• Nenhum resultado encontrado

3.3 Alimentando as diferenças

3.3.2 A ação de graças na ceia

O tempo ao redor da mesa foi essencial para a religião judaica no I século d.C. Além do estudo das Escrituras os rabis se empenharam nas prescrições sobre a mesa. Este último, um aspecto fundamental para diferenciar os judeus dos demais povos. Antes do seder propriamente dito e fora do ambiente litúrgico das sinagogas existiu o chavurah, uma reunião informal para o estudo da Torá782. Hoffman783 bem escreveu que “a oração à mesa era obviamente central na religião rabínica. O chavurah era o meio social no qual a oração à mesa era executada”. A princípio não existia nenhuma liturgia formal regendo a ceia, exceto a oração sobre os alimentos.

O ןוזמה תכרב ou “bênção sobre os alimentos” tem sua origem diretamente relacionada à

determinação de Dt 8.10 ao povo de Israel: “Comerás e te fartarás, bendizendo ao Senhor pela boa terra que te deu”. Desde então, todo israelita deveria oferecer ação de graças a Deus pelos alimentos. Essa ideia é reforçada no Livro dos Jubileus 22.1-10784, texto escrito

781 Next steps: placing this study of Jewish meals in the larger picture of meals in the Ancient World, Early Judaism, and Early Christianity. In: MARKS, S.; TAUSSIG, H. (Ed.). Meals in Early Judaism: Social Formation at the Table. New York: Palgrave Macmillan, 2014. p. 176. Cf. SMITH, D. E. From symposium to Eucharist: the banquet in the early Christian World. Minneapolis: Fortress, 2003.; SMITH, D. E.; TAUSSIG, H. Op. cit., 2012. 782 Cf. Mishnah, Berakhot, 3:4; 5:1; 6:5–6 cf. NEUSNER, J. The Mishnah: a new translation. New Haven: Yale University Press, 1988..

783 Passover Meal in Jewish Tradition. In: BRADSHAW, P. F.; HOFFMAN, L. A. (Ed.). Passover and Easter: origin and history to Modern times. Notre Dame, Indiana: Notre Dame Press, 1999. p. 11.

784 Jubileus 22.3-9: “E naqueles dias Ismael veio ver o pai dele, e eles dois vieram juntos, e Isaque ofereceu um sacrifício de holocausto [oferta queimada], e o apresentou no altar de seu pai, que ele [Abraão] havia construído em Hebrom. E ele ofertou uma oferta de agradecimento e fez uma festa de alegria diante de Ismael, seu irmão. E Rebeca fez bolos novos dos grãos novos, e os deu a Jacó, seu filho, para levá-los a Abraão, seu pai, dos primeiros frutos da terra, para que ele comesse e bem dissesse ao Criador de todas as coisas antes de morrer. E também Isaque enviou, pelas mãos de Jacó, a Abraão uma oferta de agradecimento [oferta pacífica], que ele pudesse comer e beber. E ele comeu e bebeu, e bem disse ao Deus Altíssimo, que criou o céu e a terra, que fez todas as coisas

aproximadamente 100 a.C. que apresenta sacrifícios, festa, pães novos feitos por Rebeca e as ações de graças de Isaque e de Abraão, pela bondade do Senhor em conceder-lhes inúmeros benefícios. Não existia uma estrutura padrão para o Birkhat Hamazon, o que tornava a oração muito espontânea, mas como apontou Enrico Mazza785, toda oração de gratidão diante dos alimentos deveria fazer com que os judeus recordassem a dádiva da terra concedida por Deus, o penhor da aliança ao deixarem o Egito.

Na narrativa dos evangelhos de Mateus 26:26-29, Marcos 14:22-25 e Lucas 22:19-20, Jesus se reuniu com os seus discípulos e, como era de costume, deu graças. Por ser pouco antes da páscoa, muito tem se questionado sobre as conexões deste jantar com a famosa festa judaica. Comer pão, beber vinho e dar graças são momentos que aparecem também no seder da páscoa apontado na Mishnah Pesahim 10786, por isso surgiu a seguinte questão: Teria Jesus participado

de um seder de páscoa antes de sua morte?787

O trabalho de Tabory sobre o seder Passover, que foi completado como um doutorado em 1977, assume que a Mishnah pode acuradamente ser usada para reconstruir o ritual da Páscoa tal como celebrada pelos judeus antes de 70 d.C. Tabory788, a partir de uma análise da m. Pesahim 10, desenhou a reconstrução do seder de Páscoa do período do Segundo Templo incluindo os quatro copos acompanhados de bendições, o comer do cordeiro pascal, a narrativa da história, o midrash sobre Deuteronômio, e o recitar do Hallel. Segundo Tabory789, o cordeiro, o matzah e as ervas amargas eram originalmente comidos antes da ceia. A mudança para a recitação da haggadah antes da ceia se desenvolve em paralelo ao symposium grego. Esta teoria, no entanto, é rebatida por S. Safrai e Z. Safrai790, pois eles não veem nenhuma correspondência com a descrição da ceia na Tosefta.

com gordura [em abundância] da terra, e as deu aos filhos dos homens para que eles pudessem comer e beber e bem dizer seu Criador. "E agora eu Te agradeço, meu Deus, porque Tu me fizeste ver este dia: Eis que eu tenho um cento e três escores e quinze anos, um homem velho e repleto de dias, e todos os meus dias me foram de paz. A espada do inimigo não me derrotou em tudo o que Tu deste a mim e a meus filhos todos os dias de minha vida até este dia. Meu Deus, que Tua misericórdia e Tua paz seja sobre teu servo, e sobre a descendência de seus filhos, que eles possam ser a Ti uma nação escolhida e uma herança de entre todas as nações da terra de agora e por todos os dias das gerações da terra, por todas as eras."

785 The Celebration of the Eucharist: The Origin of the Rite and the Development of Its Interpretation. Collegeville, Minn: Liturgical Press, 1999.

786 Cf. NEUSNER, J. The Mishnah: a new translation. New Haven: Yale University Press, 1988. 787 KLAWANS, J. Op. cit., pp. 24-33, 2001.

788 The Passover ritual theroughout the generations [Hebrew]. Tel Aviv: Habib-butz hameuchad, 1996. pp. 70-78. Apud KULP. J. The origins of the seder and haggadah. Currents in Biblical Research. 4.1, 2005, p. 114.

789 Towards a History of the Paschal Meal. In: BRADSHAW, P. F.; HOFFMAN, L. A. (Eds.). Passover and Easter: origins and history to Modern Times. Notre Dame: Univerity of Notre Dame Press, 1999. pp. 62-80. 790 Haggadah of the Sages [hebrew]. Jerusalém: Karta, 1998. p. 24. Apud KULP. J. Op. cit., 2005, p. 114.

Conforme destacou Kulp791, as teses de Tabory, bem como a perspectiva adotada por L. Hoffman792, perderam espaço nos últimos anos, pois é difícil aceitar que a mishnah corresponda diretamente a práticas do Segundo Templo. Neusner793 e Boyarin794 também veem com ceticismo a possibilidade de usar textos tanaiticos e muito menos os amoraicos para reconstruir a história do Segundo Templo. É extremamente difícil separar extratos mais antigos dos mais recentes no texto da Mishnah. Como destaca Kulp795, a tendência atual é reconhecer que o seder e a haggadah estão mais relacionados ao desenvolvimento do movimento rabínico após a destruição do Templo em 70 d.C., o que teria aberto uma lacuna na religião judaica.

É claro que os symposia gregos e banquetes romanos tiveram efeitos sobre o modo como os judeus se achegavam à mesa, inclusive despertanto algum tipo de resistência à cultura externa796. Mas além disso, para Bokser797, por exemplo, as tradições judaicas foram adaptadas à necessidade pós-destruição do templo.

Os cristãos do I século, enquanto participantes de um grupo que nasce como movimento judaico, sofrem as mesmas influências, mas constrõem explicações distintas para a ausência do Templo. Por isso, para Justino, a impossibilidade do oferecimento de sacrifícios no templo é tomada como um sinal de Deus de que os sacrifícios materiais do povo não o agradavam. Deus se agrada, no entanto, do verdadeiro sacrifício que agora é oferecido entre as nações por aquele povo que agora é apontado como o “verdadeiro Israel”, a saber, aqueles que receberam a Cristo e que devotam àquele que o enviou “ações de graças”, ou seja, a eucaristia. A teologia apresentada pelo apologista não rompe com a tradição judaica em definitivo. Ela reivindica uma interpretação correta sob a inspiração divina que está ausente entre os mestres de Israel, reduzindo-os à cegueira e ao distanciamento do salvador, que agora é reconhecido como o “cordeiro pascal”. A interpretação alegórica de Justino atualiza os elementos da religião judaica a uma nova realidade e às condições de seu tempo e assim localiza os cristãos em um outro patamar, tanto diante dos judeus quando diante dos pagãos.

791 The origins of the seder and haggadah. Currents in Biblical Research. 4.1, 2005, p. 115.

792 The passover meal in Jewish traditon. In: BRADSHAW, P. F.; HOFFMAN, L. A. (Eds.). Passover and Easter: origins and history to Modern Times. Notre Dame: Univerity of Notre Dame Press, 1999. pp. 8-26.; cf. id. A symbol of salvation in the Passover seder. In: BRADSHAW, P. F.; HOFFMAN, L. A. (Eds.). Op. cit., 1999. pp. 109-131.

793 The Mishnah: a new tranlation. New Haven: Yale University Press, 1988.; Id. Introduction to Rabbinic Literature. New York: Doubleday, 1994.

794 Justin Martyr invents Judaism. Church History. 70, pp. 427-461.

795 The origins of the seder and haggadah. Currents in Biblical Research. 4.1, 2005, p. 116.

796 Isso fica claro na tese defendida por Dennis E. Smith em “Id. From Symposium to Eucharist: the banquet in the Early Christian World. Minneapolis: Fortress Press, 2003”.

4 A EUCARISTIA E OS VERDADEIROS CRISTÃOS

Com o intuito de deixar às claras o que os cristãos faziam em suas reuniões para minar as suspeitas despertadas pelos seus acusadores, Justino apresenta em seu discurso apologético uma preciosa descrição das celebrações da igreja no II século. Assim, é possível compreender como essa comunidade celebrava a eucaristia e a importância histórica do ritual. Com uma análise do seu Diálogo com Trifão, é possível ainda compreender como ele relaciona este ritual à herança judaica. Por fim a relação entre a eucaristia e o processo de construção identitária dos cristãos lança luz tanto sobre a história do cristianismo quanto, de forma mais geral, das dinâmicas culturais entre variados grupos dentro do Império Romano.

Após fazer referência ao “arremedo” dos demônios empenhados em promover na cultura grega a “imagem de Coré798 sobre a fonte das águas” (I Apol. 64.1-4), em imitação do “Espírito de Deus que paira sobre as águas”, segundo Gn 1,1-2, o apologista explica que também o passar pelas águas é o meio essencial de ser introduzido na assembleia dos cristãos.

Nós, porém, tomanos aquele que depois ter sido lavado, ter sido convencido e ter concordado conosco, e levamo-lo aos que se chamam “irmãos”, no lugar em que estão reunidos, a fim de elevar fervorosamente orações em comum por nós mesmos, por aquele que acaba de ser iluminado e por todos os outros espalhados pelo mundo inteiro, para que tendo conhecido a verdade nós possamos ser julgados dignos por nossas ações como homens de boa conduta e observantes do que nos mandaram, e assim consigamos a salvação eterna. Terminadas as orações, cumprimentamo-nos mutuamente com um beijo. Depois àquele que preside aos irmãos é oferecido pão e um copo com água e vinho; pegando-os, ele louva e glorifica ao Pai do universo através do nome de seu Filho e do Espírito Santo, e pronuncia uma longa ação de graças, por ter-nos concedido esses dons que dele provêm. Quando o presidente termina as orações e a ação de graças, todo o povo presente aclama, dizendo: “Amém”. Amém, em hebraico, significa “assim seja”. Depois que o presidente deu ação de graças e todo o povo aclamou, os que entre nós se chamam ministros ou diáconos dão a cada um dos presentes parte do pão, do vinho e da água sobre os quais se pronunciou a ação de graças e os levam aos ausentes. Este alimento se chama entre nós Eucaristia, da qual ninguém pode participar, a não ser que creia serem verdadeiros nossos ensinamentos e se lavou no banho que traz a remissão dos pecados e a regeneração e vive conforme o que Cristo nos ensinou. (I Apol. 65.1-4; 66.1)799

|

< >

798 Cf. Diodoro de Sicília. Biblioteca Histórica V,4 cf. OLDFATHER, C. H.; et. al. (Ed.). Diodorus of Sicily in Twelve Volumes. (Loeb classical library, 279, 303, 340, 375, 384, 399, 389, 422, 377, 390, 409, 423). Cambridge, Mass: Harvard Univ. Press, 1998-2001.

|

Segundo a descrição de Justino, para participar da reunião cristã, o iniciado é levado aos “irmãos” [ ] a fim de elevar orações em comum com os demais. Saúdam-se com um beijo e então o presidente recebe o pão e um copo com água e vinho. Após agradecer a Deus, os elementos são distribuídos pelos ministros e diáconos aos participantes. Justino se preocupa em deixar claro que não se trata de um alimento qualquer, mas da Eucaristia, da qual não se deve participar sem um compromisso verdadeiro com ensinamentos cristãos.

Esta é, sem dúvida, uma das passagens mais ricas sobre a eucaristia entre os escritos cristãos antigos. Ela descreve uma espécie de eucaristia pós-batismal e é capaz de revelar alguns aspectos da situação da igreja no II século que serão fundamentais para a compreensão dos problemas identitários em questão. Em primeiro lugar é preciso entender quem são os “irmãos” que se reúnem. Em seguida, quais eram os elementos da celebração? E por fim, o que a celebração representa para os cristãos e para o mundo ao redor?