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Algumas razões históricas consolidaram tais padrões legislati- vos: (1) o contexto da Guerra Fria, (2) as ideias, (3) a superioridade do poder político e estratégico norte-americano; (4) a superioridade industrial e comercial dos Estados Unidos; e (5) as instituições inter- nas. A relação desses fatores, alguns conjunturais e outros estruturais, criou um ambiente propício para a propagação do livre-comércio. A compreensão da Guerra Fria é de extrema importância para entender as instituições de comércio dos Estados Unidos. A estra- tégia política empregada durante todo o conflito, com especial des- taque para as décadas de 1950 e 1960, foi influenciada pela lógica da contenção,3 enraizada na doutrina Truman, que determinava a

política econômica, ainda que os custos econômicos fossem altos. “A verdadeira questão não é se podemos reduzir o nosso déficit, mas o quanto devemos reduzi-lo e como podemos fazer essa redu- ção sem sacrificar as políticas que são vitais para a consecução dos nossos objetivos nacionais”, dizia Gardner (1960, p.433). Em um artigo escrito por Raymond Vernon (1961) – um dos colaboradores na elaboração do Plano Marshall e formulador de estratégias para a reconstrução da infraestrutura e economia da Europa depois da Segunda Guerra Mundial, além de colaborador na formulação do FMI e do GATT – para a Foreign Affairs, essa ideia fica clara:

3 George Frost Kennan (1947), utilizando o cognome “Mr. X”, escreveu um artigo intitulado “The Sources of Soviet Conduct” em 1947 que fora de extrema importância para a compreensão da Guerra Fria. Segundo esse autor, existia um antagonismo profundo entre o capitalismo e o socialismo enraizado nas instituições soviéticas. “Isto tem implicações profundas na conduta Russa como membro da sociedade internacional. Significa que nunca poderá haver por parte de Moscou qualquer movimento de comunidade sincero entre a União Soviética e outras potências consideradas capitalistas. Em Moscou, deve ser assumido invariavelmente que os objetivos do mundo capitalista são antagônicos ao Regime Soviético, e consequentemente aos interesses das pessoas em seu território. Se o governo soviético assinar ocasionalmente algum documento que demonstre o contrário, este fato deve ser entendido como uma manobra tática para combater o inimigo capitalista (que não possui nenhuma honra) [...]”, conclui o autor (ibidem).

Primeiro, precisamos restabelecer de forma inequívoca o fato de que há uma direção clara na nossa política de longo prazo – um compromisso de longo prazo em torno da redução contínua das barreiras do nosso comércio enquanto aceitarem os outros países desenvolvidos e tão rápido quanto permitirem os problemas de ajuste interno. [...] Se o presidente pode cortar as tarifas dos Esta- dos Unidos consideravelmente, pode ser possível garantir por um tempo que os dois blocos comerciais rivais da Europa [...] também mantenham baixas suas barreiras comerciais.

Vernon entendia o protecionismo Europeu como uma fase de ajuste e transição. Essa seria a única participação do Estado para alcançar o laissez-faire, elaborando políticas de ajuste, protegendo alguns setores e dando tempo para adaptação, realocando aqueles que perderam empregos etc. Para atingir esse estágio, Vernon de- fendia a concessão pelo Congresso de uma autorização comercial para o presidente Kennedy, permitindo que esse reduzisse as tarifas em até 50%. Dentro dessa lógica, os Estados Unidos toleravam o protecionismo japonês e a discriminação contra seus produtos na Europa, uma vez que entendiam tais movimentos como políticas de ajustamento. Somando-se a isso, dentro da lógica da guerra fria, essa vantagem relativa dos aliados norte-americanos era desejada, buscando com isso conter o avanço soviético.

Mesmo com a coexistência pacífica e até o fim do conflito em 1989, o livre-comércio continua a ser defendido pelo Executivo pelos motivos aqui mencionados. As décadas de 1970 e 1980, como será vi- sualizado a seguir, assistiram a um forte questionamento dessa políti- ca por grupos de pressão representados no Congresso, mas nem com isso a postura livre-cambista do Executivo mudou. Mesmo no cená- rio pós-guerra fria essa tendência permanece: agora, como principal potência do Sistema Internacional, a necessidade de manter a saúde do sistema de comércio mundial existe com intensidade parecida.

Quanto às ideias, no imediato pós-guerra, acreditava-se que o protecionismo fosse um dos principais motivos para os conflitos mundiais. Depois da grande depressão da década de 1930, por exem- plo, o liberalismo dominou o debate político econômico nos prin-

cipais centros acadêmicos norte-americanos (Berglund, 1935). As causas da depressão e as causas da guerra foram relacionadas dire- tamente com as práticas mercantilistas adotadas na década de 1930 (Eichengreen, 2000). A reconstrução da Europa “seria impossível se os países voltassem a cometer os erros da década de 1930, cada um procurando vender o máximo e comprar o mínimo”, aponta Aron (2002, p.567). Com isso, o liberalismo no pós-guerra ganhou um sta-

tus “incontestável” e seria o principal remédio para evitar dois “gran-

des traumas” do século XX (Hobsbawm, 1995). Além disso, o cres- cimento “espetacular” no imediato pós-guerra fortaleceu essa ideia, colocando os Estados Unidos na liderança do Sistema Internacional. Em suma, era preciso evitar práticas restritivas de comércio: “Pregar o evangelho do livre comércio em todo o mundo tornou- -se o objetivo primordial da política econômica internacional dos Estados Unidos”, indica Dryden (1995, p.6). Isso ficou claro em um dos discursos do presidente Kennedy quando ele afirmou que “Se quisermos trazer paz ao mundo [...] e evitar a Terceira Guerra Mundial [...] o esforço deve ser baseado principalmente na coopera- ção econômica” (apud Dryden, 1995, p.34). Para evitar a repetição desses “acontecimentos catastróficos”, afirmava-se que não havia mais espaço para manter o isolacionismo da política externa norte- -americana em relação à Europa. Era preciso um novo conjunto de propostas para o comércio internacional. Assim, os Estados Unidos passaram a liderar a construção de um regime de comércio liberal que teria como consequência a promoção da paz e um ambiente propício aos seus interesses (Goldstein & Keohane, 1993; O’Shea, 1993). A posição que os Estados Unidos passaram a ocupar logo após a Segunda Guerra Mundial também merece destaque e é uma das principais especificidades históricas do país. Após 1945, com a Eu- ropa em reconstrução, esse país assumiu o papel de grande potência ocidental.4 Tal superioridade do poder político e estratégico contri-

4 Esse ponto é de vital importância. A posição diferenciada ocupada pelos Estados Unidos gerava políticas bastante específicas, refletindo na política comercial desse país que passou a ser baseada em uma ideia predominante: o livre-comércio.

buiu para a intensificação das políticas liberalizantes. O regime de comércio livre tinha forte apoio interno (Destler, 1995, p.6), pois, num ambiente de Guerra Fria, o comércio era usado para conter avanços comunistas. “O que realmente importava, entretanto, foi que o comércio não estava no topo da lista de preocupações públi- cas. Assim, os líderes governamentais tinham espaço de manobra para pressionar as políticas que achavam necessárias” (ibidem). Ikenberry (2006, p.22) ajuda a entender isso. Segundo esse autor, embora tenham sido convidados pelos europeus, “os Estados Uni- dos eram claramente hegemônicos e utilizaram sua posição econô- mica e militar para a construção de uma ordem no pós-guerra”.5

Em suma, diante do papel que os Estados Unidos visavam ado- tar no Sistema Internacional, o livre-comércio parecia ser a melhor opção, mesmo com os custos econômicos inerentes a tal decisão. As outras opções disponíveis restringiriam a liderança política dos Estados Unidos e por esse motivo não foram colocadas em prática. A partir dessa percepção, políticas multilaterais e bilaterais foram adotas. Conforme afirmaram Goldstein & Gowa (2002, p.155), “era do interesse do hegemon – isto é, um, estado muito poderoso – criar um regime de livre comércio, mesmo que tivesse de arcar com todo o custo. Não foi por acidente [...] que o livre comércio interna- cional coincidiu com a hegemonia dos Estados Unidos”. Em outro trecho, os mesmos autores atestam que “quando a distribuição de poder é assimétrica e os mercados estão insatisfeitos com o mundo das teorias de comércio padrão, [...] abrir os mercados internacio- nais exige o comprometimento de estado desproporcionalmente poderoso em torno do livre-comércio” (ibidem, p.154). Embora tais políticas pudessem proporcionar altos custos para os Estados Unidos, esse país adotou essa postura para manter sua liderança

5 Esse parágrafo remete à discussão sobre a Teoria da Estabilidade Hegemônica, contestada por uns e endossada por outros (Gilpin, 1981; Keohane, 1989). Aceita-se a teoria como útil para explicar o período em tela. Além disso, ela possui uma importância endógena na medida em que os atores domésticos relevantes dão credibilidade a seus argumentos, aderindo-os ou refutando-os (Anderson, 1960; Gardner, 1960; Aubrey, 1961).

econômica e política: era preciso implantar o livre-comércio nos países aliados e, posteriormente, em todo o globo.

Quanto à superioridade econômica e industrial dos Estados Unidos, consequência direta das duas grandes guerras que aconte- ceram no seio da Europa, essa passou a ser sentida já nas discussões sobre o reordenamento econômico que ocorreram em Teerã (1943), Yalta (1945) e Potsdam (1945). O Plano Marshall, formulado de junho a setembro de 1947, é outra demonstração da superioridade econômica desse país.

A liderança econômica norte-americana, ainda que intensa- mente questionada e modificada nas décadas seguintes, teve signi- ficado na explicação das causas da continuidade do país em posição sistêmica central (Dobson & Marsh, 1994). O gráfico 3, baseado na série histórica de estatísticas compiladas por Maddison (2008), ajuda-nos a perceber a ascensão dos Estados Unidos, ultrapas- sando a Europa Ocidental em PNB no decorrer nas duas grandes guerras, distanciando-se consideravelmente nas primeiras décadas. Também aqui acreditava-se que a opção liberalizante criaria um ca- minho necessário para o contínuo crescimento do poder econômico norte-americano. À medida que os Estados Unidos cresciam, tais ideias ganhavam força.

Gráfico 3 – PNB norte-americano e europeu, milhões de dólares (1914-1965)

Além disso, a liberalização do pós-Segunda Guerra foi possível por causa do arranjo institucional existente nos Estados Unidos na- quela época. Esse arranjo era constituído por contrapesos antipro- tecionistas, peças fundamentais para o que aqui se denomina como “sistema antigo de comércio”, basicamente impulsionados pela prosperidade econômica dos Estados Unidos, bem como sua nova posição preponderante no sistema internacional. Esses contrapesos entraram em vigor no imediato pós-Segunda Guerra e favoreceram a manutenção de diretrizes liberalizantes mesmo com mudanças nas preferências internas. Em outras palavras, o “sistema antigo” pode ser entendido como uma espécie de blindagem que protegia os congressistas das demandas protecionistas, abrindo caminho para políticas de abertura comercial. Em conjunto, o arranjo ins- titucional tinha o efeito de minar grupos locais protecionistas, de- sestimulando esse paroquialismo em favor de uma política nacional liberalizante (Destler, 1995; Eckes Jr., 1999).

Segundo Destler (1995, p.8),

Todos esses fatores – as “lições” de Smoot-Hawley, o impera- tivo da Guerra Fria, o predomínio econômico dos Estados Uni- dos e a prosperidade – contribuíram para a sustentação do crucial sistema político norte-americano de comércio: o fato de que as barreiras comerciais não eram fonte de conflito entre os partidos Republicano e Democrata durante o período pós-guerra.

Tal fato, é importante dizer, criou uma estrutura institucional que possibilitou a continuidade de políticas liberais independen- temente do partido do presidente eleito. Esse é um dos pilares do sistema antigo.