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O cinema do Coletivo Mbyá-Guaran

3.1 Duas aldeias, uma caminhada: pensamento indígena e reflexividade

3.1.1 A dança e o canto em cena

Quando observamos que os filmes do coletivo Mbyá-Guarani traziam elementos musicais e de dança para a mise-en-scène, um problema apareceu para nossa análise. Como compreender os rituais quando os filmes não apresentam a preocupação de explicá-los?

Nos filmes do coletivo Mbyá-Guarani, os rituais não são tomados em sua plenitude temporal e espacial, nem são contextualizados de modo didático. Como espectadores comuns, sem experiência etnográfica, temos uma apreensão fragmentária, parcial e situada, de traços dos rituais que se distribuem nas cenas cotidianas do filme.

O que nos parece é que os atos ritualísticos são mostrados como uma entre outras atividades cotidianas das aldeias, importantes para a manutenção e renovação das práticas espirituais entre as diferentes gerações. Ao mesmo tempo, entendemos as práticas ritualísticas como sendo, em parte, organizadas pela mise-

en-scène e pela montagem do filme. Ou seja, o ritual nos parece mais construído – pela presença da câmera e efeitos de montagem – do que simplesmente “apreendido”. Em contrapartida, essa construção não se impõe, mas compartilha de outras atividades cotidianas, como se o cinema se fizesse ali também envolvido nessas práticas.

Em Duas aldeias, uma caminhada, a presença musical na mise-en-scène se mostra logo na sequência inicial, quando vemos um ritual de chegada na aldeia. A música aparece ao fundo, em background, sobre a imagem da família do cacique que sai de sua morada e se dirige para uma roda de chimarrão (ka‟y‟u) na área

externa da aldeia – as mesmas pessoas serão vistas, mais adiante, postadas em pé, em frente a uma das moradas, saudando os que se aproximam. De início, esse som não permite ao espectador identificar sua origem na cena, dando a impressão de uma presença sonora sem relação imediata com o espaço diegético, o que logo se desfaz pelo corte para o plano seguinte, quando a dimensão sonora adentra a cena por meio da presença dos músicos e seus instrumentos. À frente, o Xondarovichá Juancito, com o Popyguá – claves de ritmo, instrumento composto de duas varas amarradas – usado para anunciar a chegada de pessoas à aldeia. Atrás, em fila, seguem os jovens, entre eles os instrumentistas com o mbaraka (violão)39,

39 O livro, Yvý Poty, Yva‟á - Flores e Frutos da Terra (LUCAS e STEIN, 2012) descreve cantos e

empunhado para cima junto ao seu peito, e a ravé (rabeca), instrumento semelhante ao violino, fixado lateralmente entre o braço e o corpo do músico.

Figs. 80 e 81: Juancito à frente com o Popyguá e, logo atrás dele, jovens músicos com o mbaraka

(violão) e a ravé (violino).

Fonte: fotogramas do filme Duas aldeias, uma caminhada.

O filme ganha em dimensão sonora com a entrada em cena do som de outro instrumento, o takuapu (bastão de ritmo), que introduz um compasso bem marcado à música. O bastão de ritmo é executado por uma das mulheres anfitriãs, antecipada na tomada anterior saindo de sua morada. O instrumento de taquara é batido no chão produzindo um som característico, grave e forte. Segundo Montardo (2002), seu papel na mitologia e no ritual vincula-se à divindade Hy‟apu-Guasu, dona do

instrumento que bate o takuapu e faz os sons dos trovões sobre a terra “que vai nos comer”, como dizem os Mbyá.

Na construção do ritual para o filme, o líder espiritual Juancito ensina para os mais novos como devem se portar diante daqueles que os recebem, saudando-os com a palavra “aguyjevete”. Os enquadramentos intermediários destacam os movimentos dos corpos. A música permanece no espaço sonoro da cena, enquanto um por um dos presentes vai passando em cumprimento aos anfitriões para depois escutarem as palavras de Juancito sobre a importância de os jovens não abandonarem as tradições culturais dos Guarani. Dessa maneira, o filme concentra- se nas práticas intraétnicas e suas conexões espirituais, atribuindo à cena um caráter endógeno. Por fim, o espaço sonoro marcará também a passagem temporal

Poty Benites da Silva, diz que, em suas apresentações, eles usam um violão de cinco cordas (mba‟epú).

e espacial entre a sequência que termina e a seguinte, com os jovens a adentrarem a mata.

Figs.82 e 83: o takuapu é batido contra o chão, como o som dos trovões sobre a terra “que vai nos comer”.

Fonte: fotogramas do filme Duas aldeias, uma caminhada.

A breve descrição nos indica aspectos ritualísticos reiterados no filme como pertencentes aos costumes Mbyá. No entanto, insistimos, o filme não subsidia o espectador com detalhes precisos a respeito dos rituais, mas permite que os experienciemos precariamente, amalgamados ao cotidiano da aldeia. O som tem presença e materialidade na cena, ou seja, é efetivamente tocado pelos Mbyá- Guarani, mas sua dimensão para o grupo parece ir além do que o quadro cinematográfico pode mostrar. A presença dos rituais evoca um plano, digamos, cosmológico. Nessa perspectiva são complexos os efeitos da presença sonora e musical no filme: ao mesmo tempo em que reforça um matiz realista à mise-en-

scène, ou seja, de redundância entre campo sonoro e campo visual (AUMONT,

2011), funciona também como operação de vínculo com o que está fora da imagem – mas que a constitui. Trata-se de um componente fílmico que nos remete ao extracampo (BRASIL, 2012), isto é, aquilo que, evocado pela imagem, não se encontra nela totalmente visível. De outro modo ainda, poderíamos afirmar que o extracampo em Duas aldeias, uma caminhada possui uma dimensão mítica “intrínseca e coextensiva ao campo” (BRASIL, 2012, p.06). Vez ou outra, o extracampo faz-se notar por estilhaços, por traços e fragmentos que não permitem ao espectador uma apreensão totalizante. Como se o filme fosse aberto ao fora, que

nele se insinua em seus traços, insuficientes e esgarçados. Aqui, música e ritual parecem exercer essa função.

Figs. 84 e 85: os jovens se aproximam para a saudação: “aguyjevete”. Fonte: fotograma do filme Duas aldeias, uma caminhada.

Em seus estudos de etnomusicologia, Deise Montardo (2002) aponta para o “caráter invocatório” que a música tem para os Guarani. Os instrumentos são como veículos para “atingir a escuta dos deuses em sua morada” (p.32). Estes respondem, enviando seus emissários, “batedores”, que assistem a cantos e danças e retornam para informá-los “quão alegres (ovy‟a) estão os habitantes da terra” (p.32). Segundo Montardo, essa experiência de percorrer os caminhos e encontrar os deuses é feita fundamentalmente pelo corpo que na hora da dança “adquire a radiança, o hendy”, pois só a palavra, sem música e dança, é insuficiente para se alcançar esse efeito.

Ainda, segundo Montardo, o ritual entre os Mbyá envolve dois momentos: o

sondaro ou xondaro é o aquecimento para o porahéi, os cantos e as danças. No

filme, somos apresentados, primeiro, aos cantos do coral infantil e a uma apresentação das crianças na cidade e, em seguida, temos a dança. Montardo nos fornece mais alguns aspectos sobre esse ritual presentes no filme. A música do

sondaro é executada pelo mbaraka (violão) e a ravé (rabeca), enquanto

acompanhamos uma dança com movimentos que lembram uma luta. É um ritual que envolve equilíbrio e a defesa do corpo. Sua execução acompanha a posição do sol e antecede os rituais noturnos dentro da opy, a casa de reza.

Fig.86: presença do mbaraka (violão) e a ravé (rabeca) no sondaro. Fonte: fotograma do filme Duas aldeias, uma caminhada.

No filme, observamos que as danças envolvem esses movimentos corporais que simulam uma luta. A cena inicia-se ao som dos instrumentos musicais em off, numa passagem sonora da sequência do coral infantil na cidade para esse retorno à aldeia, onde vemos Juancito no centro do quadro, em plano aberto, dançando sozinho no pátio. Sua coreografia alterna a batida dos pés no chão, mantendo os joelhos flexionados e descreve uma coreografia circular. No plano seguinte, surgem os músicos e um jovem à sua frente, convocado a entrar na dança. Notamos a presença de duas câmeras que acompanham os movimentos dos corpos, cujos pontos de vista vão se alternando na cena evidenciados pela montagem. Outros índios se aproximam e logo são cinco jovens já envolvidos na dança, entre eles, Ariel Ortega.

Montardo (2002) descreve o ritual como uma coreografia baseada em três pássaros: manoi – colibri, para o aquecimento do corpo; taguato – gavião, para evitar a entrada do mal na opy; e mbyju – andorinha cuja representação no ritual encena uma luta onde um deve “derrubar” o outro ou esquivar-se com o corpo para fortalecer o sondaro. Os participantes dançam com os joelhos dobrados, mantendo- se alertas, olhando para todos os lados.

Figs.87, 88 e 89: a câmera, fora do ritual, capta os movimentos dos corpos que simulam luta. Fonte: fotograma do filme Duas aldeias, uma caminhada.

Percebemos que uma das câmeras participa diretamente do ritual. O cinegrafista também faz parte da dança junto aos demais. Por estarem dentro do ritual, as imagens tornam-se instáveis, às vezes trêmulas, sem definição precisa de enquadramentos, tomando o ponto de vista de um personagem “em situação”.

A outra câmera mantém-se de fora do ritual, um pouco mais afastada dos corpos, mas não muito, pois o próprio espaço da encenação é restrito como as imagens denunciam. Essa segunda câmera, muitas vezes, expõe em cena a presença do primeiro cinegrafista participando do ritual e desvelando, então, o antecampo.

Quanto ao coral, a canção entoada no filme reforça a temática central expressa no documentário sobre a situação dos Mbyá, expropriados de suas terras pelo homem branco.

Queremos nossas terras de volta para construir as nossas casas de reza. Na nossa aldeia já não temos taquara boa. Já não temos árvores boas, para fazer as nossas casas de reza, pra gente ficar feliz.

Observamos que o canto das crianças aparece em situações distintas no filme. Num primeiro momento, ele reforça a ideia da música como traço da cultura Mbyá presente na aldeia. Assim, aparece como “força centrípeta”, voltada “para dentro” da aldeia. Os cantos das crianças são uma forma de continuar transmitindo os saberes tradicionais Mbyá para as novas gerações, como registra a kunhã karaí Florentina Pará no livro Yvý Poty, Yva‟á - Flores e Frutos da Terra (LUCAS e STEIN,

2012). Como antecipamos, a sonoridade estabelece as relações entre os Mbyá e suas divindades. Desse modo, o canto torna o cotidiano da aldeia permeável ao mundo das divindades que não pode ser apanhado totalmente no imediato do quadro, mas situado num fora – espaço do extracampo, mítico e cosmológico. Num segundo momento, a presença do grupo infantil, cantando em um espaço urbano,

situa esses mesmos traços, agora voltados “para fora” da aldeia, abertos às relações interétnicas que revelam aspectos políticos vinculados à questão da terra. Estes dois movimentos – centrípeto e centrífugo – não se distinguem totalmente e se imbrincam por meio do canto.

Figs.90 e 91: o coral na aldeia e na cidade: passagem do cotidiano intraétnico para as relações interétnicas.

Fonte: fotogramas do filme Duas aldeias, uma caminhada.

Algo que chama a atenção nessa sequência de cantos e danças é a fala de dois personagens mais velhos da aldeia. Uma senhora sentada no pátio externo acompanha os homens a dançar e exclama: “quem dera fosse sempre assim”. Em seguida, logo que a dança termina, Juancito parece compartilhar o mesmo sentimento da mulher, ao dizer que “podia ser sempre assim, pra que todos vissem como é”, exprimindo um sentimento que sugere a ausência de rituais na aldeia, como aquele ali encenado. Isso nos leva a um entendimento de que essas falas expressam o sentimento de uma cultura que está em transformação e que se pensa e se reelabora no momento mesmo em que a cena se faz.

Mais uma vez, o filme dá indícios do seu caráter de construção, evidenciando que certas ações foram feitas para a mise-en-scène: a cultura dos Mbyá se elabora e se renova com o cinema e por ele provocada. As falas dos dois personagens expõem para o espectador um sentimento de ausência de algo do mundo vivido e que o filme torna presença. Essa existência que se faz para o filme se reverte também para o cotidiano daqueles que constituem o grupo. O cinema aparece, então, como possibilidade de invenção da cultura para que “os de fora” conheçam o cotidiano dos Mbyá e para que “os de dentro” possam performar sua própria cultura (e aqui notamos a performatividade notável no âmbito do cinema indígena). Na

esteira de Carneiro da Cunha, podemos afirmar que o filme expressa, assim, a forma como os Mbyá “reconciliam prática e intelectualmente sua própria imaginação”(2009, p.355), para que também o outro possa, a sua maneira e afetado pelo filme, imaginá-los.

Fig.92: “quem dera na aldeia fosse sempre assim”, diz a senhora num gesto reflexivo. Fonte: fotograma do filme Duas aldeias, uma caminhada.