento, a uma estética da existência [...]. Durante séculos, fomos convencidos de que entre nossa ética, nossa ética pessoal, nossa vida de todo dia e as grandes estruturas políticas, sociais e econômicas, havia relações analíticas, e que nós nada poderíamos mudar, por exemplo, da nossa vida sexual ou da nossa vida familiar sem arruinar a nossa economia, a nossa democracia, etc. Creio que devemos nos libertar desta ideia de um elo analítico ou necessário entre a ética e as outras estruturas sociais ou econômicas ou políticas.327

326FOUCAULT, 2010a, p. 290.

Libertar-nos desta ideia de um elo analítico ou necessário entre ética e estruturas sociais, políticas ou econômicas, isto só quer dizer que a ética, pessoal como se apresenta, cotidiana, da “vida de todo dia”, não deve estar sujeita, ou não deveríamos nós condicioná-la, a outros ditames que os da própria existência, da própria vida.

A “escolha da própria existência” é o que Foucault328 aponta como possibilidade ética concreta atualmente, dada uma certa mudança nas preocupações dos discursos filosófico, teórico e crítico, onde não mais, segundo ele, sugere-se às pessoas o que elas devam ser, fazer, crer ou pensar.

Esta sua constatação leva à criação de novas formas de vida que se instaurariam “por meio de nossas escolhas sexuais, éticas e políticas”, com vistas a não apenas nos defendermos, mas a “afirmarmo-nos enquanto força criativa”.329

A ética, o “tipo de relação que se deve ter consigo mesmo” e que “determina a maneira pela qual o indivíduo deve se constituir a si mesmo como o sujeito moral de suas próprias ações”330, esta ética, Foucault vai buscá-la na Antiguidade grega, onde a “vontade de ser um sujeito moral e a procura de uma ética da existência” eram principalmente “um esforço para afirmar a própria liberdade e dar a sua própria vida uma certa forma na qual se podia reconhecer e ser reconhecido por outros e onde a posteridade mesma poderia encontrar como exemplo”.331 Fazer da vida uma obra de arte pessoal, isso é o que estava no centro da experiência moral da Antiguidade, de acordo com nosso pensador.

O sujeito, para Foucault, constitui-se por meio de práticas de assujeitamento, “ou de uma maneira mais autônoma, através das práticas de liberação332, de liberdade, como na

328

FOUCAULT, 2010a, p. 290.

329FOUCAULT, 2004a, p. 260.

330FOUCAULT apud DREYFUS;RABINOW, 1995, p. 263. 331FOUCAULT, 2010a, p. 290.

332Perguntado sobre o tema da “liberação” como resultado do trabalho de si sobre si mesmo, Foucault diz:

“Sobre isso, eu seria um pouco mais prudente. Sempre desconfiei um pouco do tema geral da liberação uma vez que, se não o tratarmos com um certo número de precauções e dentro de certos limites, corre-se o risco de remeter à idéia de que existe uma natureza ou uma essência humana que, após um certo número de processos históricos, econômicos e sociais, foi mascarada, alienada ou aprisionada em mecanismos, e por mecanismos de repressão”. Ele prefere apostar antes no que chamou de “práticas de liberdade”, cujo problema ético as práticas ou processos de liberação não bastam para definir. “O problema ético da definição das práticas de liberdade é, para mim, muito mais importante do que o da afirmação, um pouco repetitiva, de que é preciso liberar a sexualidade ou o desejo”. O tema da liberação teria relação com os estados de dominação numa sociedade, quando as relações de poder são tornadas imóveis e fixas. Aí as práticas de liberdade não existiriam, já que estas só funcionariam em meio a relações móveis e reversíveis de poder. No limite, a liberação abriria um campo para novas relações de poder, que deveriam ser controladas por práticas de liberdade. Cf. Ibid., pp. 265-267. Na passagem que esta nota refere, Foucault associa liberação com liberdade. Vale diferenciar estes termos.

Antiguidade”333, não havendo sujeito soberano, fundador, forma universal que se possa encontrar em qualquer lugar.

Sua ética toma fôlego da prática de si epicúrea, uma busca de novas fontes e formas de prazeres, para além do meramente físico, pois, segundo ele, a “ideia de que o prazer físico provém sempre do prazer sexual e a ideia de que o prazer sexual é a base de todos os prazeres possíveis [...] é verdadeiramente algo de falso”.334 Na construção tradicional do prazer, constata-se que os prazeres físicos são sempre a bebida, a comida e o sexo, compreensão limitada dos corpos e dos prazeres. Para Foucault, o prazer nunca foi apontado pelos movimentos de liberação335, é do desejo que se fala sempre e nunca do prazer. Mas o prazer deve fazer parte de nossa cultura. “Devemos criar prazeres novos”, diz Foucault, “Então, pode ser que o desejo surja”.336

Em Foucault, a ética é estética quando aponta um estilo de vida como seu fundamento e não uma regra universalmente válida. Mesmo a relação do indivíduo consigo deve ser perpassado pelo jogo do si com o si, não havendo uma “identidade como uma regra ética universal”.337 As relações de identidade existentes para o indivíduo “devem ser antes relações de diferenciação, de criação, de inovação”, como na questão da sexualidade, onde “o problema não é descobrir em si a verdade sobre seu sexo, mas, para além disso, usar de sua sexualidade para chegar a uma multiplicidade de relações”, devendo nós “nos posicionar em relação à questão da identidade”, partindo do fato de que “somos seres únicos”.338

A questão foucaultiana é o critério do agir ético que no seu caso é mais estético do que ético na medida em que desmerece o tipo de conduta que se toma em favor da intensidade da prática. O prazer como objetivo do agir ético, o bem de si, o belo de si, e o outro que se relaciona ao si de modo decorrente. O outro é uma decorrência da maestria de si, não havendo como fazer passar a preocupação dos outros antes da preocupação de si; a preocupação de si é eticamente primeira, na medida em que a relação a si é ontologicamente primeira.

Desta forma, a ética de Foucault se diz a partir de uma estética da existência, estética esta que seria um modo de vida distinto das relações institucionalizadas, modo de vida partilhado por indivíduos de idade, estatuto e atividades sociais diferentes, podendo dar

333FOUCAULT, 2010a, p. 291. 334FOUCAULT, 2004a, p. 264.

335Entendamos estes movimentos a partir de lutas contra estados de dominação. 336

FOUCAULT, op. cit., p. 265.

337Ibid., p. 266. 338Ibid., p. 266.

lugar a uma cultura e a uma ética.339

Foucault pensa, afinal, numa estetização completa da vida: “não poderia a vida de todos se transformar numa obra de arte?”, pergunta.340 Para ele, devemos praticar o “princípio da obra de arte”, qual seja, aplicar os valores estéticos no si, na própria vida, na própria existência.

No documento Subjetivação e liberdade em Michel Foucault (páginas 119-122)