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A ação entre a guerra homérica e a polis pré-platônica

No documento A narrativa cativa (páginas 76-79)

2. História, compreensão e reconciliação com o mundo

2.5. A ação entre a guerra homérica e a polis pré-platônica

Entre o malogro do discurso de Telêmaco diante da assembleia de Ítaca e os discursos de Péricles ante os atenienses por ocasião da Guerra do Peloponeso, o que une, na perspectiva de Arendt, esses dois universos em face da ação e do discurso? Em outras palavras, o que a invenção da polis representa senão a evidente inversão da máxima de Clausevitz, de que “a guerra é a continuação da política por outros meios”? Vernant (1972, p. 42-3) observa que

[...] a guerra representa o estado normal na relação entre cidades. Tal presença, entretanto, natural e necessária, reveste também a forma de uma ausência, uma vez que a guerra não constitui mais, na vida social, um domínio à parte, com suas instituições e seus agentes especializados, seus valores, sua ideologia, sua religião própria, e sim confunde-se com a vida comum do grupo tal como se exprime nas estruturas do Estado. A guerra não é apenas submetida à cidade, ao serviço da política; ela é a própria política; e se identifica com a cidade porque o agente guerreiro coincide com o cidadão, manifesta-se como guerreiro ao mesmo tempo que é um agente político tendo poder de regular, com o mesmo direito, os negócios comuns do grupo.

Para Arendt, a polis não consistia em suas leis – como pensavam os romanos a partir do ato de fundação –, tampouco no espaço físico dos muros que a conformavam. Legisladores e arquitetos exerciam uma atividade de produção nos moldes da fabricação (poiésis), cuja natureza é pré-política, e não política como a ação (práxis). Suas atividades, portanto,

diferentemente das ações, sempre imprevisíveis, tinham um modelo e um fim pré- determinado:

Antes que os homens começassem a agir, era necessário assegurar um lugar definido e nele erguer uma estrutura dentro da qual pudessem ocorrer todas as ações subseqüentes; o espaço era o domínio público da polis e a estrutura era a sua lei; legislador e arquiteto pertenciam à mesma categoria (ARENDT, 2010a, p. 243).

Vista desse ângulo, a polis é um espaço de aparência onde não mais um guerreiro corre os riscos inerentes à ação, revelando sua excelência (arete) ante seus pares e aspirando com isso a imortalizar-se, mas onde um cidadão (que em certas circunstâncias torna-se um cidadão em armas) busca notabilizar-se no espaço público-político por meio da ação (práxis) e da palavra (lexis) para persuadir um público de cidadãos. Esse espírito agonístico – “o apaixonado impulso de alguém para exibir seu si-mesmo ao medir-se com os outros” (ARENDT, 2010a, p. 243) – confere à ação um caráter altamente individualista e marca profundamente o conceito de política nas cidades-Estado gregas.89 Assim, o ponto de contato entre o campo de batalha e a polis é que ambos conformam um espaço comum de aparência, espaço constituído entre os combatentes e os cidadãos, onde todos podem ver e ser vistos, atuar e proferir palavras:

[...] la acción solo es política cundo va acompañada de la palabra (lexis), en la medida en que esta última convierte en significativa la práxis. Y en este sentido, la palabra es entendida como una suerte de acción, como una vía para conferir sentido y durabilidad al mundo y para decir nuestra

responsabilidad con respecto a él. 90

Uma frase do velho Fênix, o educador de Aquiles, oferece um exemplo significativo da relação entre guerra e política. Num momento decisivo da batalha, ele recorda ao jovem guerreiro as razões de sua educação: “proferir palavras e realizar ações” (apud JAEGER, 2001, p. 30). Diferentemente do campo de batalha, entretanto, a polis – que “não era Atenas, e sim os atenienses” (SCHACHERMEYR apud ARENDT, 2010a, p. 243) – aparece “metafórica e teoricamente (e não historicamente, é claro)” como um substituto duradouro daquelas circunstâncias esporádicas da guerra, onde “as chances de um feito merecedor de fama ser lembrado”, isto é, “de que realmente se tornasse „imortal‟, não eram muito boas”

89 Acerca desse espírito agonístico, “o apaixonado impulso de alguém para exibir seu si-mesmo ao medir-se com

os outros” convém lembrar, a despeito de algumas interpretações em contrário, que Arendt jamais pretendeu fazer a apologia do mesmo. Para ela, ele representou a um só tempo o “incrível desenvolvimento do talento e do gênio em Atenas, bem como do rápido e não menos surpreendente declínio da cidade-Estado” (Cf. ARENDT, 2010a, p. 243, 246).

(ARENDT, 2010a, p. 246). Enquanto na guerra o reconhecimento da excelência do guerreiro se encontra na dependência do poeta e do historiador, a polis ergue-se, ela própria, como espaço permanente de memória, uma espécie de memória organizada de seus cidadãos, um âmbito público que surge entre os homens, menos, portanto, como obra de suas mãos e mais como uma virtualidade, que pode ou não surgir, dependendo de que os homens se reúnam em palavras e atos, em condição de igualdade e dispostos a constituir um mundo comum por meio de acordos e promessas. Correia (2010a, p. XXXI) sublinha que

Em um sentido bem fundamental, a razão de ser da política, para Arendt, é a redenção da mortalidade e da futilidade da existência humana mediante a edificação de um espaço durável para a liberdade, no qual a grandeza frágil e fugaz das palavras e feitos dos mortais se manifesta e encontra abrigo e louvor.

Arendt (2010a, p. 247-8) recorda que a polis, segundo a Oração fúnebre de Péricles que consta em Tucídides,

[...] fornecia uma garantia para os que haviam obrigado mares e terras a tornar-se o cenário da sua audácia de que não ficariam sem testemunho e não dependeriam do louvor de Homero nem de qualquer outro artista da palavra; [...] metafórica e teoricamente [...] é como se os que regressaram da guerra de Tróia desejassem tornar permanente o espaço da ação que havia surgido de seus feitos e sofrimentos, e impedir que esse espaço desaparecesse com a dispersão deles e o regresso de cada um a seus domicílios isolados.

Ora, e que nome se pode dar a esse “espaço de ação” permanente? Voltar à dimensão privada da vida significava, na perspectiva dos gregos, que se devia renunciar à liberdade, pois o espaço doméstico é o espaço da necessidade e, diante dela, ninguém pode ser livre. Esse aspecto público da liberdade no agir está longe de ser algo autoevidente a um olhar hodierno, acostumado a associar liberdade ao âmbito da privacidade ou mesmo a uma condição de se ver literalmente livre ante os assuntos público-políticos. Em resumo, o que aqui se pretendeu ressaltar é que tanto a poesia, quanto a história e a polis aparecem para Arendt como a resposta ao paradoxo grego da mortalidade. O exame contrastado da tríade natalidade-ação-imortalidade entre antigos e modernos, à maneira de uma polifonia em que passado e futuro dialogam, é que permitirá a Arendt complementar sua crítica à moderna concepção de história.

No documento A narrativa cativa (páginas 76-79)