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Considerações teórico-metodológicas

As Apologias e o Diálogo com Trifão, que constituem o principal objeto e fonte de investigação dessa pesquisa, apresentam algumas características comuns: em ambos os textos há uma adaptação de um gênero de escrita comum à filosofia e em ambos Justino demonstra apreço pela “filosofia divina”, a saber, as doutrinas cristãs; nas duas composições há uma forte recorrência a textos da Bíblia hebraica para justificar as crenças cristãs. Por outro lado, enquanto as Apologias dirigem expressamente seus argumentos às autoridades romanas que ocasionalmente condenavam os cristãos, o Diálogo apresenta uma reflexão com um sábio judeu, retratado como aquele que não pode superar os argumentos cristãos apresentados por Justino. Enquanto o primeiro escrito apresenta também contrastes e fronteiras entre os cristãos e a cultura comum aos povos do Império, o segundo alega uma raiz judaica de suas crenças, ainda que retratando uma superação escatológica manifestada historicamente no desenrolar dos séculos. Ambos os textos refletem o desafio cristão de se comunicar e interagir com o mundo do II século, mas ao retratar a eucaristia em duas perspectivas, Justino proporciona a oportunidade de se analisar como são construídos os jogos retórico-discursivos em torno da identidade cristã neste período segundo a delimitação estabelecida. Para compreender como será feita esta análise, é preciso estabelecer alguns parâmetros teórico-metodológicos.

Em um contexto de variadas correntes de ideias genericamente chamadas de cristãs, o pensamento de Justino não representa o cristianismo todo, mas é uma das formas de reivindicação afirmativa da própria identidade e a manifestação da própria imagem construída sobre si e sobre os outros. Esta posição é assumida dentro do contexto que passa a exigir dos sujeitos o estabelecimento de fronteiras identitárias. Jouette M Bassler194 apontou que “o processo de separação e fronteira desenhado defronte os oponentes internos e externos” destacando os “pensamentos e ações dos líderes dos grupos como eles elaboraram em situações

194 The problem of serf-definition: what self and whose definition. In: UDOH, E. (Ed.) Redefining First-Century Jewish and Christian Identities: Essays in Honor of Ed Parish Sanders.Notre Dame: University of Notre Dame, 2008.

polarizadas [...] uma visão de suas distintivas auto-definições do grupo. De modo geral as etiquetações entre judeus e cristãos são dadas de modo excludente.

Mas é preciso deixar claro o que se quer dizer por “identidade”. De modo bem prático, Richard Jenkins195 aponta que “identidade é a capacidade humana – enraizada na linguagem – de conhecer ‘quem é quem’ (e, portanto, ‘o que é o que’)”. O mesmo processo envolve conhecer “quem nós somos, conhecer quem são os outros, conhecendo eles quem nós somos, conhecemos nós quem eles pensam que somos, e assim por diante: uma multidimensional classificação ou mapeamento do mundo humano e nosso espaço nele, como indivíduos e como membros de coletividades”. As perspectivas coletivas e individuais sobre identidade têm em comum certas características, incluindo um reconhecimento do dinamismo, maleabilidade e multiplicidade das identidades, bem como a natureza situacional do desenvolvimento das identidades como compreendidas e expressadas em lugares e tempos particulares. Em outras palavras, as respostas às questões “quem somos nós?” ou “quem sou eu em relação ao grupo ou situação?” variam e mudam ao longo do tempo a despeito dos elementos de estabilidade. Identidades de grupos ou indivíduos são negociadas e renegociadas, expressadas e re-expressadas; elas não são estáticas196.

Identidades sociais e étnicas são construídas e reconfiguradas em relação tanto a definições internas quanto a categorizações externas. Externamente, outsiders categorizam e rotulam um grupo particular ou membros de um grupo. Esse processo externo de categorização pode variar de um alto nível de consenso com modos internos de definição (como quando uma categoria de um outsider sobrepõe significantemente com modos internos de autoverificação) a categorizações conflituais (como quando outsiders categorizam ou rotulam membros de outro grupo com estereótipos negativos). A natureza relacional das formulações de identidade e a mudança das fronteiras entre um grupo e outros significa que sempre essas categorizações negativas ou estereótipos de outsiders vêm desempenhar um papel na construção da identidade através do processo de internalização. Esse processo envolve a pessoa categorizada ou a reação do grupo em algum sentido a categorizações externas197.

Não é incomum a existência de hostilidades entre grupos e disputas por poder, influência ou visões legitimadoras de uma realidade ou circunstância, pois como escreveu o sociólogo,

195 Social Identity. London/New York: Routledge/Taylor & Francis Group, 2008. p. 5.

196 HARLAND, P. Dynamics of identity in the world of the Early Christians: associations, Judaeans, and cultural minorities. New York/London: T&T Clark, 2009.

197 JENKINS, R. Rethinking Ethnicity: Identity, Categorization and Power. Ethnic and Racial Studies. V. 17, v. 2. 1994

Robert Bellah198, “a religião é um dos mais importantes meios de definição de nossa identidade e de construção de fronteiras coletivas e pessoais”. E, em algum casos, os próprios “atos de formação de identidade” podem ser tomados eles mesmos como “atos de violência”199, que segregam grupos desautorizados, manipulam informações e produzem documentos sobre sua própria autoimagem200. Há, no entanto, um grande fluxo de trocas culturais neste processo.

Judith Lieu201 estabelece que

a retórica da identidade cristã, mesmo produzindo reivindicações universalistas, é articulada em termos usados também na formação identitária e etnográfica greco- romana. Como em muitas áreas, o cristianismo antigo necessita ser visto como implicado nas - assim como contribuindo para - dinâmicas do mundo no qual era situado. Devemos buscar por continuidades tanto quanto por descontinuidades entre os esforços de gregos, romanos, judeus e cristãos para construir e manter uma identidade para si mesmos, em interação com seus passados assim como com cada outro.

Isso significa que o cristianismo não deve ser analisado como em situação de isolamento, mas levando em conta seu ambiente, o vivido, as relações com o mundo de sua época. Desse modo, é inevitável que não apenas compartilhe os termos da articulação e formação identitária, mas também contribua com tais termos202. Conforme apontaram Vernon K. Robbins e David B. Gowler203:

Discurso é um fenômeno social... Nenhuma narrativa é criada em um vacum literário, cultural, social ou histórico, e nenhum discurso é criado ex nihilo. Narrativas do Novo Testamento [...] foram criadas e preservadas em conversação com seu ambiente cultural, e eles dividem, vigorosamente às vezes, neste discurso dialógico-social. Falantes não utilizam palavras antigas – “imaculadas” e diretas de um dicionário – mas aquelas palavras já existiam na boca de outros e assim já pertenciam parcialmente a outros – cada palavra prefere, portanto, contextos nos quais tem vivido sua vida socialmente carregada nos falantes de contextos pessoais, culturais, sociais e ideológicos anteriores. É a partir destes espaços que alguém pode tomar as palavras e tentar fazê-las algo próprio. O que, portanto, pode primeiro aparecer como enunciados “originais” são atualmente réplicas em um diálogo maior, incorporando, em diferentes sentidos, às palavras de outros [...]. Linguagem não é nunca um meio neutro que passa livre e facilmente a um novo e conceitual sistema; é um processo difícil, complexo e frequentemente conflitual [...] diferenciando participação de grupos na heteroglossia 198 Conclusion: Competing visions of the role of religion in American society. In: BELLAH, R. N.; GREENSPAHN, F. E. (Eds.). Uncivil Religion: Interreligious Hostility in America. New York: Crossroad, 1987. p. 220.

199 SCHWARTZ, R. The Curse of Cain: The Violent Legacy of Monotheism, 1997. p. 5.; Bart Ehrman mostra um pouco dessas disputas pela memória e pela identidade que se impõe sobre outros grupos em “Cristianismos perdidos: los credos proscritos del Nuevo Testamento” (Barcelona: Editora Critica, 2004).

200 O conjunto de escritos cristãos antigos podem ser encarados como espaço da memória escrita daqueles grupos. Mas como destacava Armando Petrucci (Prima lezione di paleografia. Roma/Bari: Laterza, 2002), “a memória escrita de uma determinada área sociocultural identificável é constituída do patrimônio completo de todos os testemunhos escritos, de qualquer idade, natureza e função, existente na área e no seu estabelecimento”. É preciso considerar ainda que “[...] a memória é um dos lugares da ideologia e, através da representação do passado que ela fornece, contribui a justificar o presente e a projetar o futuro em uma perspectiva social”.

201 Christian Identity in the Jewish and Greco-roman world. Oxford/New York: Oxford Press, 2004. pp. 20-21. 202 MENGESTU, A. God as Father in Paul: kinship language and identity formation in Early Christianity. Eugene, Oregon: Pickwick, 2013. p. 4.

203 Introduction. In: BORGEN, P.; et al. (Ed.) Recruitment, Conquest, and Conflict: Strategies in Judaism, Early Christianity, and Greco-Roman World. Atlanta: Scholars Press, 1998.

do mundo mediterrâneo antigo e orienta ativamente a si mesmo por meio desta heteroglossia; eles passam e ocupam a posição por si mesmos dentro, contra e de acordo com outros grupos e sua linguagem social [...]. Tal é a natureza do grupo; tal é a natureza das sociedades; tal é a natureza da linguagem.

Por isso, a análise dos textos de Justino deve levar em consideração as dinâmicas impostas historicamente na constituição dos sujeitos discursivos que participam da fluidez identitária dos grupos envolvidos. Isso implica considerar, como destacou David G. Horrell204, que a identidade dos primeiros cristãos pode ser adequadamente estudada e entendida apenas “como parte de um processo em andamento”, como algo que está continuamente em processo de produção, reprodução e transformação, e nunca chega ou alcança um ponto onde um pode dizer que o desenvolvimento “parou”. Segundo Ben F. Meyer205, a autocompreensão dos primeiros cristãos é um processo aprendido, pelo qual situações e eventos eram compelidos a ter repetida reflexão e reavaliação, afetando sua autocompreensão como um todo.

De acordo com Karina Korostelina206,

as características funcionalidades de um sistema identitários são a existência de mecanismos de competição entre identidades, que terminam na seleção de identidades mais estáveis, a ascensão de novas identidades, e a quebra do padrão de comportamento estabelecido. O mecanismo de desenvolvimento do sistema de identidade garante maior variedade possível de identidades iniciais; dentro deste contexto, elementos importantes e insignificantes são reavaliados e identidades irrelevantes são descartadas.

Como resultado, identidades desenvolvidas recentemente estão disponíveis para recolocações de vários elementos da identidade prévia sem mudar o cerne da identidade; ou podem as identidades recentes estabelecerem contradições com o cerne das identidades deixadas para mudar algo no cerne dos aspectos salientes da identidade207. Desse modo algumas estratégias de formação da identidade social aparecem, como a revitalização da história e do passado do grupo; a redefinição do valor e o significado atribuído a uma dada tradição; a adição de uma nova dimensão à história e tradição dos grupos; e a seleção de novos grupos externos208. Discursos polêmicos ou não-polêmicos podem ser usados pelos grupos na formação da identidade, enfatizando aspectos de “afinidades e estranhamento”209. O processo da formação

204 Becoming Christian: solidifying Christian Identity and Content. In: BLASI, A. J.; et al. (Ed.) Handbook of Early Christianity: social science approaches. Walnut Creek, CA: AltaMira, 2002. p. 331.

205 The Early Christians: their world Mission and Self-discovery. Wilmington, DE: Michael Glazier, 1986. 206 Social Identity and conflict: structures, dynamics, and implications. New York: Palgrave Macmillan, 2007. p. 115.

207 Ibde, p. 113-114.

208 HOGG, M. A.; ABRAMS, D. Social Identifications: a social psychology of intergroup relations and group processes. London: Routledge, 1988.

209 LINCOLN, B. Discourse and the construction of Society: comparative studies of myth, ritual, and classification. New York: Oxford University Press, 1989. pp. 9-10. Cf. NEWSOM, C. Constructin ‘we, you, and the others’ through non-polemical discurse. In: MARTÍNEZ, F. G.; et al. Defining Identities: we, you and the other in Dead Sea Scrolls: proceedings of the Fifth Meeting of the IOQS in Groningen. Leiden: Brill, 2008.

da identidade social é fomentado entre outras coisas por meio da linguagem escrita210. E ainda conforme apontou Werner Kelber211, oralidade e escrita foram ferramentas usadas tanto pela elite quanto pelos grupos marginalizados como “instrumento de formação da identidade, controle e dominação” na antiguidade. O que leva a considerar que “escrita, literatura, formação identitária e memória cultural constituíam a síndrome” que é usada para criar e legitimar identidades sociais, religiosas e políticas212.

Desse modo, para cumprir com os objetivos dessa pesquisa, os escritos de Justino devem ser submetidos à crítica interna e externa segundo o desenvolvimento de uma análise histórica213, associadas a outras fontes do período que permitam sua melhor compreensão. Atentando para os apontamentos de Mauro Pesce e Adriana Destro214, partir-se-á de uma análise histórico-cultural215 que aproxima a elaboração antropológica dos dados esmiuçados pelo método exegético, por meio da qual convém compreender o objeto básico desta análise dentro do sistema cultural em que foi produzido. Assim, é preciso também reconstruir historicamente o pano de fundo onde a produção do texto se insere. A análise desse processo deve contemplar o desenvolvimento sociocultural das relações entre autor e destinatários. O texto deve ser encarado como produto de uma atividade humana semelhante a todas as outras manifestações que caracterizam uma atitude cultural. Os escritos, no tocante à materialidade, são aqui compreendidos como a transcrição gráfica de pensamentos, enunciados, conceitos expressos em uma determinada língua. Em suma, são produtos culturalmente configurados. Da sua natureza faz parte o suporte material, sobre o qual vem impressa a escritura. Por isso também deve ser interpretado dentro da sua função particular, como um instrumento de comunicação como destinatários/leitores historicamente e culturalmente determinados. Assim, ao colocar a obra de Justino no centro dessa análise, busca-se delimitar um campo possível de investigação dentro do processo de expansão do cristianismo pelos territórios do Império Romano tendo em vista as interações culturais e várias formas de resistência e aceitação.

Em função do contexto em que se estabelece o problema em questão, faz-se oportuna uma análise sincrônica e diacrônica. O discurso de Justino carrega em sua estrutura uma oposição binária que estabelece por um lado: A) a caracterização denominada “falsa” dos

210 GUMPERZ, J. J. (Ed.). Language and Social Identity. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. p. 17. 211 Roman Imperialism and Early Christian Scribality. In: SUGIRTHARAJAH, R. S. (Ed.). Postcolonial Biblical Reader. Oxford: Blackwell, 2006. p. 97.

212 Ibid., p. 96.

213 TOPOLSKY, Jersy. Metodologia de la historia. Madrid: Ediciones Catedras, 1992. pp. 36-45. 214 Antropologia delle origini Cristiane. Roma/Bari: Edizione Laterza: 2008. p. xiii.

215 Trata-se de uma análise histórico-exegética, isto é, uma análise histórico-filológica elabora pelos procedimentos da antropologia cultural que se traduzem assim em uma análise histórico-cultural. Cf. DESTRO, A. Op. cit., 2002.

cristãos como grupo suspeito de conspiração contra o Império, que se reúne para a prática de imoralidades e para comerem carne humana (material e humano); e por outro B) a afirmação chamada “verdadeira”, apresentada por Justino, que caracteriza os cristãos como “colaboradores fiéis do Império”, que promovem reuniões para disseminação de ensinos que promovem a moralidade e que congrega os “verdadeiros cristãos”, que comem e bebem o corpo e sangue de Cristo (espiritual e divino). O deslocamento de A para B no discurso de Justino segue um viés teológico que parte das “trevas” lançadas pelos maus demônios que encobrem o real sentido das celebrações cristãs para a “luz” esclarecedora detida pelos cristãos. O apologista procura desvencilhar o seu grupo de qualquer relação com outros também chamados “cristãos”, como os seguidores de Simão, o Mago, e de Marcião, defendendo também, num jogo reverso, a originalidade da celebração cristã diante da não combatida celebração mitraica do cálice. Em um sentido mais amplo, a originalidade das ideias cristãs é sustentada tendo em vista a suposta “maior” antiguidade dos ensinamentos de “Moisés” em relação aos escritores gregos. Neste ínterim a congregação cristã que partilha do “pão e do vinho” é concebida como aquela que supera a incompreensão judaica sobre a escatologia messiânica que teria se concretizado em Jesus.

Conforme observou Marshall Sahlins216, “essas formulações presas a contextos são meramente representações contingentes do esquema cultural”. Sahlins sustenta que “é somente pela diacronia interna da estrutura que podemos compreender a “ambiguidade” de tais formas lógicas como a síntese, ou a determinação contextual de valores como uma determinada valorização de contextos”. Assim, esta investigação deve se incumbir tanto do desenvolvimento do conceito de “eucaristia” – e sua acepção de “banquete” – tal como é empregado por Justino, como também da comparação com as formas de banquete praticadas entre os não-cristãos.

A comparação tem se mostrado um importante instrumento para a pesquisa histórica, principalmente no que diz respeito à história cultural. Conforme destacou M. Detienne217, comparar exige “uma operação de desmantelamento lógico que torna possível discernir como dois ou três elementos interagem e escolher microconfigurações que revelam diferenças que acabam por ser cada vez mais inter-relacionadas de forma sutil”. Atentando, em certa medida, para este pressuposto, devem ser examinados paralelamente os elementos sígnicos da cultura greco-romana correspondentes às “refeições” ou banquetes em contraste às práticas executadas

216 Ilhas da História. Rio de Janeiro: Jorge Zarar Ed., 2003. p. 132.

nas reuniões cristãs. Segundo a perspectiva de Mary Douglas218, é preciso decifrar o código que envolve a refeição.

Tendo em vista que as tensões pontuais entre grupos cristãos e as autoridades locais de diversas regiões do Império no século II faziam circular rumores de que as reuniões dos membros da nova superstitio eram repletas de orgias e de um ritual antropofágico, deve-se compreender, conforme destacou Philip A. Harland219, a linguagem depreciativa das denúncias de “canibalismo” segundo suas referências dentro da cultura greco-romana. Nesse sentido, por meio de uma análise das semelhanças e dessemelhanças presentes entre as estruturas das interações que constituem o contexto referido dos cristãos do II século, deve-se compreender a relação estabelecida entre a eucaristia e aqueles que “restritivamente” devem ser chamados de “cristãos”.

Conforme destacou Adriana Destro, as estruturas culturais têm sempre dado prova de flexibilidade quanto às identidades individual e coletiva220. Isso também quer dizer que a dimensão identitária não é absoluta. A identidade religiosa é relativa, podendo se referir à experiência individual, à identidade oficial, a subgrupos ou a outros tipos. Dessa forma, esse tipo de identidade “não pode partir de simples sistemas de crenças consolidados na história”221. Como em toda esfera identitária, “se desenvolve sempre a partir da segmentação histórica, da agregação territorial e da substituição de poder”222. Assim, essa investigação deve partir de suas raízes exteriores, no entrelaçamento espaço-temporal. Atentando para o script dos lugares, deve-se notar a relação entre o culto e os rituais cristãos em seus espaços. Semelhantemente, é preciso questionar com quais materiais ou fatores culturais os atores construíram a própria identidade dentro de determinados ambientes223. Significa questionar sobre quais tipos de recursos e bens são colocados à disposição do indivíduo para que se construa a própria fisionomia religiosa. Neste sentido, também serão analisados os processos de seleção, repulsão e aquisição construídos junto ao outro que dão origem à identidade religiosa224. Portanto, ao se examinar a relação entre a eucaristia e a identidade dos cristãos segundo a perspectiva de Justino, levar-se-á em conta, conforme aponta Adriana Destro, que “no sistema religioso o ritual

218 Deciphering a Meal. Daedalus. V. 101, n. 1. Myth, Symbol, and Culture., pp. 61-81. Winter/1972. 219 Op. cit., 2009.

220 Op. cit., 2002. p. 141. 221 Ibid. p. 143.

222 Ibid. p. 147.

223 BARTHS, F. (Ed.) Ethnic groups and boundaries. The social organization of culture difference. Prospects Heights (Ill.): Waveland Press, 1998. p. 8. apud ibid. p. 152.

tem direta influência sobre o grupo que o vive e o retém essencialmente para a própria integridade, conservação e sobrevivência”225.

2 A RESISTÊNCIA PAGÃ AOS CRISTÃOS E O COMPLEXO SISTEMA DE INTER-RELAÇÕES CULTURAIS

A passagem de Atos dos Apóstolos (11.26) estabelece que “os discípulos foram chamados de cristãos pela primeira vez em Antioquia”, mas é preciso compreender o que ser chamado de cristão quer dizer. Trata-se na verdade de um processo que vai além da simples etiquetação de um nome.

O sentido do nome pode variar para quem o atribui e para quem o recebe. Conforme destacou Richard Jenkins226, “não apenas identificamos a nós mesmos na dialética interna- externa entre autoimagem e imagem-pública, mas identificamos aos outros e somos identificados por eles de volta”.

Justino se opunha às investidas contra os cristãos227 por não considerar válidas as justificativas apresentadas para as condenações dos fiéis. A confissão de “cristianismo” diante de uma autoridade acaba sendo ironizada por ele como uma condenação do nome “cristão”. Na II Apologia (1.1) ele afirma que ações desse tipo estavam ocorrendo por todo o Império. Algo