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A representação dos judeus nos escritos de Justino

Trifão629, personagem que representa um judeu ilustre acompanhado de seus amigos, expõe aquelas que seriam as principais razões para a resistência dos judeus aos cristãos na concepção de Justino:

o que nos deixa sobretudo perplexos é o fato de que vós, que dizeis praticar a religião e vos considerais superiores à plebe pagã, em nada sois melhores que eles, nem viveis uma vida diferente dos pagãos. Não guardais as festas e sábados, nem praticais a circuncisão. Além disso, pondes vossas esperanças num homem crucificado, confiando receber de Deus algum bem sem guardar os mandamentos dele. Ou não leste que será exterminada da sua descendência toda pessoa que não for circuncidada no oitavo dia? E ele ordenou isso tanto para os estrangeiros como para os escravos comprados a preço de dinheiro630. Tendo desprezado a própria aliança, vós vos 628 O poder da diferença: o judaísmo como problema para as origens do cristianismo. In: FUNARI, P. P. A.; SILVA, M. A. O. (Org.). Política e identidade no Mundo Antigo. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2009. p. 131. 629 Eusébio considera Trifão “um dos lideres judeus daqueles dias (Hist. Ecles. IV.18.6), e é frequentemente suposto tê-lo identificado como famoso rabino Tarfon. Niels Hydhal (Tryphon and Tarphon. Studia Theologica, v. 10, n.2, 1956. pp. 77-88), no entanto, é contra esta identificação.

descuidais de suas consequências, e ainda procurais convencer-nos de que conheceis a Deus, quando não fazeis nada do que fazem os que temem a Deus (Diál. 10.2)631.

Assim se estabelece o ponto de partida para a construção da argumentação de Justino em defesa dos cristãos em sua obra Diálogo com Trifão. O apologista se empenhará em explicar a diferença entre os cristãos e os pagãos; o porquê de os cristãos não guardarem as festas e sábados e nem praticarem a circuncisão; os fundamentos da crença no Cristo crucificado; e, em síntese, como os cristãos cumprem a seu modo as Escrituras.

No diálogo com Trifão, Justino é quem tem o domínio constante da fala. Judith Lieu632 acredita que não se pode dizer que se trata de um “monólogo do vitorioso” como dizia Adolf von Harnack633, pois há diversas substâncias contra-argumentativas que fazem de Trifão algo mais do que um espantalho. Todavia, cabe ressaltar que a contra-argumentação do judeu também é metodologicamente pensada pelo autor para articular seus argumentos, fazendo dessa interação um artifício retórico que cumpre sua função discursiva. Tanto no Diálogo quanto nas Apologias, os argumentos de Justino são contraídos a partir de algumas correlações com a filosofia, da interpretação das Escrituras634 e da recepção de ensinamentos cristãos635. Por outro lado, atribui-se a incompreensão de judeus como Trifão a ensinamentos de falsos mestres e à baixa reflexão sobre os textos sagrados (Diál. 9.1636). Na perspectiva de Justino, é devido à incompreensão das profecias e das Escrituras em geral que os judeus se posicionam contra os cristãos (I Apol. 36.3637). Os judeus que acompanham Trifão são representados como

631 JUSTINO, Op. cit., 1995.

632 Image and reality. New York/ London: T&T Clark, 1996/2003. p. 126.

633 Mission and Expansion of Christianity in the first three century. Grand Rapids, MI: Christian Classics Ethereal Library, 2005.

634 I Apol. 31.1 “Entre os judeus, houve profetas de Deus, através dos quais o Espírito profético anunciou antecipadamente os acontecimentos futuros, e os reis, que segundo os tempos se sucederam entre os judeus, apropriando-se de tais profecias, guardaram-nas cuidadosamente tal como foram ditas e tal como os próprios profetas as consignaram em seus livros, escritos em sua própria língua hebraica” cf. JUSTINO, Op. cit., 1995. E segue uma série de profecias das Escrituras: I.45 – I.57.

635 É difícil dizer com precisão em que medida Justino foi devedor aos evangelhos sinópticos em sua obra. Alguns paralelos podem ser estabelecidos Mt 5:28; 6:1, 19–20 com I Apol. 15.1, 4, 11, 15, 17; Lc 12:48b com I Apol.17.4; Lc 10:19 com Diál. 76.6; Lc 23:46 com Diál. 105.5. Justino identifica as fontes das palavras de Jesus como “memórias dos apóstolos” (I Apol. 66.3; 67.3–4; Diál. 100.4; 101.3; 102.5; 103.6, 8; 104.1; 105.1, 5, 6; 106.1, 3, 4; 107.1], “evangelhos” (I Apol. 66.3) ou “memórias dos apóstolos e seus sucessores” (Diál. 103.8). Todavia algumas divergências em relação ao material canônico podem ser constatadas (Diál. 88.3; 106.1–2). Em muitos casos, Justino usa o que parece ser uma harmonização de Mateus, Marcos e Lucas [Compare, e.g., Mt 22:30 e Lc 20:35–36 com Diál. 81.4; Mt 13:3b–8; Mc 4:3–8; Lc 8:5–8 com Diál. 125.1). Devo toda essa parte a Susan Wendel (Scriptural interpretation and community self-definition in Luke-Acts and the writings of Justin Marty. Leiden/Boston: Brill, 2011. p. 4), que faz uma análise especial das correlações e discrepâncias entre Justino e Lucas-Atos.

636 “... não sabes o que estás dizendo, pois, seguindo mestres que não entendem as Escrituras, estás como que adivinhando e dizendo o que te vem à mente. ”

637 “Não entendendo isso, os judeus, que são aqueles que possuem os livros dos profetas, não só não reconheceram a Cristo já vindo, mas também odeiam a nós, que dizemos que ele de fato veio, e mostramos que, como fora profetizado, foi por eles crucificado.”

escarnecedores que não dão a devida atenção aos argumentos de um cristão (Diál. 8.3; 9,2638). Este desprezo pelo conhecimento divino é interpretado como uma ação de demônios malévolos, ao mesmo tempo em que se trata de algo sob o propósito divino639.

Justino faz distinção entre os “verdadeiros cristãos”, grupo do qual se considera parte e aqueles que o seriam apenas da boca para fora. Sobre esses que não viviam como Cristo teria ensinado, o filósofo orienta que “sejam declarados como não-cristãos”640, por mais que repitam com a língua os ensinamentos de Cristo. Para os pagãos, e até para Trifão, provavelmente não haveria distinção entre esses grupos. Seriam eles os marcionistas, valentinianos, basilidianos, saturnilianos, dentre outros nomes (Diál. 35,5-6) dos quais Justino procura se diferenciar641.

Embora Justino saiba muito bem que entre os judeus havia vários grupos religiosos, suas denúncias sobre as investidas dos judeus contra os cristãos são generalizantes. Na condição de um judeu esclarecido, nem mesmo Trifão diz acreditar nas calúnias proferidas a respeito dos cristãos (Diál. 10.1,2), mas isso não o livra de ser incluído na investida de Justino contra os judeus.

As outras nações não têm tanta culpa da iniquidade que se comete contra nós e contra Cristo como vós, que sois a causa do preconceito injusto que elas têm contra ele e contra nós, que viemos dele. Com efeito, depois de crucificar aquele que era o único homem irrepreensível e justo, por cujas feridas são curados os que se aproximam do Pai por meio dele, quando soubestes que havia ressuscitado e subido aos céus como as profecias haviam anunciado, não só não fizestes penitência de vossas más ações, mas escolhestes homens especiais de Jerusalém e os mandastes por todo o mundo, a fim de espalhar que havia aparecido uma ímpia seita de cristãos e espalharam as calúnias que todos aqueles que não só sois culpados de vossa própria iniquidade, mas também da iniquidade de todos os homens, e com razão Isaías clama: “Por vossa culpa o meu nome é blasfemado entre as nações”642 (Diál. 17.1ss)643.

638 “Então os companheiros de Trifão deram novamente uma gargalhada e começaram a gritar de forma mal- educada”.

639 São os demônios os responsáveis pela confusão e pelo engano que faz com que os cristãos sejam incompreendidos e perseguidos tanto por judeus quanto por romanos e demais povos (Cf. I Apol. 5.2; 44.12; 45.1; II.1.2; 12.5). Ao imperador o apologista escreve: “Vós, porém, não examinais nossos juízos, mas, movidos de paixão irracional e aguilhoados por demônios perversos, nos castigais sem nenhum processo e sem sentir remorso algum por isso.” (I Apol. 5.1). E sobre a submissão dos demônios aos propósitos de Deus: “Deus também adia pôr um fim à confusão e destruição do universo, por causa da semente dos cristãos, recém-espalhada pelo mundo, ... De fato, se assim não fosse, vós não teríeis poder para fazer nada daquilo que faz eis conosco, nem seríeis manejados pelos demônios” (II Apol. 7.1,2). Pois: “os demônios sempre se empenharam em tornar odiosos aqueles que, de algum modo, quiseram viver conforme o Verbo e fugir da maldade” (II Apol. 8.1). E ainda: “1Eu também, ao perceber que os malvados demônios tinham lançado um véu sobre os divinos ensinamentos de Cristo, a fim de afastar deles os outros homens, desprezei da mesma forma aqueles que propagavam tais calúnias como o véu dos demônios e a opinião do vulgo” (II Apol. 13.1). O conceito de “demômio” utilizado por Justino já recebe uma conotação maligna, cristianizada e, assim, diferente da ideia grega de daimon. Cf. POPE, M. The concept of the DAIMON in Justin’s Second Apology. Master of Arts’s dissertation. Departament of Classics. University of Kansas. 2000.

640 I Apol. 16.8.

641 Mais informações sobre os “verdadeiros cristãos” no próximo capítulo. 642 Is 52,5.

Os judeus são retratados como os responsáveis, segundo Justino, por espalharem calúnias contra Jesus, o Cristo. O que é entendido como um repúdio da parte dos judeus ao salvador, mas que na verdade poderia ser uma reação natural de pessoas que não aceitam as crenças de determinado grupo que surgiu.

De fato, segundo o Birkath ha-minin, a benção contra os heréticos, que de acordo com a tradição foi introduzida sob Gamaliel II (bBer. 28b-29a), os cristãos poderiam ser excluídos das sinagogas. Mas não há evidências de que havia uma conspiração sistêmica dos judeus contra os cristãos, nem que esta benção se referisse diretamente aos cristãos644. Ainda assim, não há nenhuma razão para se duvidar que o apelo cristão ao reconhecimento de Cristo por parte dos judeus pudesse despertar a resistência de muitos. Justino deixa claro que também deseja que os judeus se convertam:

Portanto, rogamos por vós e por todos os que nos atacam para que, convertendo-vos juntamente conosco, não blasfemeis Jesus Cristo que, por suas obras e milagres que ainda hoje se realizam em seu nome, pela excelência de sua doutrina e das profecias que a respeito deles foram feitas, não merece nenhuma reprovação ou acusação. Pelo contrário, crendo nele, possais salvar-vos em sua segunda vinda gloriosa e não sejais por ele condenados ao fogo. (Diál. 35.8)645

Mas ao apelo de Justino, Trifão responde: “estás dizendo muitas blasfêmias pretendendo nos convencer...” (Diál. 38.1). Esta também poderia ser a reação de muitos judeus às doutrinas cristãs.

As fronteiras entre judeus e cristãos não eram tão definidas em meados do século II646 e o Diálogo aponta para o fato de que tanto entre judeus quanto entre aqueles que poderiam ser chamados de “cristãos”, como Justino, essa relação é relativa. Ele, por sua parte, sustenta que seria possível algum judeu se salvar obedecendo à lei de Moisés e confessando a Cristo como seu salvador, desde que não pretendesse submeter os demais a observar a lei e a circuncisão (47.1). Todavia, deixa claro que “há pessoas que não se atrevem a dirigir-lhes a palavra, nem a oferecer seu lar a elas” (Diál. 47.2). E ainda que Justino tenha uma posição bem tolerante quanto aos “judeus-cristãos”, ele aponta que

não se salvarão, pois, ainda que sejam da descendência de Abraão, os que vivem segundo a lei, mas não creem em Cristo antes de morrer, e principalmente aqueles que 644 KIMELMAN, R. Birkat Ha-minim and the Lack of Evidence for an Anti-Christian Jewish Prayer in Late Antiquity. In: SANDERS, E. P.; BAUMGARTEN, A. I.; MENDELSON, A. (Ed.). Jewish and Christian Self- Definition. V. II: Aspects of Judaism in the graeco-roman period. Philadelphia: Fortress Press, 1981. pp. 226-244. 645 JUSTINO, Op. cit., 1995.

646 LIEU, J. The Parting of the Ways: Theological Construct or Historic Reality? Journal Studies of New Testament, 56, 1994, pp. 101-119. Republicado em Id. Neither Jew nor Greek: Construction of early Christianity. London/New York: T&T Clarck, 2002.; LIEU, J.; NORTH, J.; RAJAK, T. (Ed.). The Jews among Pagans and Christians in the Roman Empire. London/ New York: Routledge, 1992.; SANDERS, E. P.; BAUMGARTEN, A. I.; MENDELSON, A. (Ed.). Jewish and Christian Self-Definition. V. II: Aspects of Judaism in the graeco-roman period. Philadelphia: Fortress Press, 1981.; BENOÎT, S. Giudaismo e Cristianesimo: una storia antica. Bari: Laterza, 2005.

nas sinagogas anatematizaram e anatematizam os que creem nesse mesmo Cristo para alcançar a salvação e livrar-se do castigo do fogo (Diál. 47.4)647.

Seus escritos deixam clara sua consciência de que, assim como existiam vários grupos que se pretendiam cristãos e praticavam coisas odiosas, do mesmo modo existiam aqueles que sequer poderiam ser reconhecidos como judeus, embora assim se autodenominassem. Ele escreve:

ninguém considerará como judeus os saduceus e seitas semelhantes dos genistas, meristas, galileus, lelenianos, fariseus e batistas (não fiqueis incomodados ao ouvir o que penso), mas como pessoas que se chamam judeus e filhos de Abraão, porém que honram a Deus somente com os lábios, como ele próprio clama, enquanto o seu coração está muito longe dele (Diál 80,4)648.

Esta colocação demonstra um suporte para o seu argumento do que realmente é ser judeu. Ou seja, em sua leitura teologizada os judeus deveriam ser reconhecidos como um povo eleito de Deus que se mantém fiel àquele que o chamou, não apenas uma descendência biológica. O sinal de infidelidade a Deus passará a ser representado como a rejeição ao Messias enviado, ou seja, Jesus Cristo. Por isso, o apologista aponta a esses grupos como judeus apenas de nome. Por outro lado, ele sugere que existiam também aqueles que recebiam de bom grado a mensagem do evangelho, mas procuravam manter as tradições judaicas, bem como aqueles que “confessam Jesus como o Cristo, mas afirmam que ele é homem nascido de homem” (Diál. 48.4).

A base das divergências que ampliarão as distâncias entre judeus e cristãos está na interpretação das Escrituras, que ocasionará um filtro escatológico para interpretar o mundo de então.