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O direito à opinião (doxa)

No documento A narrativa cativa (páginas 47-51)

Para Arendt (2010a, p. 15), a política não nasce com o homem, nem pertence a uma suposta natureza humana, tampouco à zoe, mas relaciona-se à pluralidade dos homens que, ao agir, iniciam um bios politikos, “um modo de vida autônomo e autenticamente humano” por meio da ação e do discurso que a acompanha. A política surge, portanto, no espaço-entre os homens que se forma se e somente se eles decidem tomar em conjunto a tarefa de edificar um mundo comum por meio de ações, palavras, debates, acordos e promessas, mediante um espaço previamente construído (a polis, a república,55 o soviet, a comuna) para abarcá-la. Assim, quando Arendt diz que a política não é mais privilégio dos gentios e que a história do povo judeu já não é mais um livro fechado e caminha ligada às das demais nações, ela convida todos, mas especialmente a comunidade judaica, a sair do acosmismo, do

53 Na orelha do livro, pode-se ler o comentário de Eduardo Jardim de Moraes: “a maneira como esta biografia é

contada e a reconstituição da época em que Rahel Varnhagen viveu, tendo como único recurso os seus pensamentos – na verdade, a matéria exclusiva com que Hannah Arendt lida –, dá ao livro um tom desconcertante e um lugar destacado na literatura do gênero”.

54 “Rahel Varnhagen é uma biografia, mas certamente não de um tipo facilmente classificável. Não é tanto o que

afirma seu subtítulo – „A vida de uma judia‟ – quanto a vida de um pensamento pensado por uma judia” (YOUNG-BRUEHL, 1997, p. 92).

55“Assim, a língua dos romanos – talvez o povo mais político que conhecemos – empregava como sinônimas as

expressões „viver‟ e „estar entre os homens‟ (inter homines esse), ou „morrer‟ e „deixar de estar entre os homens‟ (inter homines esse desinere)” (ARENDT, 2010a, p. 9).

apoliticismo, e inserir-se nesse espaço-entre onde pode nascer a política. Se suas teses não ecoaram entre sionistas ou não-sionistas, isso não diminui o fato de que Arendt interveio naqueles debates dos anos 1940 procurando persuadir os demais sobre o conteúdo de seus argumentos, buscando o acordo de muitos. Arendt reivindica mais o direito à opinião do que propriamente o conteúdo estrito de uma opinião.

Ao recuperar a tradição oculta encarnada na figura do pária consciente, num gesto rebelde e que não se submete à unanimidade da opinião pública56 – tão característica do mundo moderno –, Arendt (2010a, p. 71) resgata projetos vencidos: “O mundo comum acaba quando é visto somente sob um aspecto e só se lhe permite apresentar-se em uma única perspectiva”. Em 5 de maio de 1948, por exemplo, poucos dias antes de Ben Gurion proclamar a criação do Estado de Israel, em 14 de maio, Arendt (2005b, p. 82) publica em Commentary o ensaio intitulado Salvar la patria judia: todavía se está a tiempo, a respeito das tensões entre árabes e judeus na Palestina:

Una opinión unánime es un fenómeno muy inquietante, característico de nuestra época moderna de cultura de masas. [...] pues la unanimidad de masas no es el resultado del acuerdo, sino una expresión de fanatismo e histeria. En contraste con el acuerdo, la unanimidad no se limita a ciertos objetos bien definidos, sino que se extiende como una infección por todos los asuntos que guardan entre si alguna relación.

Visou-se aqui sinalizar um traço do pensamento arendtiano: o modo como o mundo aparece à pluralidade dos homens é sempre distinto, e convém resguardar essa pluralidade de pontos de vista tanto quanto o direito à aparição pública: “A importância de ser visto e ouvido por outros provém do fato de que todos vêem e ouvem de ângulos diferentes. É esse o significado da vida pública.” (ARENDT, 2010a, p. 70).

As fontes que sustentam essa visão se assentam sobre uma tríade, tal como em um acorde musical, e, como tal, sofrem modulações. Ora a tônica do pensamento de Arendt se enraíza na tradição oculta do judaísmo, ora na tradição homérica/polis pré-platônica, ora na interpretação que ela dá à filosofia política (não escrita) de Kant. Até aqui, ressaltou-se a assunção da judeidade na figura do pária consciente e rebelde, bem como sua estreita relação com a natalidade e a pluralidade. Todo o conjunto, toda a reflexão de Arendt está remetida a um acontecimento histórico que, em suas palavras, “jamais poderia ter ocorrido”: Auschwitz.

56 Segundo o Dicionário de política, a “Opinião Pública não coincide com a verdade, precisamente por ser

opinião, por ser doxa e não episteme; mas, na medida em que se forma e fortalece no debate, expressa uma atitude racional, crítica e bem informada. A existência da Opinião Pública é um fenômeno da época moderna: pressupõe uma sociedade civil distinta do Estado, uma sociedade livre e articulada, onde existam centros que permitam a formação de opiniões.” (BOBBIO, 2009, p. 842).

Os capítulos a seguir devem soar como modulações dessa tríade. A insistência nesse ponto vista pretendeu destacar a judeidade como matriz política do pensamento arendtiano, uma vez que, ao longo dos anos 1950, a questão judaica perde espaço para outras temáticas da autora, reaparecendo por ocasião de sua cobertura do julgamento de Eichmann, em 1961, e na publicação de Eichmann em Jerusalém, em 1963.57 Apesar de adquirir outro colorido nos trabalhos dos anos 1950, a revelação do quem da ação deriva primeiramente da constatação de uma ausência, da interdição da ação, isto é, da aparição de um alguém sob as condições totalitárias.

Em A condição humana e, posteriormente, em Entre o passado e o futuro, há uma modulação da tônica de seu pensamento. O que lhe servirá de guia para reconsiderar as atividades da vida ativa (o trabalho, a obra/fabricação e, fundamentalmente, a ação) será um reposicionamento teórico das experiências da vida ativa no mundo homérico e na polis pré- platônica, e não mais na tradição oculta do judaísmo. Mas de onde brota o impulso que leva Arendt de volta ao círculo dos guerreiros homéricos e, depois, à polis grega e à república romana? Não creio que possa estar nas façanhas e nos sofrimentos de Aquiles, Ulisses, Heitor ou qualquer outro homem de ação imortalizado pela epopeia homérica. Tampouco nos discursos de Péricles ou de outro grande orador da Atenas clássica. O impulso está em Auschwitz.

Aos olhos de Arendt – e talvez em sua escuta –, Auschwitz representa o ocaso da tradição por significar o ocaso da ação (práxis) e da palavra (lexis) que a acompanha. O silêncio de Auschwitz é a impossibilidade da revelação de um quem. A experiência totalitária não significou apenas a interdição da resposta sou um judeu à pergunta quem é você?, em face da descartabilidade das vítimas, mas implicou também subverter todo e qualquer significado da morte como desfecho de uma vida de ação, de um bios politikos. Ainda que Arendt não soubesse quem ela era, até aqui foi possível saber que ela é uma mulher, apátrida, recém- chegada e judia. Ela sabe ler o grego e o latim e vai travar um diálogo com os mortos, não para que estes não enterrem a si mesmos, como diria Marx, mas porque

Estamos ameaçados de esquecimento, e um tal olvido – pondo inteiramente de parte os conteúdos que se poderiam perder – significaria que, humanamente falando, nos teríamos privado de uma dimensão, a dimensão de profundidade na existência humana. Pois memória e profundidade são o

57 Neste caso, entretanto, ainda que a pluralidade esteja presente na temática do livro – presença em negativo,

pois se trata da eliminação da pluralidade articulada com as deportações em massa engendradas por Eichmann – pode-se supor que a primazia aqui seja a possível relação entre a ausência de pensamento e a moralidade, o que permite indagar se o pensamento poderia evitar o mal.

mesmo ou antes, a profundidade não pode ser alcançada pelo homem a não ser através da recordação (ARENDT, 1992, p. 131).

No documento A narrativa cativa (páginas 47-51)