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A alienação do homem em face do mundo

No documento A narrativa cativa (páginas 85-89)

3. A história como um processo feito pelo homem

3.2. A alienação do homem em face do mundo

O que guia esse inventário de Arendt sobre as transformações na consciência histórica é a noção do fazer que emerge na consciência historiográfica moderna. O fazer remetido à natureza do processo de fabricação, que, como tal, tem início e fim determinados, ao contrário das ações humanas, que podem ter muitos inícios, mas nenhum fim: “O motivo pelo qual jamais podemos prever com certeza o resultado e o fim de qualquer ação é simplesmente que a ação não tem fim” (ARENDT, 2010a, p. 291). Vale insistir nesse ponto, em parte porque aqueles que estavam à frente dos regimes totalitários, na perspectiva de Arendt, efetivamente fabricaram uma realidade por meio da ideologia e do terror. Estavam convictos de que tudo era possível, conforme ela sublinhou tantas vezes. Como é o próprio evento totalitário que ilumina suas reflexões histórico-políticas, interessa a Arendt retraçar os elementos que o constituíram, subitamente cristalizados em formas fixas e definidas. Como sublinha no prólogo de A condição humana,

[...] o propósito final da análise histórica é o de rastrear até a sua origem a moderna alienação do mundo, em sua dupla fuga da Terra para o universo e do mundo para o si-mesmo [self], a fim de chegar a uma compreensão da natureza da sociedade, como esta se desenvolvera e se apresentava no instante em que foi suplantada pelo advento de uma era nova e ainda desconhecida (ARENDT, 2010a, p. 7).

Apenas após concluir o exame fenomenológico das faculdades humanas do trabalho, da fabricação e da ação é que Arendt se dedica, no capítulo final de A condição humana, a compreender a “moderna alienação do mundo”, examinada a partir desses processos de fuga distintos e complementares: a “fuga da Terra para o universo” e a fuga “do mundo para o si mesmo”. Essa dupla fuga assume aqui um interesse especial, pois nela é possível perceber que as transformações sofridas no interior da vida ativa também são o esteio para o desenvolvimento da moderna consciência historiográfica.

Arendt distingue mundo moderno de era moderna. O mundo moderno nasce com as primeiras explosões atômicas. Já a origem da era moderna relaciona-se a três eventos que lhe definem o caráter e repercutem no processo de alienação do homem que Arendt deseja rastrear e compreender: os Descobrimentos Marítimos, a Reforma Protestante e a invenção do telescópio por Galileu. Cada evento transforma de maneira distinta a condição humana na Terra e, tomados em conjunto, marcam a origem da moderna alienação do mundo.

Ambos os processos de fuga – o da Terra para o universo e o do mundo para o si mesmo – resultam numa clara transformação da capacidade humana de examinar e investigar

com rigor a realidade, de penetrar no segredo das coisas, pois alteram toda a tradição do pensamento no que diz respeito à relação entre o próximo e o distante, o sujeito e o mundo ao seu redor. Como nota Arendt (2010a, p. 312), aqueles que estavam à frente dos Descobrimentos “se fizeram ao mar para ampliar a Terra, não para reduzi-la a uma bola; e quando atenderam ao chamado distante, não tinham intenção alguma de abolir a distância”. Mas o fato é que o espaço e as distâncias, a partir de então e de modo contínuo, foram sendo abolidos, já que nenhum intervalo significativo de uma vida humana (semanas, meses ou até anos) é agora necessário para que um indivíduo se mova de um ponto a outro do planeta. Após séculos, os homens realmente tomaram posse daquilo que, aos primeiros aventureiros, parecia a um só tempo tentador e proibitivo. Hoje é possível conhecer os contornos do planeta como se conhecem as linhas da palma da mão.

Enfim, antes mesmo “que soubéssemos como contornar a Terra [...] já havíamos trazido o globo à nossa sala de estar, para tocá-lo com as mãos e girá-lo ante nossos olhos” (ARENDT, 2010a, p. 312). Arendt não se manifesta contra o fato de se ter o globo na sala de estar e poder tocá-lo e girá-lo. Reconhece que o conjunto de inventos da era moderna e seus desdobramentos realmente contribuíram para tornar próximo o que antes parecia distante. Mas convém ressaltar que o globo na sala (ou o Google Earth em nossos dias) é obra do homem, um artifício. Ao mirá-lo – e aqui pode estar a originalidade da análise de Arendt –, o homem vê menos um ponto qualquer e distante do planeta do que a si mesmo. A cena em si talvez resuma o primeiro processo de fuga a que Arendt se refere, uma vez que permite contemplarmos a Terra a partir de um ponto de vista imaginário no universo. Deixar a superfície terrestre significa “que qualquer diminuição de distância terrestre só pode ser conquistada ao preço de se colocar uma distância decisiva entre o homem e a Terra, de aliená- lo do seu ambiente terrestre imediato” (ARENDT, 2010a, p. 313).

O interesse de Arendt quanto aos desdobramentos da Reforma não se circunscreve à esfera religiosa, ainda que esteja a ela relacionado. Antes, remete à fuga do mundo para o si mesmo resultante das guerras religiosas que assolaram a Europa e devastaram cidades e do consequente processo de expropriação do campesinato como resultado imprevisto de outra expropriação: a das propriedades eclesiásticas.

Arendt argumenta que a moderna perda da fé religiosa – tema controverso que aqui se evitará – não fez com que os homens fossem arremessados de volta ao mundo, mas que se voltassem sobre si mesmos. Ela sublinha que a grandeza de Max Weber foi ter percebido que

a ética protestante97 resultava na glorificação de uma atividade absolutamente mundana como o trabalho, logo, em conformidade com o espírito do capitalismo. Aos poucos, a ética protestante foi moldando uma conduta ascética, para não dizer uma regra, preocupada principalmente com os aspectos espirituais, sem que isso implicasse qualquer cuidado com o mundo, mas, ao contrário, “uma atividade cuja motivação mais profunda é [...] a preocupação e o cuidado com o si mesmo” (ARENDT, 2010a, p. 316).

É nesse mesmo tom que Arendt compreende as transformações suscitadas pelo advento da ciência moderna, outra variante do processo de fuga do mundo para o si mesmo. A dúvida cartesiana abala profundamente a crença reveladora dos sentidos humanos, aquela paixão de ver que caracterizava a relação que os gregos estabeleciam com o mundo ao seu redor. Ora, essa admiração pelas coisas tais como são, ao longo de séculos, também fez com que os homens especulassem e mirassem o universo com os “olhos do espírito”, escutassem- no com os “ouvidos do coração” e se guiassem pela “luz interior da razão”, metáforas ancoradas na capacidade reveladora dos sentidos humanos para a apreensão da verdade das coisas. Porém, no alvorecer da época moderna e com o auxílio do telescópio, os homens voltaram “seus olhos corpóreos rumo ao universo” e aprenderam “que seus sentidos não eram adequados [...] [a esse universo], que sua experiência cotidiana [...] era uma constante fonte de erro e ilusão” (ARENDT, 1992, p. 85). Para os poetas antigos ou de acordo com as obras históricas de Heródoto e Tucídides, essa inadequação pareceria absurda, pois

[...] abro os meus olhos e contemplo a visão, escuto e ouço o som, movimento meu corpo e toco a tangibilidade do mundo. Se começamos a duvidar da fundamental veracidade e fidedignidade desse relacionamento, que evidentemente não exclui erros e ilusões, nenhuma das metáforas tradicionais para a verdade supra-sensível – seja os olhos do espírito que podem ver o céu das idéias ou a voz da consciência escutada pelo coração humano – poderá reter mais seu significado (ARENDT, 1992, p. 85).

Ora, quando Ulisses, na corte dos feácios, ouve do aedo Demódoco sua própria história, ele o louva – presenteia-o, inclusive, com uma bela posta de carne –, pois se diz surpreso com a maneira como Demódoco canta o infortúnio dos gregos, suas realizações e seus sofrimentos como se ele próprio tivesse visto ou escutado o relato de uma pluralidade de testemunhas. A onisciência da musa que soa por meio de Demódoco reforça não apenas o fato de que, simbolicamente, ela tudo vê e ouve: a musa representa a pluralidade de visões que permite “cantar os feitos dos troianos não menos que os dos aqueus, e louvar a glória de

97 Arendt não faz nenhuma distinção entre luteranismo e calvinismo, assim como não faz nenhuma alusão aos

conceitos de vocação ou predestinação, mas creio que eles estão implícitos no texto. Convém lembrar que o homem de espírito capitalista é calvinista e não luterano.

Heitor não menos que a grandeza de Aquiles” (ARENDT, 1992, p. 81). E é essa pluralidade, e não os sentidos em si mesmos, o que garante a realidade do mundo, assim como é ela a garantia da imparcialidade homérica, que se desdobra em Heródoto e mais sutilmente em Tucídides.

Tais imparcialidade e objetividade, que Arendt tanto sublinha como características da poesia e da historiografia antigas, podem ser atestadas neste comentário de Tucídides (1982, p. 28, grifos nossos):

Quanto aos fatos da guerra, considerei meu dever relatá-los, não como apurados através de algum informante casual nem como me parecia provável, mas somente após investigar cada detalhe com o maior rigor

possível, seja no caso de eventos dos quais eu mesmo participei, seja

naqueles a respeito dos quais obtive informações de terceiros. O empenho em apurar os fatos se constitui numa tarefa laboriosa, pois as testemunhas

oculares de vários eventos nem sempre faziam os mesmos relatos a respeito das mesmas coisas, mas variavam de acordo com suas simpatias por um lado ou pelo outro, ou de acordo com sua memória.

O que se depreende do comentário de Tucídides – e isso certamente o afasta de seu precursor Heródoto98 – é que a tarefa laboriosa a que ele se entregou com suas testemunhas, que relatavam “de acordo com suas simpatias por um lado ou pelo outro, ou de acordo com sua memória”, antes de representar um impedimento para a narrativa, assinalava a condição e o limite do empreendimento: relatar “com o maior rigor possível”. Daí Arendt (1992, p. 82) afirmar que os “discursos em que Tucídides articula as posições e interesses das partes em conflito são ainda um testemunho vivo do extraordinário grau de sua objetividade”. A objetividade de Tucídides, na perspectiva de Arendt (2010a, p. 70), assenta-se no fato de que apenas quando “as coisas podem ser vistas por muitas pessoas, em uma variedade de aspectos, sem mudar de identidade, [...] pode a realidade do mundo aparecer real e fidedignamente”.

A despeito da reconhecida maestria de Tucídides nesse processo de inquirição99 e na posterior montagem da trama da guerra, selecionando aquilo que lhe parecia mais afeito à verdade dos fatos, a condição mesma do procedimento que empregou era a de aceitar – parafraseando a crítica de Arendt ao cartesianismo – que aquilo que ele próprio testemunhara ou que suas testemunhas tinham visto ou ouvido de um terceiro, “evidentemente não exclui

98

Collingwood (1972, p. 59) observa: “Em Heródoto, temos uma tentativa de atingir um ponto de vista verdadeiramente histórico. Para ele, os acontecimentos são importantes em si mesmos e cognoscíveis por si mesmos. Mas já em Tucídides, os acontecimentos são importantes principalmente pela luz que lançam sobre entidades eternas e substanciais, das quais eles são meros acidentes. A corrente de pensamento histórico que fluía tão livremente em Heródoto começa a estancar”.

99 Conforme sublinha Romilly (1998, p. 15): “Tucídides relata fatos contemporâneos, sobre os quais lhe era fácil

erros e ilusões”. Ou, em outras palavras, que Heródoto, Tucídides e os gregos de forma geral “aprenderam a [...] olhar sobre o mesmo mundo do ponto de vista do outro, a ver o mesmo em aspectos bem diferentes e frequentemente opostos (ARENDT, 1992, p. 82).

Ocorre que as condições que possibilitaram o exercício da objetividade e da imparcialidade históricas já não se faziam presentes na era moderna. A imparcialidade homérica e a objetividade praticada por Tucídides guardavam um estreito vínculo com a experiência, com a realidade fenomênica do mundo e, fundamentalmente, com um sentido

comum compartilhado.100 O que se compartilhava eram alguns critérios (como os de louvor,

grandeza, fama, coragem) a partir dos quais se conferia caráter extraordinário a algum feito: “O louvor, do qual provinha a glória e eventualmente a fama eterna, somente poderia ser outorgado [...] às coisas que possuíssem uma qualidade emergente e luminosa que as distinguisse de todas as demais” (ARENDT, 1992, p. 77).

O problema é que, na era moderna, a objetividade apartou-se da experiência e do senso comum compartilhado, isto é, perdeu o contato com a realidade, tornando-se mera e estéril questão acadêmica que, ao tempo de Droysen, ele já denunciava como eunuca. Para Arendt (1992, p. 81):

O problema da objetividade científica, tal como foi colocado no século XIX, devia-se à auto-incompreensão histórica e à confusão filosófica em tão larga medida que se tornou difícil reconhecer o verdadeiro problema em jogo, o problema da imparcialidade, de fato decisivo não somente para a “Ciência” da História como para toda historiografia oriunda da poesia e do contar histórias.

No documento A narrativa cativa (páginas 85-89)