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Entre a Antropologia e o Cinema: da representação à autorrepresentação

1.3 A afirmação do sujeito e de sua autorrepresentação

Se de um lado, a difusão, portabilidade e barateamento das tecnologias de produção audiovisual permitiu certa democratização da produção (algo que ainda encontra forte limitação no âmbito da distribuição dos filmes), por outro lado, processos sociais e mesmo epistemológicos contribuíram, talvez, para uma maior

afirmação dos grupos e sujeitos, outrora objeto dos filmes, no sentido de sua autorrepresentação. Ainda que pontualmente, a história do cinema brasileiro já se deparara com experiências do tipo, como o célebre filme de Aloysio Raulino, Jardim

Nova Bahia (1971), no qual o diretor delega a câmera para seu personagem,

Deutrudes Carlos da Rocha. Por meio deste gesto, busca-se não apenas “dar voz” ao sujeito filmado, mas também acionar seu ponto de vista. Mas como lembra Jean- Claude Bernardet (2003), essa entrega não se configura, no entanto, numa mudança efetiva de olhar do cineasta sobre o outro, já que Raulino mantém o controle da montagem do filme. “Quem selecionou e ordenou os planos, quem determinou sua duração, não foi Deutrudes, mas o autor do filme”, observa Bernardet (2003, p.131), para quem o personagem só se afirmaria como sujeito, em Nova Bahia, se assumisse o filme como produtor e autor.

Trabalhos contemporâneos experimentaram tal estratégia, como é o caso célebre d‟O prisioneiro da grade de ferro – auto-retratos (2003), de Paulo Sacramento (do qual Raulino participa como fotógrafo), e, em chave totalmente outra, Rua de Mão Dupla (2004), de Cao Guimarães. A possibilidade de filmar é oferecida ao outro, mas não se trata de um gesto voluntário, de própria vontade. Esse deslocamento, que possibilita mais liberdade para a mise-en-scène, não eliminou as tensões da relação cineasta/sujeito filmado e as diferentes modulações da alteridade permaneceram, incluindo diferenças de classe, gênero, etnias, culturas, como observa Guimarães (2010, p.186). Permanece ainda sob domínio do cineasta a decisão final sobre a organização do material filmado no processo de montagem. No entanto, Guimarães destaca outras figuras de alteridade surgidas a partir dos movimentos de subjetivação e de práticas cotidianas figuradas no cinema brasileiro. Situações em que o cineasta concede ao outro espaço para que exponha sua singularidade, construindo uma relação de proximidade com quem é filmado, na qual o sujeito “ganha tempo e autonomia para desenvolver sua auto-mise-en-scène” (GUIMARÃES, 2010, p.194/195), afastando-se das representações genéricas. Trata- se de um gesto que se leva ao extremo, por exemplo, em documentários de Eduardo Coutinho, diretor que elege o rosto, a fala e o cotidiano como matérias constituintes da singularidade.

Por outro lado, as facilidades técnicas para a produção, principalmente de documentários, garantiram condições para que iniciativas nas quais aquele que fora historicamente identificado como “o outro, objeto do discurso”, pudesse fazer seus

próprios filmes em processos compartilhados com instrutores profissionais. Trata-se de um importante passo para que a tomada de voz se efetive pela apropriação dos meios técnicos de produção do filme. Tudo isso, mais uma vez, não elimina a complexidade da experiência, já que as produções envolvem processos variados de partilha, coautoria e encontros interculturais.

Essa é uma produção audiovisual potente e crescente no Brasil, fruto de projetos e oficinas que constróem olhares singulares sobre novos territórios sociais, com reflexões sobre o reconhecimento das diferenças, o respeito aos direitos humanos, a busca pela emancipação social e o fortalecimento da democracia. A produção não se restringe a espaços populares urbanos, mas inclui outros cenários do cotidiano no Brasil, como grupos ciganos, assentamentos rurais, regiões quilombolas e aldeias indígenas. Assim, pode-se afirmar uma nova – ainda que não hegemônica – configuração no campo da produção das imagens, em especial do documentário, que merece ainda estudos aprofundados.

Nessa perspectiva, podemos afirmar também que, se a voz no documentário não é algo que se dê, ela é algo que se conquista. Se “quem tem a câmera tem o poder”, como afirma Bentes (2004), nos interrogamos sobre como os indígenas se apropriam desse poder de narrar suas próprias histórias? Não mais como figurantes em seu próprio mundo, re-imaginado pelo imaginário branco/ocidental, mas agora como protagonistas, oferecendo a si e aos “de fora” a possibilidade de conhecer outra visão do indígena (em suas especificidades étnicas), da representação e do próprio cinema. Trata-se, quem sabe, de um processo de indigenização do cinema – tal como o propõe Marshal Sahlins (1997) –, na medida em que seus procedimentos, estratégias formais e modos de expressão são transformados pelas práticas indígenas.

Parece-nos que um primeiro ponto a ser destacado é o aparecimento de um novo lugar para o cinema, a partir de uma espécie de encontro fundante nascido da reivindicação de simetria entre os dois domínios – Cinema e Antropologia. Assim, o indígena passa a discorrer sobre seu mundo e o mundo do branco, através do cinema, tomado como uma prática de produção de conhecimento que coloca o branco e o indígena em pé de igualdade. Daí a relevância dos filmes do projeto

Vídeo nas Aldeias, como lugar de um pensamento cinematográfico de onde pode

emergir algo novo. Numa aproximação às ideias de Eduardo Viveiros de Castro (2011) e de Roy Wagner (2010), que reivindicam uma “antropologia nativa”,

podemos sugerir que os grupos ameríndios possam representar o seu mundo, e também o mundo de outrem. E que, para fazê-lo, ressignifiquem os próprios processos de produção cinematográfica e de produção de imagens. Assim, as relações historicamente construídas pelo cinema são reconfiguradas, no interior de práticas tradicionais, em relações étnicas e interétnicas.

Nesse campo da autorrepresentação, aquele que filma se coloca como agente da sua experiência e do seu grupo, elaborando de “dentro” da sua cultura suas representações sobre o mundo vivido, muitas vezes por meio de uma construção fílmica aberta, em diálogo com os sujeitos filmados. No Brasil, esse deslocamento vem ocorrendo desde a década de 1980, associado a oficinas de formação em audiovisual, situadas principalmente nos nichos populares e marginais – entre os apartados da situação social (LINS e MESQUITA, 2008).

Como parte destas iniciativas, o projeto Vídeo nas Aldeias tornou-se referência de reconstrução da imagem do indígena, contrapondo e deslocando conceitos enraizados na sociedade metropolitana sobre os povos originários da América do Sul. Por meio de suas oficinas – que se aprimoram em prática continuada –, o VNA cria ficções e documentários, “autoetnografias”30 – ou melhor dizendo, autoetnografias fílmicas – nas quais os indígenas expressam aspectos de sua cultura e buscam o diálogo com o não índio, em situação de encontro interétnico.

Na medida em que, por meio do cinema, apresentam seu cotidiano, esses filmes podem ser vistos como manifestação do que Manuela Carneiro da Cunha denomina de “cultura com aspas”: valem-se de definições metropolitanas para performar e citar, reflexivamente, sua própria cultura, e o filme aparece como espaço performativo, que não apenas representa determinados aspectos culturais, mas os coloca em movimento e transformação.

Não sem algum risco, poderíamos dizer que essas mutações no campo do cinema repercutem, em seus próprios termos, transformações no campo da antropologia, como analisou Ramos (2007), em relação aos indígenas que passaram de “sujeitos de pesquisa a pesquisadores”, levando os antropólogos a uma reflexão ética e política no campo da etnografia. Segundo a autora, essa reação se deu,

30 A expressão é utilizada, por exemplo, pela pesquisadora Ivana Bentes para caracterizar o trabalho

de realizadores indígenas em que estes registram e editam suas próprias imagens, passando de “objetos a sujeitos do discurso” ao fazer uma “autoetnografia" ou "auto-documentário” (BENTES, 2004).

entre outros motivos, por conta dos abusos de certos pesquisadores “em tratar o espaço indígena como terra de ninguém” (p.32), resultando em crescente tomada de consciência dos povos originários no Brasil por seus direitos. Ramos pontua, também, como a reação foi sendo construída em torno do trabalho dos pesquisadores, quando os temas de pesquisa passaram a gerar conhecimento estratégico que contribuísse para a defesa dos direitos indígenas. Esse compromisso do etnógrafo com uma justiça étnica passava pela construção das relações na aldeia e, de modo progressivo, levou a percepção dos indígenas sobre o forte apelo político das pesquisas.

Não raro, o trabalho do etnógrafo vê-se questionado nas aldeias, dificultando iniciativas de pesquisadores que se valem de repertórios conceituais e metodológicos tradicionais da etnografia. Em muitos casos, observa Ramos, a etnografia virou uma moeda de troca para o grupo pesquisado, que só aceita o pesquisador se a comunidade receber benefícios e contrapartidas – investimentos na infraestrutura na aldeia, por exemplo –, se o trabalho favorecê-los politicamente, ou ainda, se o tema partir do próprio grupo a ser pesquisado.

Em sua reflexão, Ramos problematiza as relações etnográficas atuais, questionando assim a relação de poder da metrópole sobre os que historicamente foram tratados como “objetos de estudo”. Nesse sentido, a autora percebe a necessidade e a oportunidade de uma revisão de interesses, métodos e atuação antropológicos, no aprofundamento da compreensão da lógica e sentido do outro, na busca de uma tradução cultural à altura das complexidades do encontro em curso. Reivindica ainda que os resultados possam se converter “em instrumentos de defesa do direito à diferença” sem “sentimentos de culpa”, sem reduzir o outro a “traços estereotipados”, sem torná-lo “curiosidade vulgar”(RAMOS, 2007,p.15).

Ao mesmo tempo, Ramos observa que a crescente escolarização indígena favoreceu o surgimento de pesquisadores oriundos de “dentro” de sua própria comunidade que passaram a realizar, eles próprios, suas “autoetnografias”. Algo que a antropóloga comenta a partir de sua própria experiência de pesquisa e militância entre os Yanomami: segundo ela, reversamente, os indígenas a observavam, estudavam seus métodos de coleta de dados, da mesma maneira como ela os estudava, assimilando modos e conceitos antropológicos “como dispositivos para fazer sentido da nova ordem de relações interétnicas que os afetava cada vez mais” (p.18). Assim, o próprio convívio com os antropólogos levou muitos indígenas a

estudar e, cada vez mais, tomar consciência de seus direitos, o que desloca o papel do etnógrafo para uma atuação coadjuvante nessa relação.

Depois de uma longa trajetória de submissão forçada, os povos indígenas no Brasil, e alhures, agem agora com a urgência de assumir a produção de etnografias como capital simbólico. É como se, do ponto de vista nativo, a etnografia fosse importante demais para ser deixada aos etnógrafos. A busca, simbolicamente saturada, por repatriar a identidade cultural, que teve início com o ato político de auto-representação, completa-se quando a produção etnográfica é devidamente apropriada.(RAMOS, 2007, p.21)

Ramos acrescenta, no entanto, que a transmissão da lógica indígena a um público não indígena, sem a mediação do antropólogo, “pode ser uma tarefa extremamente difícil” e talvez resida aí um dos trabalhos do etnógrafo nos dias atuais. Da mesma forma, parece-nos que, em alguma medida, o papel do Vídeo nas

Aldeias apresenta também essa dimensão de mediação entre mundos – mediação interétnica – por intermédio do cinema, ao mesmo tempo em que estimula as autoetnografias fílmicas de diferentes grupos étnicos presentes em território brasileiro e em suas fronteiras.

A experiência audiovisual do VNA se situa estrategicamente nesse momento em que os indígenas tomam consciência da sua própria cultura e passam a citá-la por meio de diferentes modos de expressão, entre eles, os filmes, destacando aspectos que consideram importantes para o cotidiano das aldeias e para as relações exteriores. Ao reivindicarem sua autorrepresentação, os indígenas tornam- se sujeitos das relações que estabelecem com o outro, tomando reflexivamente o valor de sua cultura como forma de preservação, transformação e de negociação política.

A passagem da Antropologia ao Cinema, mais uma vez, oferece ricas questões, na medida em que, aqui, é outro repertório que se submete aos processos de tradução: os conceitos, procedimentos e práticas do cinema, suas tecnologias, sua história e as relações específicas que instaura. Tudo isso é colocado em jogo nesse processo, aqui antecipado como hipótese, de indigenização do cinema.

Reiteramos, contudo, que esse gesto de passar a câmera ao outro não garante a emancipação expressiva deste outro. Trata-se de uma complexa negociação – afinal, as equipes de produção envolvem índios e não índios – constituída de opções metodológicas, formais e institucionais. É nesse sentido que nos indagamos sobre as potencialidades que a autorrepresentação indígena traz ao cinema.