• Nenhum resultado encontrado

Conhecimento e compreensão: verdade e sentido

No documento A narrativa cativa (páginas 57-61)

2. História, compreensão e reconciliação com o mundo

2.2. Conhecimento e compreensão: verdade e sentido

Ainda em 1953, Arendt publica na Partisan Review o ensaio Compreensão e política, em que insiste na ruptura da tradição: “O problema da sabedoria do passado é que ela [...] morre em nossas mãos tão logo tentamos aplicá-la de forma honesta às experiências políticas centrais de nossos tempos” (ARENDT, 1993a, p. 41). E a experiência política central que a geração de Arendt viveu, o acontecimento extraordinário, é o fenômeno totalitário: “O próprio acontecimento requer compreensão, autoriza-a” (AMIEL, 1997, p. 49). Convém ressaltar que

As dificuldades da compreensão70 foi o título original que Arendt havia pensado para

Compreensão e política. Talvez ele expressasse melhor suas intenções, já que a possibilidade de se compreender um fenômeno como o totalitarismo é colocada sob suspeição: “Se é verdade [...] que estamos diante de algo que destruiu nossas categorias de pensamento e os padrões de nosso juízo, não será um caso perdido a tarefa de compreender? Como podemos medir o comprimento se não temos um metro?” (ARENDT, 1993a, p. 44).

O que o ensaio deixa entrever, mas o prefácio de 1951 não esclarece, é a distinção que Arendt começa a aplicar entre categorias fundamentais que aparecem em seus textos em pares contrastantes – conhecimento e compreensão, verdade e sentido, cognição e pensamento – e ecoam a distinção kantiana entre intelecto (verstand) e razão (vernunft), tema que abordará mais densamente em A vida do espírito:71 “O intelecto (Verstand) quer aprender o que é dado aos sentidos, mas a razão (Vernunft) quer compreender o seu sentido” (ARENDT, 1999, p. 68). Aqui, ainda que apontando para a mesma distinção, as categorias empregadas são outras:

Conhecimento e compreensão não são a mesma coisa, mas interligam-se. A compreensão baseia-se no conhecimento e o conhecimento não pode se dar sem que haja uma compreensão inarticulada, preliminar. [...] A compreensão

70 Na Biblioteca do Congresso Americano, onde se encontra boa parte dos manuscritos de Arendt, existem

diferentes versões desse ensaio. Jerome Kohn esclarece o teor de tais papéis no prefácio de Compreender:

formação, exílio e totalitarismo (ARENDT, 2008b, p. 16-7; ver também p. 356, 469-472).

71 Na seção 23 de A condição humana, intitulada A permanência do mundo e a obra de arte, Arendt também

aborda a questão. Em vez de utilizar razão, fala em pensamento, e, no lugar de intelecto, emprega cognição. O pensamento tem um fim em si mesmo, ao passo que a cognição “sempre persegue um fim definido” (ARENDT, 2010a, p. 213).

preliminar, que está na base de todo conhecimento, e a verdadeira compreensão, que o transcende, têm isso em comum: conferem significado

ao conhecimento (ARENDT, 1993a, p. 42, grifo nosso).

Se a compreensão confere significado ao conhecimento – fato que também a torna aparentada à faculdade do pensar e da imaginação –, o que sucedeu historicamente para que os homens deixassem de buscar o significado dos fenômenos e perdessem a capacidade de compreender? Ora, Arendt não se cansa de repetir que todo pensamento surge da experiência, mas entende que nenhuma experiência é capaz de adquirir significado se não se submete às operações da imaginação e do pensamento. A necessidade da razão não está guiada pela busca da verdade, mas pela busca do significado. Conforme ela sublinha: “Esperar que a verdade provenha do pensar significa que confundimos a necessidade de pensar com o impulso para conhecer” (ARENDT, 1999, p. 72). Birulés (2007, p. 203) percebe bem o alcance da distinção ao comentar:

Al distinguir el pensar del conocer, [Arendt] no trata de negar el conocimiento, sino que intenta separarlo del pensar y no exigir los mismos resultados ni aplicar los mismos criterios a estas dos faculdades, como lo ha hecho buena parte de la filosofia moderna y contemporánea cuando ha interpretado el significado según el modelo de la verdad.

A compreensão, diferentemente do conhecimento científico, também é “a maneira especificamente humana de estar vivo”, porque necessitamos entrar em acordo com o mundo “à medida que tentamos nos reconciliar com o que fazemos e com o que sofremos” (ARENDT, 1993a, p. 40), e isso significa que o único resultado que se pode esperar da compreensão é o sentido. O mundo não se torna humano apenas quando homens e mulheres decidem agir de forma livre e contingente, mas também, e especialmente, por debaterem o sentido que o mundo possa ter,72 por “imaginar [e comunicar] aquilo que realmente aconteceu” (ARENDT, 1991, p. 117). Arendt (1993a, p. 45) recorda uma passagem de Paul Valéry – para ela, “o espírito mais lúcido entre os franceses” e o primeiro a detectar a derrota “do senso comum no mundo moderno”. Nas palavras de Valéry, ocorrera “uma espécie de insolvência da imaginação e uma bancarrota da compreensão” (apud ARENDT, 1993a, p. 45). O declínio de ambas significa que, ao sermos privados de um mundo comum, vimo-nos igualmente privados de um senso comum, “aquela parcela de sabedoria herdada que todos têm em comum em qualquer civilização” (p. 45-6) e que nos permite compreender o sentido das coisas e nos reconciliar com um mundo em que o terror totalitário foi possível.

A Arendt interessa pensar as implicações advindas da perda do senso comum. Ela intui que o fenômeno totalitário possui uma lógica que repousa na engenhosa capacidade com que deturpa certas hipóteses científicas – “tal como a sobrevivência dos mais aptos, na biologia, ou a sobrevivência da classe mais progressista, na história” (p. 48) – numa premissa lógica, autoevidente, aplicável ao curso dos acontecimentos humanos. Ela avalia que,

[...] onde quer que o senso comum, o sentido político por excelência, deixe de atender nossa capacidade de compreensão, é muito provável que aceitemos a lógica como seu substituto, pois a capacidade de raciocínio lógico é também comum a todos nós (p. 48).

Ocorre que o senso comum e a lógica não se equivalem de forma alguma. O senso comum não pode, como pode a lógica, prescindir de um mundo comum. Ele representa aquela “fé natural no mundo tal como aparece, como a faculdade que nos permite inserir-nos e orientar-nos no mundo, fazer dele a nossa casa” (ROVIELLO, 1997, p. 123). Representa, ainda, aquela parcela de uma sabedoria herdada que agora se evadiu e, por fim, diz respeito também a um sentido comum (espécie de sexto sentido) que ajustava todos a uma mesma realidade fenomênica, a uma mesma experiência sensível que lhes permite olhar o mesmo a partir de sua singularidade.

Arendt sublinhará que os processos lógicos funcionam perfeitamente bem, a despeito de qualquer realidade. Eles podem “reivindicar uma confiabilidade totalmente independente do mundo e da existência de outras pessoas” (ARENDT, 1993a, p. 48) e, como tal, possuem o poder compulsório de persuadir. Os nazistas, afinal, não foram capazes de persuadir os alemães de que o mundo seria melhor sem a presença dos judeus? E o aparato stalinista não foi igualmente perspicaz em persuadir os soviéticos de que era necessário livrar-se das classes em extinção?

É contra esse tipo de operação lógico-causal que ela dirige sua crítica, apesar da chocante afirmação de que “a causalidade é [...] uma categoria totalmente estranha e falseadora no que diz respeito às ciências históricas” (ARENDT, 1993a, p. 49). De fato, ela nunca pretendeu negar a existência da causalidade, mas sim alertar contra os perigos de se entregar à lógica de um processo dedutivo do tipo causa-efeito que necessariamente deduz de uma premissa – a sobrevivência dos mais aptos (arianos) ou da classe mais progressiva (proletariado) – tal ou qual conclusão. O que Arendt parece acentuar, como nota Amiel (1997, p. 49-50), é que o “acontecimento ou a ação, como liberdade, formam descontinuidade e portanto não conhecem nenhuma causa no sentido estrito do termo.”

A compreensão é também o gesto de resistir a uma realidade inaudita, por nos faltarem os instrumentos ordinários para compreendê-la. No prefácio de 1951, Arendt (1989, p. 12) sublinha: “Compreender significa, em suma, encarar a realidade sem preconceitos e com atenção, e resistir a ela – qualquer que seja”. Ainda no mesmo prefácio, ela recorda o fato chocante de que fenômenos desprovidos de importância na política mundial, como a questão judaica e o anti-semitismo, acabaram se transformado em agentes catalisadores do movimento nazista, da Segunda Guerra e, por fim, das fábricas de extermínio. Mas apenas sugere, numa ligeira passagem, o vínculo que estabelecerá nos anos seguintes entre compreensão e sentido, quando diz acreditar na possibilidade de encarar a “irritante incompatibilidade entre o real poderio do homem moderno [...] e a sua incapacidade de viver no mundo que o seu poderio criou, e de lhe compreender o sentido” (p. 12, grifo nosso).

Em 1959, numa palestra proferida em Hamburgo, Arendt (1991, p. 33) sublinhou: “Nenhuma filosofia, nenhuma análise, nenhum aforismo, por muito profundos que sejam, podem comparar-se, na intensidade e na riqueza de sentidos, a uma história bem contada”. A singeleza do enunciado soaria muitíssimo bem caso estivesse onde mais se desejaria encontrá- lo: no prefácio de Origens do totalitarismo. Mas o fato é que não está lá, mas no ensaio sobre Lessing. Como leitora de Isak Dinesen (1885-1963), Arendt (1991, p. 117) aprendera que

[...] o mundo está cheio de histórias [...] que só estão a espera de ser contadas, e o motivo que geralmente ficam por contar é [...] a falta de imaginação – pois só se formos capazes de imaginar aquilo que realmente aconteceu, de o repetir imaginariamente, é que veremos as histórias, e só se tivermos a paciência de as contar e voltar a contar [...] é que conseguiremos contá-las bem.

Não faltou imaginação a Arendt em seu esforço de narrar uma história do totalitarismo. Ela não o fez com a pretensão de desfazer, tampouco dominar o passado. É provável que seu ânimo por narrar tenha brotado da possibilidade de se reconciliar com um mundo onde o totalitarismo foi possível. Há uma passagem no ensaio sobre Lessing que bem poderia se aplicar ao gesto arendtiano de compreender o totalitarismo:

Na medida em que é possível, o “domínio” do passado consiste em relatar o

que aconteceu; mas nem essa narração, que dá forma à história, tem o poder

de resolver os problemas e aliviar o sofrimento; não domina o que quer que seja de uma vez por todas. [...] É ao poeta, num sentido muito geral, e ao

narrador, num sentido muito particular, que incumbe a tarefa de pôr em movimento esse processo de narração e de nos implicar nele (ARENDT,

Ora, se é fato que, de tempos em tempos, os historiadores procuraram persuadir seus leitores de que aquilo que narravam era digno de ser narrado, Arendt poderia muito bem lhes fazer companhia. Com a diferença de que não pretende justificar nada, mas tão somente implicar e deixar que o leitor julgue por si mesmo.

Para ela, os recursos legados pela historiografia, desde que a História começou a se afastar da tradição da epopeia homérica, não bastam para se compreender e revelar a novidade totalitária, pois “essa tentativa de compreender o presente à luz do passado se mostrou infrutífera” (ARENDT, 2008b, p. 241). Convém lembrar que Heródoto, a um só tempo, segue e se afasta do caminho aberto por Homero; que Tucídides apropria-se de ambos, mas deles também se afasta. Enfim, se há um caráter cumulativo na tradição, ela também pode ser reinventada. Em outras palavras, a narrativa histórica, embora tenha atrás de si uma longa tradição, sempre admite a inovação. Como nota Arendt (1993a, p. 49),

Sempre que ocorre um evento grande o suficiente para iluminar seu próprio passado a história acontece. Só então o labirinto caótico dos acontecimentos passados emerge como uma estória que pode ser contada, porque tem um começo e um fim. O que o evento iluminador revela é um começo no passado que até então estivera oculto; aos olhos do historiador, o evento iluminador só pode aparecer como um final para esse recém-descoberto início.

Partindo do pressuposto de que a tradição – “o fio que nos guiou com segurança através dos vastos domínios do passado” (ARENDT, 1992, p. 130) – rompeu-se, como se estrutura a análise histórica arendtiana e por quais caminhos ela efetivamente rompe (e por quê) com o legado da moderna consciência historiográfica? Enfim, que papel Arendt reserva à história em seu pensamento político? Se a história (history) é o conjunto das muitas histórias (stories) e se a compreensão, tal como ela sublinha, “torna-se o outro lado da ação” (ARENDT, 1993a, p. 52), talvez convenha recuperar o sentido da ação na polifonia entre antigos e modernos. Primeiro os antigos. No capítulo seguinte, os modernos.

No documento A narrativa cativa (páginas 57-61)