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2. A CONSTITUIÇÃO DO LEITOR

2.2 A afetividade e as contribuições de Vygotsky

Durante muitos séculos predominou no pensamento filosófico ocidental uma visão dualista de homem, que fragmentava o seu funcionamento psicológico em duas dimensões: razão e emoção, sendo a primeira a faceta considerada mais importante.

Segundo Leite (2006),

(...) além do dualismo razão/emoção, durante séculos o pensamento dominante sempre caracterizou a razão como a dimensão mais importante, sendo a emoção, em vários momentos históricos, considerada o elemento desagregador da racionalidade, responsável pelas reações inadequadas do ser humano. É possível reconhecer que, até o século XX, predominou a interpretação de que a razão deve dominar e controlar a emoção (...) (Leite, 2006, p. 16-17).

Neste contexto, os estudos sobre a dimensão afetiva do ser humano foram silenciados ou colocados em segundo plano por muitos anos. Entretanto, autores como Vygotsky e Wallon foram importantes para romper com a visão dominante, pois se empenharam em estudar o homem a partir de uma concepção monista, superando o dualismo que o cindia em corpo/mente, matéria/espírito, afeto/cognição.

Na década de 1930, Vygotsky dedicou alguns anos de estudos para as teorias populares de sua época acerca das emoções. Seus textos sobre a emoção não foram publicados durante sua vida, mesmo com os esforços da irmã e de Luria. Apenas no final da década de 1960 foram publicados dois curtos textos dos manuscritos e, finalmente, cinquenta anos após sua morte, o manuscrito foi integralmente publicado, intitulado “A teoria das emoções. Uma investigação histórico-psicológica” (Van Der Veer e Valsiner, 1996).

Para Vygotsky (1998), vários aspectos contribuíram para que as emoções estivessem em segundo plano, sendo considerada “a ovelha negra entre os demais capítulos que integravam a psicologia da época” (p. 79). Entre eles, a teoria de Darwin que, em seu trabalho “A origem dos movimentos expressivos do homem”, considerava que as emoções do homem e as suas reações afetivas eram de origem animal, puramente biológica. Esta concepção foi adotada pela psicologia inglesa, que estava dominada pelo pensamento escolástico e impregnada das tradições religiosas, dando fôlego a inúmeros estudiosos que pensaram a emoção predominantemente a partir das reações instintivas dos animais (Vygotsky, 1998, p. 80).

Para estas teorias, as emoções são “restos rudimentares de reações animais”, de modo que os movimentos expressivos só poderiam ser compreendidos retrospectivamente, após sua manifestação. Assim, para Vygotsky (1998), essas teorias pareciam definir que acurva da evolução das emoções tendia para baixo, pois com o desenvolvimento humano elas perderiam suas forças. Segundo ele:

Disto se depreende, como se sabe, o famoso prognóstico de que o homem do futuro será um homem carente de emoções, que deverá alcançar, de fato, o final lógico e perder os últimos elos que restam da reação que teve um certo sentido na etapa primitiva de sua existência (Vygotsky, 1998, p. 81).

Discordando destas concepções, Vygotsky, em seu manuscrito, investigou as teorias das emoções existentes, estudando principalmente as teorias de James e Lange e de Dèscartes, apontando os problemas destas formulações. Para Dèscartes, em “As paixões da alma”, todas as sensações estavam vinculadas aos nervos e a emoção representaria uma percepção passiva das mudanças corporais. No pensamento cartesiano, o homem deveria controlar suas emoções

por meio da razão, de modo que as emoções primitivas originais poderiam desaparecer ou manter-se nos indivíduos, e, neste caso, deveria ficar sobre o controle da alma. Assim, para Dèscartes, James e Lange, as emoções eram imutáveis, nunca se desenvolveriam em emoções superiores (Van Der Veer e Valsiner, 1996).

James até reconheceu a diferenciação e existência de dois tipos de emoções, que nomeou como emoções “padrão”, aquelas que se expressavam corporalmente, e as emoções “cerebrais” intelectuais, aquelas sem correlatos corporais, mas sugeria que estas deveriam ser nomeadas por “julgamentos” ou “cognições” (Van Der Veer e Valsiner, 1996, p. 382). Com isso, James separou as emoções da consciência e pensou as emoções apenas como reflexos dos processos orgânicos.

Segundo o ponto de vista de James, basta reprimir a manifestação externa da emoção para que esta desapareça e vice-versa: basta provocar em si mesmo a manifestação de uma determinada emoção para que esta apareça depois da manifestação (Vygostky, 1998, p.83).

Ao tratar as emoções de modo simplista, puramente como reflexos automáticos do organismo, James acoplou as emoções aos órgãos internos, aos momentos vegetativos, viscerais e humorais. Era clara a cisão entre emoção e consciência. Na análise de Vygotsky (1998):

Isso significa que as emoções eram consideradas de modo isolado, separadas do conjunto global, de todo o resto da vida psíquica do homem, e a teoria de James e Langue proporcionou a justificação anátomo-fisiológica dessa idéia do estado dentro do estado. O próprio James sublinha isso claramente. Dizia que, enquanto o cérebro é o órgão do pensamento humano, o das emoções são os órgãos vegetativos internos (Vygotsky, 1998, p. 86).

Dèscartes também reconhecia a possibilidade das “emoções internas”, mas estas seriam produzidas apenas na alma. Sobre isso, Van Der Veer e Valsiner afirma, (1996)

É difícil para um dualista imaginar a qualidade das emoções mudando aos poucos, à medida que o conhecimento conceitual e os processos da criança se desenvolvem. Os processos corporais jamais podem se desenvolver em emoções superiores, porque emoções superiores pertencem ao domínio da alma (1996, p. 382).

Vygotsky (1998) critica duramente esta abordagem que separava as emoções que o homem havia herdado dos animais (inferiores e puramente orgânicas), das emoções que surgiram ao longo do desenvolvimento histórico (superiores, puramente espiritual); defende que estas concepções excluem “a possibilidade de estudar de forma adequada o que constitui as particularidades específicas das emoções do homem” (Vygotsky, 1998, p. 82). Para o autor, era um grande equívoco das pesquisas dominantes a defesa de que havia um retrocesso das emoções ao longo do desenvolvimento, pois “em vez de esclarecer como se enriquecem as

emoções na infância, mostrava, pelo contrário, como se reprimem, se debilitam, se eliminam as descargas emocionais imediatas, próprias da infância precoce” (Idem, p. 82).

Assim, concluiu que a base conceitual da psicologia estava inadequada, ao não compreender a verdadeira ligação entre os pensamentos, os sentimentos e a atividade do corpo. Ele constatou que as concepções eram dualistas e insatisfatórias e, para romper com o dualismo, inspirou-se em Espinoza, filósofo holandês, que o fascinou ao considerar o homem como ser monista, afastando-se também das abordagens deterministas.

Em contato com todos estes autores, Vygotsky busca desenvolver sua própria teoria sobre as emoções e defende que pensamento e afeto são duas dimensões essenciais e inseparáveis. Embora os seus trabalhos mais explorados e difundidos sejam aqueles que enfocam a natureza cognitiva, o autor criticava a postura da psicologia tradicional de fragmentar os aspectos intelectuais dos aspectos afetivos e volitivos. Para o autor:

Quem separa desde o começo o pensamento do afeto fecha para sempre a possibilidade de explicar as causas do pensamento, porque uma análise determinista pressupõe descobrir seus motivos, as necessidades e interesses, os impulsos e tendências que regem o movimento do pensamento em um ou outro sentido. De igual modo, quem separa o pensamento do afeto, nega de antemão a possibilidade de estudar a influência inversa do pensamento no plano afetivo (...) (Vygotsky, 1993, p. 25).

Nota-se que, para Vygotsky, as duas dimensões, afetiva e cognitiva, estão imbricadas, havendo claro processo evolutivo, podendo-se observar o refinamento da vida emocional ao longo do desenvolvimento humano, com nítida distinção entre a emoção expressa pelo adulto em relação à expressa pela criança. Sua tese é a de que as emoções, manifestadas inicialmente nos bebês, são heranças biológicas e instintivas que se desenvolvem ao longo da vida, por meio das relações com o outro, das interações sócio-históricas que possibilitam a internalização de emoções e sentimentos e, assim, atingem um nível mais complexo: a afetividade. Apesar da distinção qualitativa entre as emoções primitivas e os processos superiores, o autor é enfático ao expor que emoções mais instintivas como o medo, a raiva, a alegria, não são menos importante, pois são responsáveis pela auto conservação do indivíduo e salienta que “os processos inferiores não deixam de existir, mas são “suplantados” (ver Hegel); ou seja, eles continuam presentes e irão reemergir quando os processos superiores, por uma razão ou outra, estiverem impossibilitados de funcionar” (Van Der Veer e Valsiner, 1996, p. 386).

Neste processo evolutivo das emoções, o sujeito aprende a regular seus impulsos emocionais na interação com os outros e com o desempenho também da razão, avançando qualitativamente suas emoções. Sobre isso, Oliveira e Rego (2003) alertam:

(...) a razão tem efetivamente, para Vygotsky, o papel de controle dos impulsos emocionais no homem cultural adulto, relacionando à auto-regulação do comportamento. Mas esse papel não deve ser confundido com a idéia de uma razão repressora, capaz de anular ou extinguir afetos. Ao contrário, com o desenvolvimento, a razão está a serviço da vida afetiva, na medida em que é um instrumento de elaboração e refinamento dos sentimentos (Oliveira e Rego, 2003, p. 22).

Destarte, Vygotsky defende que, no desenvolvimento psíquico humano, emoção e razão estão amalgamados e para ele não há dúvidas em relação à existência de um processo de “evolução sentimental” (Vygotsky, apud van der Veer e Valsiner, 1991, p. 385). Assim, Vygotsky diz:

A forma de pensar, que junto com o sistema de conceitos nos é imposta pelo meio que nos rodeia, inclui também nossos sentimentos. (...) nossos afetos atuam em um complicado sistema com nossos conceitos (...) este sentimento é histórico, que de fato se altera em meios ideológicos e psicológicos distintos. (...) Consequentemente, as emoções complexas aparecem somente historicamente e são a combinação de relações que surgem como consequência da vida histórica, combinação que tem lugar no transcurso do processo evolutivo das emoções (Vygotsky, 1991, apud Oliveira e Rego, 2003, p. 22).

Conclui-se, portanto, que afeto e cognição interagem e estão em constante processo de desenvolvimento, de modo que os sentimentos são aprendidos e significados ao longo da vida, descartando hipóteses inatistas para explicar as características emocionais dos sujeitos. Assim, o homem é um ser que “aprende, por meio do legado de sua cultura e da interação com os outros humanos, a agir, a pensar, a falar e também a sentir” (Oliveira e Rego, 2003, p. 23) e por isso, acredita-se que os sujeitos não nascem gostando de música, matemática, leitura... Os sujeitos aprendem e dão sentidos diversos, de acordo com suas histórias de mediação e constituição. E, neste processo de aprendizado e constituição da vida psíquica, a linguagem assume uma função vital: é responsável não apenas pelo avanço no desenvolvimento cognitivo, como exposto anteriormente, bem como pelo desenvolvimento da dimensão afetiva. É por meio da linguagem que os homens são capazes de definir seus sentimentos, organizá-los, de modo que se tornam capazes de expressar seus pensamentos e também suas emoções (Oliveira e Rego, 2003).

Para Vygotsky (2005), “O pensamento não é simplesmente expresso em palavras; é por meio delas que ele passa a existir” (p. 156). É também por meio da linguagem que os homens interagem na cultura, nomeando e significando os objetos, em dado contexto sócio- histórico, modificando suas percepções. Uma cadeira, por exemplo, poderia ser percebida apenas como a combinação de uma placa de madeira, sobreposta de outra placa vertical (o encosto) e quatro apoios inferiores. Mas, muito além, ela pode ser descrita como linda, desajeitada, macia, dura, confortável, anatômica, moderna, antiga ou de estimação e a seu

respeito poder-se-á evocar inúmeras características e adjetivos de acordo com cada sujeito que ela observar e dela usufruir. Isso porque “o mundo não é visto simplesmente em cor e forma, mas também como um mundo com sentido e significado” (Vygotsky, 2007, p. 24).

Com isso, o autor traz para o debate a importância da significação, do sentido e da subjetividade. O significado refere-se ao núcleo estável de compreensão da palavra, que resultou dos processos sócio-históricos de seu desenvolvimento. Ele representa uma generalização e é compartilhado socialmente pelos usuários da mesma língua, sendo, portanto, indispensável. De acordo com Newman e Holzman (2002), para a efetivação da comunicação, da interação social, pressupõe-se esta generalização e o desenvolvimento do significado verbal. Assim, exemplificam que a dificuldade de expressão da criança pequena, em fase de aprendizado da língua, não é a falta de palavras ou sons, mas a ausência da generalização ou conceito particular. Nesta direção, defendem que “(...) somente por meio da criação de significado (atividade revolucionária) é que as crianças se tornam capazes de criar linguagem e de se tornar usuários maduros da língua e, com isso, de se engajar plenamente no comportamento social” (Newman e Holzman, 2002, p. 155).

Isso porque Vygotsky (2005) é enfático ao afirmar que a palavra isolada e sem significado é um som vazio, sendo crucial o seu significado, que é socialmente constituído. Nota-se, portanto, que este autor aproxima-se em muitos aspectos da concepção de linguagem que assume Bakhtin, brevemente exposta no capítulo anterior. Para ambos, a palavra e os enunciados proferidos pelos sujeitos não podem ser compreendidos sozinhos, fora de seu contexto social. A significação não está na palavra, visto que é produzida na interação com seus interlocutores. De acordo com Bakhtin (2003),

Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva. (...) O enunciado nunca é apenas um reflexo, uma expressão de algo já existente fora dele, dado e acabado. Ele sempre cria algo que não existia antes dele, absolutamente novo e singular, e que ainda por cima tem relação com o valor (com a verdade, com a bondade, com a beleza, etc.). Contudo, alguma coisa é sempre criada a partir de algo dado (a linguagem, o fenômeno observado da realidade, um sentimento vivenciado, o próprio sujeito falante, o acabado em sua visão de mundo, etc.). Todo o dado se transforma em criado (Bakhtin, 2003, p. 297 e 326).

Na mesma direção, Vygotsky diz:

O significado de uma palavra representa um amálgama tão estreito do pensamento e da linguagem, que fica difícil dizer se se trata de um fenômeno da fala ou de um fenômeno do pensamento. Uma palavra sem significado é um som vazio; o significado, portanto, é um critério da palavra, seu componente indispensável. (...) do ponto de vista da psicologia, o significado de cada palavra é uma generalização

ou um conceito. E como as generalizações e os conceitos são inegavelmente atos de pensamento, podemos considerar o significado como um fenômeno do pensamento (Vygotsky, 2005, p. 150).

Denota-se, portanto, a importância do significado da palavra que, segundo Oliveira (1992), além de pertencer ao domínio cognitivo, faz referência também aos aspectos afetivos, pois as zonas de sentido das palavras são compostas de dois componentes: o significado propriamente dito e o sentido. O sentido, diferentemente do significado, que é mais estável, carrega as marcas afetivas experimentadas pelos sujeitos que estão vinculadas ao termo. Vygotsky (2005), inspirado em Paulhan diz que:

(...) o sentido de uma palavra é a soma de todos os eventos psicológicos que a palavra desperta em nossa consciência. É um todo complexo, fluido e dinâmico, que tem várias zonas de estabilidade desigual (Vygotsky, 2005, p. 181).

Deste modo, segundo Vygotsky (2005), para uma compreensão da fala do outro, não basta entender suas palavras, mas também compreender o seu pensamento, além de sua motivação. Isto porque, segundo ele,

O pensamento propriamente dito é gerado pela motivação, isto é, por nossos desejos e necessidades, nossos interesses e emoções. Por trás de cada pensamento há uma tendência afetivo-volitiva, que traz em si a resposta ao último “por que” de nossa análise do pensamento. Uma compreensão plena e verdadeira do pensamento de outrem só é possível quando entendemos sua base afetivo-volitiva (Vygotsky, 2005, p. 187).

Portanto, o afetivo está imbricado com o cognitivo na perspectiva de Vygotsky, ambos atuando um sobre o outro, sendo expressos também por meio da linguagem. Diferentemente das teorias anteriores, as emoções não são reprimidas, mas fazem parte do desenvolvimento humano. Nesta teoria, o sujeito se constitui integralmente na e pela cultura, na relação com o outro e seu desenvolvimento, tanto cognitivo como afetivo, ocorre do plano interpessoal para o intrapessoal, de modo que “(...) é necessário investigar a história singular dos sujeitos para que se possa de fato construir uma compreensão aprofundada de seus processos de desenvolvimento. O primordial no entendimento da formação do sujeito é que sua individuação se inicia nas experiências propiciadas pela cultura” (Oliveira e Rego, 2003, p. 32).

Diante do exposto, observam-se as contribuições de Vygotsky para o avanço no modo de compreender o desenvolvimento humano, que ocorre de maneira integrada, considerando os aspectos biológicos, sociais, culturais e históricos, estreitando todos eles em busca de uma visão mais completa do ser humano.