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Uma história nominalista

PARTE 2: A LIBERDADE, UM TEMA PROSPECTIVO EM FOUCAULT

4 SE O HOMEM ESTÁ MORTO E A VERDADE É PERSPECTIVA, TUDO É

4.3 Uma história nominalista

Sendo assim, aportamos numa primeira percepção, a de que não existindo o Homem, não se fazendo valer qualquer essencialidade trans-histórica codinomeada de “verdade”, não sendo pertinente “natureza humana” alguma para se fazer história, a que se aparentaria o horizonte do possível humano daí em diante?

Para alguns críticos, uma “relação não-livre com a Não-Liberdade”, uma “história da ascensão da Não-Liberdade”237, mas assim definida tendo em vista um noção de liberdade distinta daquela que se pode inferir do pensamento de Foucault.

Para buscar um entendimento de liberdade a partir de Foucault e de sua arqueologia, Rajchman comenta sobre a posição de nosso pensador frente à disciplina de história. Foucault teria uma compreensão nominalista, ou “antirrealista”, desta disciplina já que sustentou não existir uma ordem objetiva subjacente em tudo o que acontece, nem uma finalidade única para a qual tudo devesse tender.

[...] Ele escreve histórias de ‘pseudo-objetos’; usa a história para dissipar a espécie de rotina, a autoconfiança instituída que as pessoas alimentam a respeito da realidade de entidades tais como as desordens mentais, de que temem estar sofrendo,

235FOUCAULT, 2006b, p. 106. Chomsky, por sua vez, utiliza-se deste conceito para designar “uma massa de

esquematismos, de princípios organizadores inatos que guiam nosso comportamento social, intelectual e individual” (CHOMSKY apud FOUCAULT, 2006b, p. 89). Mas Foucault acredita que, afinal de contas, quando Chomsky fala de ciência ele pensa provavelmente na organização formal do conhecimento, enquanto ele próprio, Foucault, fala do próprio conhecimento, “do conteúdo dos diversos conhecimentos dispersos em uma sociedade particular, que impregna essa sociedade, e constitui o fundamento da educação, das teorias, das práticas etc”. Ibid., p. 106.

236Ibid., p. 106.

ou as necessidades sexuais internas que acreditam ter que descarregar. Ao questionarem essa realidade, as histórias de Foucault são nominalistas.238

Este “nominalismo” histórico de Foucault não nega a existência de liberdade na história, “mas que as lutas organizadas e deliberadas por alguma ‘vontade coletiva’ articulada por intelectuais sejam a única fonte dessa liberdade”.239

Para Rajchman, o nominalista vê a liberdade numa profunda e anônima contin- gência em seu presente, não como algo que a história deve realizar, diferentemente de um re- volucionário que a vê na promessa ou necessidade de um novo regime. Para este último, a li- berdade guia a história na direção de um estado “melhor”, para o primeiro, tende a dissolver o que se apresenta como necessário ou progressivo na história. Duas concepções contrastantes da história: “o nominalista não reconhece um movimento necessário ou periodizações totais da história, está interessado numa espécie de mudança que é anônima e não-deliberada.240

Rajchman aponta um certo “dilema meta-histórico” em Foucault que se expressaria na oposição entre, de um lado, uma profunda análise histórica detratora da função sujeito de um lado e, de outro, uma crítica útil para as lutas políticas, tendo em vista o que aparentemente exigiriam seus compromissos intelectuais. Sua meta-história é diferente do uso tecnocrático ou pragmático da história, assim como do uso marxista da história para a crítica ideológica ou para alguma alternativa socialista global. A análise de Foucault não acarreta qualquer solução ou alternativa, mas tende a tornar ainda mais problemáticas as propostas existentes de mudança. Isto por que, na arqueologia foucaultiana, a mudança de um sistema de possibilidades para um outro não pode ser o resultado de uma percepção consciente das dificuldades internas ou de alguma decisão ou ação coletiva. Portanto, não será produto de deliberação. Em âmbito arqueológico, os tipos de escolha deliberada são determinados. Por isso o dilema:

[...] mesmo que admitamos a descontinuidade e concordemos em que a mudança profunda ou arqueológica é não-necessária e não-deliberada, o que faremos quando confrontados com “profundas regularidades” em nossa situação corrente, às quais nos opomos? Não estamos reduzidos a resignar-nos a elas ou a depositar nossas esperanças em alguma mudança apocalíptica? Se ninguém mais está livre para produzir uma mudança profunda, então como estamos?241

[...] parece não existir qualquer modo satisfatório de inserir a história de Foucault,

238RAJCHMAN, 1987, pp. 47-48. 239

Ibid., p. 54.

240Ibid., p. 56. 241Ibid., p. 43.

nos esquemas tradicionais da esquerda, ou fazer suas previsões do futuro ajustarem- se às esperanças socialistas. Além disso, o seu método de análise histórica profunda coloca-o numa posição intelectual sem reforma ou revolução para recomendar. E, no entanto, ele estava intelectualmente propenso a ver sua obra como uma contribuição para as lutas políticas de esquerda! É a isso que chamo o dilema de Foucault.242

Rajchman sugere que Foucault resolveu este seu dilema adotando uma postura que o próprio Rajchman chama de “pós-revolucionária” e que se caracterizaria pela introdução de um novo vocabulário acerca de novos tipos de guerra e dominação política, uma nova dimensão da análise política e histórica distintos dos modelos derivados de uma análise “revolucionária”, mesmo em relação à função do intelectual na sociedade, o que, para nós que até aqui esboçamos um bom percurso intelectual de Foucault, será uma obviedade.

Para marcar esta distinção Rajchman aborda tal contraste de modo tripartido nos âmbitos filosófico, intelectual e histórico, da seguinte maneira: filosoficamente, a liberdade para o nominalista é uma profunda e anônima contingência sem finalidade última, enquanto para o revolucionário ela é uma promessa ou necessidade de um novo regime; intelectualmente, para o nominalista não existiria um intelectual revolucionário, pois ele não se vê como um representante de algum grupo, classe ou sociedade; e, historicamente, o nominalista não reconhece um movimento necessário ou periodizações totais da história e estaria interessado em uma mudança anônima e não-deliberada.

[...] o nominalista é anti-universalista e, portanto, mantém que não existe história universal para realizar uma sociedade completamente livre que um povo possa estar destinado a levar avante. Não há história universal, não há sociedade completamente livre e não há destino de um povo.243

Esse novo vocabulário se expressará como uma nova técnica de trabalho analítico – a genealogia – e com um novo objeto de estudos – o poder. Com a genealogia de raiz nietzscheana o problema epistemológico dos saberes se transforma, então, no problema político da liberdade, liberdade concebida como “revolta no seio de um conjunto de práticas”.244

242

RAJCHMAN, 1987, p. 46.

243Ibid., p. 56. 244Ibid., p. 101.

5 AINDA HÁ ESPAÇO PARA A LIBERDADE? POR ENTRE PODER E