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Da ação sobre a ação do outro à obediência generalizada

No documento Subjetivação e liberdade em Michel Foucault (páginas 101-103)

PARTE 2: A LIBERDADE, UM TEMA PROSPECTIVO EM FOUCAULT

5 AINDA HÁ ESPAÇO PARA A LIBERDADE? POR ENTRE PODER E

5.1 Da ação sobre a ação do outro à obediência generalizada

Para entendermos o movimento que vai do pastorado cristão ao Estado e, daí, à deflagração das lutas estratégicas contra a autoridade e suas pretensões subjetivantes, necessitaremos antes apontar uma certa especificidade do exercício de poder. Para Foucault, tal especificidade reside no fato de as formas de poder serem “um modo de ação de alguns sobre outros”, não existindo algo como o poder, mas apenas o poder como é exercido por “uns” sobre “outros”: “o poder só existe em ato”.259

Assim se definiria a relação de poder, como “um modo de ação que não age direta e imediatamente sobre os outros, mas sobre sua própria ação. Uma ação sobre a ação”.260 Segundo esta sua análise a relação de poder difere de uma relação de mera violência já que

256FOUCAULT apud DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 235. 257Ibid., p. 236.

258“Geralmente, pode-se dizer que existem três tipos de lutas: contra as formas de dominação (étnica, social e

religiosa); contra as formas de exploração que separam os indivíduos daquilo que eles produzem; ou contra aquilo que liga o indivíduo a si mesmo e o submete, deste modo, aos outros (lutas contra a sujeição, contra as formas de subjetivação e submissão). Acredito que na história podemos encontrar muitos exemplos destes três tipos de lutas sociais, isoladas umas das outras ou misturadas entre si. Porém, mesmo quando estão misturadas, uma delas, na maior parte do tempo, prevalece. [...]”. Ibid., 1995, p. 235.

"E, atualmente, a luta contra as formas de sujeição – contra a submissão da subjetividade – está se tornando cada vez mais importante, a despeito de as lutas contra as formas de dominação e exploração não terem desaparecido. Muito pelo contrário." Ibid., p. 236.

259Ibid., p. 242. 260Ibid., p. 242.

esta última agiria diretamente sobre um corpo, exigindo deste a passividade diante de sua investida. Diante da violência não há resistência alguma. Uma relação de poder, em contrapartida, exige um outro “inteiramente reconhecido e mantido até o fim como o sujeito de ação”, que opere “sobre o campo de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos”.261

Distinguindo-se da perspectiva que tenta pensar as relações de poder como mera violência aplicada sobre corpos passivos, Foucault denota uma outra visão onde o exercício do poder consistiria em “conduzir condutas”. Neste sentido, o poder é menos da ordem do afrontamento entre dois adversários do que da ordem do governo. Sendo assim, o modo de relação próprio ao poder não deveria ser buscado do lado da violência e da luta, ou do lado do contrato e da aliança voluntária, mas “do lado deste modo de ação singular – nem guerreiro nem jurídico – que é o governo”.262

Em função de tal busca, através deste modo de ação singular chamado de governo,

261FOUCAULT apud DREYFUS;RABINOW, 1995, p. 243.

262Ibid., p. 244. A partir daqui vemos uma inflexão nos “pressupostos teóricos” de nosso autor quanto ao

“motor” das estratégias de poder na civilização ocidental. Do poder como esquema beligerante, conflito, jogo de forças, Foucault passa a definir poder como ação sobre a ação do outro. Da política como continuação da guerra por outros meios, passará a pensá-la como recusa das formas impostas de subjetividade. Já não se trata, a partir desta inflexão em Foucault, de “destroçar a subjetividade”, decompondo o sujeito em um número infinito de “larvas-sujeito”, mas de sua transformação. A passagem de um esquema de pensamento a outro, do poder ao governo, decorreria da necessidade de resolução das aporias da teoria do poder. Cf. ORTEGA, Francisco. Amizade e estética da existência em Foucault. RJ: Edições Graal Ltda, 1999, p. 40. Ver também mais adiante, seção 5.4.

Esclarecedora é a percepção de Michel Senellart sobre o curso “Segurança, território, população” de Foucault: “[...] tudo acontece como se a hipótese do biopoder, para se tornar verdadeiramente operacional, exigisse ser situada num marco mais amplo. O anunciado estudo dos mecanismos pelos quais a espécie humana entrou, no século XVIII, numa estratégia geral de poder, apresentado como o esboço de uma ‘história das tecnologias de segurança’, cede a vez, já na quarta aula do curso de 1978, ao projeto de uma história da ‘governamentalidade’, desde os primeiros séculos da era cristã. Do mesmo modo, a análise das condições de formação da biopolítica, no segundo curso, logo se apaga em benefício da análise da governamentalidade liberal. Em ambos os casos, trata-se de lançar luz sobre as formas de experiência e de racionalidade a partir das quais se organizou, no Ocidente, o poder sobre a vida. Mas essa pesquisa tem por efeito, ao mesmo tempo, deslocar o centro de gravidade dos cursos, da questão do biopoder, para a do governo, a tal ponto que esta, finalmente, eclipsa quase inteiramente aquela. É tentador, portanto, à luz dos trabalhos posteriores de Foucault, ver nesses cursos o momento de uma virada radical, em que tomaria corpo a passagem à problemática do ‘governo de si e dos outros’. Rompendo com o discurso da ‘batalha’ utilizado desde o início dos anos 70, o conceito de ‘governo’ assinalaria o primeiro deslizamento, acentuado a partir de 1980, da analítica do poder à ética do sujeito.” FOUCAULT, 2008b, pp. 496-7, grifo nosso. À percepção de Michel Senellart sobre o momento de “virada radical” na teoria foucaultiana, segue-se a apercepção de Francisco Ortega acerca da nova definição foucaultiana de política enquanto recusa das formas impostas de subjetividade. Para Castro, 2009, dada a influência de Nietzsche no pensamento de Foucault, poder-se-ia crer na errônea conclusão de que sua posição acerca da questão do poder se reduz à “hipótese Nietzsche”. A questão da liberdade o conduziria a outra conclusão, que seja, a substituição da hipótese belicosa pela hipótese da condução da conduta. Ainda de acordo com Castro, 2009, p. 190, pode-se afirmar que o quadro geral das investigações de Foucault foram as práticas de governamentalidade que constituíram a subjetividade ocidental. Governo e governamentalidade seriam as noções centrais da obra de Foucault. Para a continuação desta discussão, cf. seção 5.4 deste trabalho.

Foucault fará a sua história disso que é o “governo do outro”. A ideia de uma governo dos homens é uma ideia cuja origem deve ser buscada primeiro no Oriente pré-cristão, depois no Oriente cristão propriamente dito, isto sob duas formas: sob a forma da ideia e da organização de um poder de tipo pastoral e sob a forma da direção de consciência ou direção das almas.263

No documento Subjetivação e liberdade em Michel Foucault (páginas 101-103)