• Nenhum resultado encontrado

Método, prática, especificidade, verdade

PARTE 2: A LIBERDADE, UM TEMA PROSPECTIVO EM FOUCAULT

4 SE O HOMEM ESTÁ MORTO E A VERDADE É PERSPECTIVA, TUDO É

4.1 Método, prática, especificidade, verdade

Vejamos um momento em que nosso autor discute os liames de seu método para o estudo da “racionalização da prática governamental” em 1979.213 De acordo com ele, em um tal projeto uma certa “opção de método” se apresentaria na forma de uma

maneira explicita de deixar de lado como objeto primeiro, primitivo, dado, um certo número de noções, como, por exemplo, o soberano, a soberania, o povo, os súditos, o Estado, a sociedade civil – todos esses universais que a análise sociológica, assim como a análise histórica e a análise da filosofia politica, utiliza para explicar efetivamente a prática governamental.214

Foucault se propõe a fazer o inverso disso, que seja,

[…] partir dessa prática tal como ela se apresenta, mas ao mesmo tempo tal como ela é refletida e racionalizada, para ver, a partir daí, como pode efetivamente se constituir, um certo número de coisas, sobre o estatuto das quais será evidentemente necessário se interrogar, que são o Estado e a sociedade, o soberano e os súditos, etc. Em outras palavras, em vez de partir dos universais para deles deduzir fenômenos concretos, ou antes, em vez de partir dos universais como grade de inteligibilidade obrigatória para um certo número de práticas concretas, gostaria de partir dessas práticas concretas e, de certo modo, passar os universais pela grade dessas práticas.215

Para nosso autor, só se pode escrever uma tal história política ou sociológica se se admitir a priori certos bastiões teóricos, os universais da análise histórica, sociológica ou filosófica. Isso tornaria tais análises meras “provas dos nove” para tais operadores lógicos universais. Foucault pretende uma outra atividade analítica que consistiria, por exemplo, em supor que a loucura não existe e, daí, perguntar pela “história que podemos fazer desses diferentes acontecimentos, dessas diferentes práticas que, aparentemente, se pautam por esse suposto algo que é a loucura”.216

Supor a inexistência dos universais, para ver qual história “se pode fazer”, significaria destituir-se de todo um arsenal de conceitos e de teoremas pré-formatados que atravancariam o pensamento que tenta “pensar diferentemente do que se pensa”. Esse é o

213No curso intitulado “Nascimento da biopolítica” de 1979. Cf. FOUCAULT, 2008a. 214

Ibid., p. 4.

215Ibid., pp. 5. 216Ibid., pp. 5-6.

“clássico” procedimento genealógico de raiz nietzscheana na sua busca pela “coisa documentada, efetivamente constatável”, cujo objetivo seria “percorrer a imensa, longínqua e recôndita região da moral – da moral que realmente houve, que realmente se viveu – com novas perguntas, com novos olhos”.217

Ele não quer admitir a preexistência de algum conceito histórico, ele não quer ter que validar algum conceito prévio “utilizando como método crítico a história”, como se esta devesse unicamente se ater à provação de conceitos analíticos. Nada de “interrogar os universais”, mas assumir a sua inexistência para indagar que história se pode fazer a partir daí e sem ter de admitir que algo como o Estado, a sociedade, o soberano, os súditos, existisse a priori.

Na adoção da prática como via mestra de suas análises, Foucault toma partido pela crueza da análise beligerante da realidade social, beligerância esta que se assoma, não previamente, mas em meio ao processo de análise. O conceito acaba sendo aquilo que trai o humor inquiridor do filósofo desgarrado de sua senda pelo conceito exato, perfeito. Tal conhecimento, para este “tipo” de filósofo, consiste em uma armadilha que trai aquele que a ele se direciona, pois este saber, cuja operacionalidade se mediria pela consistência do arcabouço conceitual alcançado, revela-se vazio, oco, poroso, a porosidade mórbida daquilo que deixa passar tudo, que não consegue se diferenciar do meio em que se encontra. Diante disso, o conceito – os louros do atleta do saber – emerge enquanto sopro gelado que interpenetra os poros do conhecimento na sua vacuidade intersticial.

Podemos dizer que a “função intelectual” de Michel Foucault, para não dizermos “atitude filosófica”, estabelecera-se contra a universalidade das questões. Ele seria um “intelectual específico” oposto ao “intelectual universal”, aquele que tenta se fazer ouvir enquanto representante do universal. “Ser intelectual era um pouco ser a consciência de todos”, diz-nos Foucault em 1977, “o intelectual, pela sua escolha moral, teórica e política, quer ser portador desta universalidade, mas em sua forma consciente e elaborada”.218 Haveria então um novo modo de trabalhar-se a teoria e a prática que não no universal, no exemplar ou no “justo-e-verdadeiro-para-todos”.

Se a sua questão central, como defendemos no primeiro capítulo, sempre foi a formação da subjetividade ou as formas de subjetivação humana em sua relação com os esquemas ou jogos de verdade, então como uma técnica teórica que dispense o panteão

217NIETZSCHE, 1998, p. 13. 218FOUCAULT, 2005b, p. 8

conceitual e arregimente-se com as práticas concretas das sociedades, a ponto de fazer de tais práticas o “fio da balança” para toda teoria que se preste a servir de filtro para a análise social219, como uma técnica destas se apresentará?

Apresentar-se-á enquanto uma nova maneira de refletir, “não exatamente sobre aquilo que é verdadeiro e aquilo que é falso, mas sobre nossa relação com a verdade”. Isso será a filosofia para Foucault, um “movimento pelo qual, não sem esforços, hesitações, sonhos e ilusões, nos separamos daquilo que é adquirido como verdadeiro, e buscamos outras regras de jogo”.220

Para ele, mesmo a questão política consistiria na própria verdade. E o que é a verdade senão o “conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder”?221

O que é a verdade, afinal? É uma teia lógica na qual o indivíduo se encontra atado. A verdade não se fez carne no mundo, ela fora fabricada, obtida através de certos procedimentos. A verdade se revela no mundo como uma grande fabulação ainda não desmistificada. Ela só é enquanto está no mundo. Isto só quer dizer que ela é enquanto for relativa a alguma coisa ou a alguém. “O que é a verdade” implica nas demais questões como “quem diz a verdade”, “como se pode utilizar-se da verdade”.

Para Foucault, a verdade é deste mundo, “ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder”.222 A verdade, circularmente ligada a sistemas de poder, configura um regime da verdade, mais do que ideologia ou superestrutura, ela diz respeito à produção, repartição, circulação, funcionamento dos enunciados que se vinculam às formas de hegemonia social, econômica e cultural nas sociedades atuais. Sendo assim, o problema político essencial para o intelectual seria a construção de uma nova política da verdade, um novo regime político, econômico, institucional de produção da verdade. “Em suma, a questão política não é o erro, a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia; é a própria verdade”.223

219Já que, segundo Deleuze, apud FOUCAULT, 2005b, p. 70, “não existe mais representação, só existe ação:

ação de teoria, ação de prática em relações de revezamento ou em rede”.

220“La philosophie, qu'est-ce que c'est sinon une façon de réfléchir, non pas tellement sur ce qui est vrai et sur

ce qui est faux, mais sur notre rapport à la vérité? On se plaint parfois qu'il n'y ait pas de philosophie dominante en France. Tant mieux. Pas de philosophie souveraine, c'est vrai, mais une philosophie ou plutôt de la philosophie en activité. C'est de la philosophie que le mouvement par lequel, non sans efforts et tâtonnements et rêves et illusions, on se détache de ce qui est acquis pour vrai et qu'on cherche d'autres règles de jeu. […]”. FOUCAULT, 1994c, p. 110.

221

FOUCAULT, 2005b, p. 13.

222Ibid., p. 12. 223Ibid., p. 14.

Se assim tomamos a verdade, qualquer essencialidade nos será negada de fato. Eis o que nos faz, em reunindo tais apontamentos, concluir a respeito de uma liberdade “fundamental” em Michel Foucault, a liberdade decorrente da redução ou negação eidética

da verdade. Excluir os universais da pesquisa histórica, pensar a teoria em sua relação estrita

com a prática, fazer da especificidade a marca do “intelectual engajado” em vez de tomá-lo como um representante universal da vontade de todos, isto tudo aspectos de um apreço pela inobservância da verdade enquanto realidade captável e resgatável através da história, como realidade essencial obnubilada pela aparência ou corrupção das coisas.

A verdade para Foucault será, afinal, o discurso que se produz sobre o verdadeiro, excluindo-se de sua acepção qualquer dimensão salvífica, promessa de libertação final do sofrimento. Jogo da verdade, esquema, regime da verdade. A premissa aqui é a de que a causalidade social, política e cultural é sempre toda a “verdade” que se pode perseguir ou encontrar.