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2. A CONSTITUIÇÃO DO LEITOR

2.3 A afetividade e as contribuições de Wallon

Henri Wallon foi outro autor que também preconizava a importância de estudar o homem a partir de uma visão holística. O francês, contemporâneo de Vygotsky, teve mais tempo de vida para a elaboração de sua teoria sobre o desenvolvimento humano, a qual contemplava a importância da dimensão afetiva, defendendo que afeto e cognição não poderiam ser dimensões dissociadas, bem como os fatores orgânicos e sociais, pois a interação entre esses fatores eram determinantes pela constituição da pessoa.

Assim como Vygotsky, valeu-se do materialismo dialético para compreender o desenvolvimento humano em seu movimento de formação e transformação. Segundo Zazzo (1995), Wallon contribui para os estudos da psicologia por ser inovador, por ultrapassar as teorias vigentes, que olhavam a criança como redução do adulto.

(...) Wallon surge, mais que nenhum outro, como um inovador, como um criador da Psicologia, porque as suas contribuições científicas não são apenas uma pedra a mais, um novo tijolo para o edifício comum, na medida em que provocam neste edifício uma reorganização, ou melhor, a abertura de perspectivas insuspeitas. (...) Assim, Wallon vai repensar estas oposições e ultrapassá-las, procurando ao mesmo tempo as contradições reais e como podem estas contradições ser um motor da evolução da criança. O seu método consiste em estudar as condições materiais do desenvolvimento da criança, condições tanto orgânicas como sociais e em ver como se edifica, através destas condições, um novo plano de realidade que é o psiquismo, a personalidade (Zazzo, 1995, p. 10-13).

Wallon buscou elaborar um método de pesquisa que contemplasse o desenvolvimento do ser, em suas diversas fases, a partir de uma perspectiva de constituição humana que integra, que complementa, que é recíproca e multifacetada. Para o autor, o desenvolvimento da criança não é o simples resultado da soma de progressos unilaterais; ao contrário, apresenta oscilações e se caracteriza pelas alternâncias funcionais. Portanto, Wallon defende em sua teoria que o desenvolvimento é consequência do processo de contínua interação dialética entre as funções cognitiva, emocional e motora, que vão gerar, em cada momento, a função pessoa.

Segundo Tassoni e Leite (2013)

Em cada fase do desenvolvimento os aspectos afetivos e cognitivos estão em constante entrelaçamento. (...) em cada fase, um campo funcional exerce uma dominância maior sobre os outros. Quando a afetividade prepondera sobre a dimensão cognitiva, o indivíduo está voltado para a construção do seu eu e, por isso, o movimento é para o interior da pessoa (movimento centrípeto). Quando a cognição prepondera, o movimento é para o exterior (força centrífuga), para o conhecimento do mundo, das coisas. A dimensão motora não assume preponderância em fase alguma, mas exerce um papel fundamental na evolução da pessoa. Neste processo, os campos funcionais beneficiam-se dos avanços do outro que está dominando e evoluem também (Tassoni e Leite, 2013, p. 264).

Assim, organizou o desenvolvimento em cinco estágios, relacionando-os às idades das crianças de sua época. Esses estágios, criados com base nas concepções do materialismo- dialético, são marcados por transições de conflitos e oposições, que não se dão linearmente, mas caracterizam-se pela predominância alternada da dimensão afetiva coma dimensão cognitiva. São eles: estágio 1- Impulsivo (0 a 3 meses) Emocional (3 meses a 1 ano); estágio 2- Sensório-motor (1ano e 18 meses) Projetivo (3 anos); estágio 3- Personalismo (3 a 6 anos); estágio 4- Categorial (6 a 11 anos); estágio 5- Adolescência (a partir de 11 anos).

O primeiro estágio, marcado pelo movimento centrípeto, com o predomínio da dimensão afetiva, inicia-se com as reações impulsivas, resultantes das tensões tanto de origem orgânicas quanto de origens externas. Posteriormente, ainda no primeiro estágio, a criança começa a transformar as descargas motoras em meio de expressão, de modo que o bebê começa a se relacionar com o meio. De acordo com Duarte e Gulassa (2003),

A intensidade dessas trocas criam um verdadeiro campo emocional, no qual gestos, atitudes, vocalizações e mímicas adquirem nuança cada vez mais diversificada de dor, tristeza, alegria, cólera. (...) É a linguagem primitiva constituída de emotividade pura. É a primeira forma de sociabilidade (2003, p. 25).

Com isso, o bebê é capaz de afetar o outro, de modo que a emoção é um instrumento de comunicação da espécie humana indispensável.

O estágio sensório-motor e projetivo caracteriza-se pela exploração concreta do espaço físico pelo bebê, que aprende a manipular, agarrar, andar, apontar, representar e etc. Neste período, predominam o movimento centrífugo e a atividade cognitiva. Neste estágio, as crianças encantam-se com os objetos, com o movimento do corpo e aguçam suas sensibilidades, passando a organizar seus gestos, de modo que suas atividades passam a ser, a cada momento, mais voluntárias e planejadas (Costa, 2003). Ao aprender a andar e, principalmente, a falar, a criança adquire maior independência, ampliando suas possibilidades de exploração do espaço e modificando o seu ambiente. Neste período

a criança desenvolve uma inteligência prática, também chamada inteligência das situações. (...) Podemos dizer que a linguagem é um fator decisivo para o desenvolvimento psíquico da criança, pois permitirá outra forma de exploração do mundo (...) Dessa forma, o andar e a linguagem darão oportunidades à criança de ingressar em um novo mundo, o dos símbolos (Costa, 2003, p. 33).

O estágio do Personalismo, voltado para a construção da personalidade, é centrípeto e com predominância afetiva. Neste momento, a criança, a partir da sua consciência corporal, passa a diferenciar-se do outro e, em fases distintas, primeiro opõe-se ao outro, confrontando e recusando-o. Posteriormente, passa a seduzi-lo e, nesta “idade da graça”, busca ser admirado e agradar o outro e, por último, imita-o, necessitando do seu modelo para enriquecer a construção de sua pessoa (Bastos e Dér, 2003).

No penúltimo estágio, o Categorial, a dimensão intelectual é a que prevalece. Neste momento, a capacidade de atenção da criança amplia-se e ela é capaz de denominar corretamente os objetos e de separá-los, compreendendo a independência destes e sua própria existência. É também capaz de planejar mentalmente e prever etapas e a inteligência passa a ser discursiva (Amaral, 2003).

O último estágio, da Puberdade e da Adolescência, caracteriza-se pelo movimento centrípeto, em cujo estágio a criança vivencia inúmeras transformações corporais acompanhadas de transformações psíquicas, ganhando centralidade a construção da pessoa e sua identidade. Segundo Dér e Ferrari (2003),

A tomada de consciência temporal de si transforma profundamente a inteligência e a pessoa do jovem e torna-o acessível a certos raciocínios de moralidade, a certos modos de conhecimento que o induzem a buscar as leis que fazem as coisas existir. Isto significa que o jovem torna-se apto a ultrapassar o mundo concreto das coisas e a entrar no mundo abstrato das leis. Para construir a noção de lei, é preciso que as categorias do pensamento tenham sido definidas de forma clara e objetiva no estágio categoria (Dér e Ferrari, 2003, p. 68).

Nota-se, portanto, que as conquistas dos estágios anteriores são importantes para os seguintes e que o desenvolvimento psicológico pressupõe afeto e cognição que alternam a predominância em cada etapa, de modo que a pessoa, na teoria walloniana, é resultante da integração destes domínios funcionais que se influenciam mutuamente.

O domínio motor é importante, pois, segundo Wallon (1995), é uma das formas do homem atuar sobre o meio e, portanto, “Através do movimento, o acto insere-se no instante presente” (p. 147). É a partir do movimento que o bebê inicia sua relação com o mundo, sendo este domínio responsável pelo movimento do indivíduo que pode ser subdividido em duas facetas: o movimento com a finalidade expressiva, responsável pela função postural e tônica e o movimento propriamente dito ou instrumental, com a finalidade de atuação direta sobre o meio físico. Segundo Galvão (1995), os movimentos com finalidade expressiva são fundamentais para a sobrevivência do bebê, pois sua expressão corporal é capaz de desencadear no adulto as reações necessárias para solucionar suas demandas em prol da manutenção de sua vida. Como não fala, não anda e não é capaz de autogovernar-se, é por meio das reações posturais, tônicas e expressivas que o bebê se comunicará, de modo que essas variações tônicas estão a serviço da expressão das emoções. Assim,

As funções de expressão precedem de longe as de realização. Preludiando a linguagem propriamente dita, elas são as primeiras a pôr sua marca no homem, animal essencialmente social (Wallon, 2007, p. 41).

Por isso, o contágio emocional é demasiadamente importante neste estágio, pois o choro de fome, de dor, de incômodo da criança é que ativará a preocupação do adulto. Sob esta perspectiva, a teoria walloniana muda radicalmente o estatuto da emoção, que durante

muitos séculos foi vista como menor, como desagregadora, marcada por reações incoerentes e tumultuadas. Em sua obra, ao contrário, a manifestação da emoção é vital, ressaltando que, em um determinado período da vida do indivíduo, é responsável pela sua sobrevivência. Posteriormente, quando a criança aprende a se auto-locomover, será através de seus movimentos que ampliará as formas de exploração da realidade. Nota-se, portanto, que o domínio motor está intrinsecamente ligado ao domínio afetivo, este que, segundo Almeida (1999), assume importância capital na obra walloniana, pois é responsável por estabelecer a ligação entre a vida orgânica e a vida psíquica.

Vale ressaltar que Wallon, assim como Vygotsky, defende que, ao longo do desenvolvimento humano, as emoções evoluem:

Entre a emoção e a actividade intelectual existe a mesma evolução (...) Este período inicial, defensivo e negativo, só se poderá modificar com o aparecimento e o progresso das representações mentais que fornecerão aos seus devaneios motivos e temas mais ou menos inactuais. A paixão pode ser viva e profunda na criança. Mas com ela surge o poder de tornar a emoção silenciosa (Wallon, 1995, p. 143-145).

Dessa maneira, sua teoria propõe um processo de desenvolvimento das emoções (marcadas por características biológicas e acompanhadas por alterações orgânicas) para os sentimentos e paixões (formas mais elaboradas de manifestação do afeto). Para Wallon (1995), a redução da emoção é comum nos adultos por meio do controle ou “tradução intelectual dos seus motivos ou circunstâncias” (p. 144). Devido a esta preponderância do intelecto no domínio da afetividade, o autor explica a razão pela qual surgiram “teorias intelectualistas das emoções”, criticando-as a seguir.

O erro foi não terem notado a redução simultânea do aparelho verdadeiramente emocional, de terem assimilado emoção e sentimentos ou paixão, quando se opera daquela para estes uma transferência funcional que, na criança, está na dependência da idade. Mas os mais emotivos não se tornam necessariamente os mais sentimentais ou os mais apaixonados, longe disso. Trata-se, com efeito, de tipos diferentes, que dizem respeito a um diferente equilíbrio entre as actividades písquicas (Wallon, 1995, p. 144).

Assim, entende-se que emoção e afeto operam diferentemente. Segundo Tassoni (2013)

As emoções são manifestações de estados subjetivos, acompanhadas de componentes orgânicos. Os sentimentos surgem relacionados aos elementos simbólicos, à possibilidade de representação, como por exemplo, lembrar-se de alguém e sentir saudades. A paixão, por sua vez, refere-se ao aparecimento do autocontrole necessário para se dominar certa situação. Implica em perceber a situação e agir de forma a atender as necessidades afetivas pessoais (Tassoni, 2013, p. 525).

Portanto, nota-se que Wallon, tal como Vygotsky, assume que a dimensão afetiva é marcada por um processo de desenvolvimento e, sendo assim, apresenta mudanças

qualitativas ao longo da evolução, marcadas também pelo domínio cognitivo. Este domínio funcional refere-se às funções intelectuais que possibilitam o conhecimento, a compreensão e a explicação do mundo e seus fenômenos, de modo a possibilitar formas de intervenção mobilizadas pelo pensamento, em constante interação com os outros domínios.

O último campo funcional, descrito por Wallon, é a pessoa e refere-se ao:

(...) conceito empregado por Wallon para definir e nomear o domínio funcional resultante da integração dos três primeiros: ato motor, afetivo e conhecimento. Pessoa é o todo diante do qual cada um dos outros domínios deve ser visto, pois para Wallon, cada parte deve ser considerada diante do todo do qual é parte constitutiva, sob pena de, ao contrário, perder seu significado essencial. Assim, a pessoa é um conceito abstrato, genérico, que refere ao que há de comum entre os homens, opondo-se ao conceito de indivíduo, como homem particular, concreto (Prandini, 2004, p. 30).

Tendo em vista esta perspectiva de integração, entende-se que todas as facetas do homem estão intrinsecamente relacionadas, de modo que as mudanças afetivas impactam no cognitivo e vice-versa, assim como as conquistas motoras repercutem nos outros domínios, sendo o inverso também verdadeiro. A constituição da sua pessoa será resultante da integração destes aspectos e só poderá ser investigada em seu ambiente natural, considerando- se o seu meio histórico-cultural, de modo que a compreensão do desenvolvimento da criança deveria abarcar diversas facetas, inclusive a dimensão social.

Nunca pude dissociar o biológico do social, não porque os julgue redutíveis um ao outro, mas porque me parecem tão estritamente complementares desde o nascimento, que é impossível encarar a vida psíquica sem ser sob forma das suas reações recíprocas (Wallon, 1998, p. 14, apud Prandini,2004, p.27).

Portanto, Wallon via a clara necessidade de estudar as pessoas sempre tendo como referência o seu grupo. Logo, para Wallon, o papel do outro é também fundamental quando discorre sobre a internalização, a mediação, o desenvolvimento e a aprendizagem. Mahoney (2003), ao debruçar-se sobre a teoria de Wallon, diz que: “A presença do outro garantirá não só a sobrevivência física, mas também a sobrevivência cultural pela transmissão de valores, instrumentos, técnicas, crenças, idéias e afetos predominantes na cultura” (Mahoney, 2003, p.15). E pode-se assumir que esse outro com quem convive e o meio em que convivem nunca são neutros. Segundo Wallon

Os meios onde a criança vive e os que ambiciona são o molde que dá cunho à sua pessoa. Não se trata de um cunho passivamente suportado. O meio de que depende começa certamente por dirigir suas condutas, e o hábito precede a escolha, mas a escolha pode impor-se, quer para resolver discordâncias, quer por comparação de seus próprios meios com outros (Wallon, 1975, apud Amaral, 2003, p. 53).

Consequentemente, novamente como Vygotsky, Wallon atribuía uma importância crucial ao social e ao papel da aprendizagem. Para ele “O regime de vida é guiado por

condições que o meio social pode transformar. A relação entre essas condições e o desenvolvimento psíquico é um de seus fatores essenciais” (Wallon, 2007, p. 25). Isso porque, segundo o autor, apesar da espécie humana estar dotada de um equipamento psicobiológico superior e mais complexo se comparado a outras espécies, é o mais dependente do outro para a satisfação de seus desejos ao nascer e dependente incontestavelmente da aprendizagem, visto que há “uma relação inversa entre a riqueza do equipamento e do acabamento de suas partes. Quanto maior o número de possibilidades, maior sua indeterminação. Também, quanto maior a indeterminação, maior a margem de progresso”(Wallon, 2007, p. 40).

Esta visão liberta o homem, porque olha para o sujeito não como alguém que nasceu com “dons inatos”, “geneticamente predisposto a” e “determinado para”; ao contrário, concebe o homem como um ser histórico-culturalmente situado, em constante processo de formação e que se constitui integralmente, não apenas cognitivamente. Esta perspectiva possibilita pensar que o sujeito se (trans)forma a cada momento e que seu desenvolvimento psicológico avança cognitiva e afetivamente, sendo possível mudanças a todo momento. Assim sendo, a teoria exposta mostra-se coerente com a visão de constituição do leitor e do mediador de leitura assumida na presente pesquisa, como se pode observar a seguir.