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Entre a Antropologia e o Cinema: da representação à autorrepresentação

1.2 A representação indígena no documentário brasileiro.

1.2.1 Registros da Comissão Rondon

Será a partir do pensamento positivista identificado com os ideais do Exército que o documentário brasileiro abrigará, pela primeira vez, a representação do indígena. Os índios são filmados nessa época por profissionais que colaboraram com a Comissão de Linhas Telegráficas e Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas, a Comissão Rondon. É o que se observa ao assistirmos aos filmes do major Luiz Thomaz Reis, reconhecido pela qualidade fotográfica de suas imagens e pelo vasto material colhido entre 1914 e 1938 nos sertões brasileiros. São registros importantes de um período em que os indígenas viviam mais plenamente seu “modo de vida” baseado na ancestralidade.

De fato, o fotógrafo Thomaz Reis é um dos precursores do filme etnográfico, mundialmente, já que seus filmes antecedem aos trabalhos de Robert Flaherty, por exemplo. Mas nem sempre ele é lembrado pelos seus feitos entre os teóricos do cinema documentário23.

Uma importante contribuição em torno da representação do indígena no documentário brasileiro encontra-se no livro de Fernando de Tacca, A imagética da

Comissão Rondon, que analisa a construção oficial da imagem do índio pelo

governo brasileiro, no período das expedições do Marechal entre as regiões Norte e Centro-Oeste do país.

23 Erick Barnouw em Documentary: a history of the non-fiction film não cita o pioneirismo dos

brasileiros para o cinema mundial. Labaki (2006) lembra que tanto Reis como Silvino Santos passaram despercebidos pela crítica brasileira. Nem Alex Viany em Introdução ao Cinema Brasileiro (1959), nem Glauber Rocha em Revisão Critica do Cinema Brasileiro (1963). Paulo Emilio Sales Gomes omite Santos e cita Reis de passagem em seu texto “A expressão social dos filmes documentais no cinema mudo brasileiro (1898-1930)” publicado em 1974.

Como observa esse autor, através dos filmes do Major Thomaz Reis, identificamos uma concepção oficial da imagem do indígena atrelada aos interesses do governo brasileiro da época. O índio aparece inicialmente como “bom selvagem” mostrado no filme Rituais e Festas Bororo (1917), no qual se destaca o registro da cultura, apresentando os nativos como participantes do mito da origem da nação. A primeira parte do filme centra-se nas práticas de preparo do ritual Jure. Os homens são mostrados na pescaria com o uso do cipó timbó, um narcótico que deixa os peixes “atordoados” e vulneráveis à pesca. E depois, no manuseio do artesanato, destacando-se a habilidade indígena no fabrico de cintas. As mulheres são mostradas ainda no preparo das cerâmicas que serão usadas em cerimônias fúnebres.

Figs. 09 e 10: os bororo mostrados em suas práticas culturais de preparativos de festas e funerais. Fonte: fotogramas do filme Rituais e Festas Bororo.

Em sua análise do filme, Tacca (2001) observa que, em nenhum momento, ele situa a presença dos missionários entre os Bororo, podendo sugerir a falsa impressão ao espectador de que os índios “estão completamente isolados” (p.21), sem contato com os brancos. A câmera do major Thomas Reis se apresenta, muitas vezes, próxima daqueles que são filmados, o que não se traduz em intimidade na relação, uma vez que notamos frequentemente o olhar do indígena devolvido para aquele que o filma, revelando esse distanciamento.

Figs. 11 e 12: homens manufaturando tecido e mostrados sem a presença missionária na tribo. Fonte: fotogramas do filme Rituais e Festas Bororo.

É notável, também, o fato dos indígenas serem, muitas vezes, retirados de suas práticas cotidianas para posar para a câmera (figuras 13 e 14), de modo a expurgar do quadro a dimensão do acontecimento, como lembra Guimarães (2012, p.56), “em favor de um arranjo visual aprisionador e centrípeto”.

Figs. 13 e 14: a câmera aprisiona os corpos e revela o distanciamento entre quem filma e quem é filmado.

Fonte: fotogramas do filme Rituais e Festas Bororo.

Na segunda parte de Rituais e Festas Bororo são apresentados, então, os rituais. A câmera mantém-se de fora, não participativa, seu antecampo em recuo a observar as cerimônias. A montagem didática esforça-se em nos apresentar os principais aspectos do ritual, intercalando entre as imagens os letreiros explicativos.

Figs. 15 e 16: a câmera mantém-se fora do ritual, observando a cerimônia. Fonte: fotogramas do filme Rituais e Festas Bororo.

Em Ronuro Selvas do Xingu, os indígenas são mostrados como “pacificados”, segundo Tacca. Trata-se de uma expedição de desbravamento sobre o rio Ronuro, revelando-se o encontro com os indígenas que, ao final, recebem as vestes do homem branco. Em um terceiro momento de sua produção, Thomaz Reis mostra o “índio integrado/aculturado”, como em filmes como Os Carajás (1932),

Inspetorias de Fronteiras – Alto do Rio Negro (1938), Viagem ao Roraimã (1927), Matto Grosso e Paraná – fronteiras com o Paraguai e Argentina e ainda em Parimã, Fronteiras do Brasil (1927). Estes são filmes em que a representação do indígena

revela o guardião das fronteiras: índio na gênese e brasileiro em sua nacionalidade. Em Ao Redor do Brasil: aspectos do interior e das fronteiras brasileiras (1932), Thomaz Reis apresenta o contato do homem branco com os nativos habitantes de um Brasil selvagem. São imagens produzidas a partir de Mato Grosso numa expedição em direção à Ilha do Bananal; depois, passando pelo Amazonas, seguindo pelas fronteiras do Brasil com o Peru, no Acre, e retornando a Mato Grosso na fronteira com a Bolívia. Esse filme reúne uma série de curtas produzidos por Reis junto à Expedição de Rondon.

Figs. 17 e 18: índios Caiuá como integrados à sociedade branca, frequentando a escola. Fotogramas do filme Matto Grosso e Paraná - fronteiras com o Paraguai e Argentina.

Das picadas que abrem caminho em meio à selva, desbravando rios, ao encontro com os primeiros indígenas na região do rio Xingu, as imagens mostram o desbravador branco como homem que busca a aproximação pacífica com o outro selvagem, dividindo com ele a comida e distribuindo brindes entre os Camaiurá, em seguida, visitando a nação Auêti e depois Ianahuquá. Além de planos gerais da aldeia, as imagens enquadram os índios em closes e primeiríssimos planos, primeiro de frente, depois de costas. Estratégia que lembra os processos de identificação próprios da fotografia científica ou criminal. Em outras passagens, são submetidos a medições antropométricas: anota-se a estatura, observa-se o diâmetro da cabeça dos nativos, o corpo, a cor da pele. Há um claro interesse em fazer dessas imagens uma espécie de registro científico que possa, de alguma forma, circunscrever as diferenças físicas entre os selvagens em vias de pacificação e o homem civilizado.

Em outro letreiro, sugere-se a construção de um saber branco, metropolitano, que observa científica e didaticamente o comportamento do indígena. O texto nos informa que “logo que viram os expedicionários os índios conservaram-se ocultos em suas palhoças. As mulheres quase todas receavam aparecer”. E mais adiante, que “os índios se apresentam pacíficos, mas reservados”. É possível perceber nas imagens o olhar, misto de desconfiança e interpelação, dos indígenas, estes que parecem estar pouco a vontade diante do enigmático aparato fílmico à sua frente.

Figs. 19 e 20: imagens que mostram o interesse científico das expedições nos indígenas.

Figs. 21 e 22: imagens de índio ianahuquá destaca o crânio visto de frente e de costas.

Figs. 23 e 24: índios “pacíficos, mas reservados”, sugere os letreiros do filme. Fonte: fotogramas do filme Ao Redor do Brasil.

É curioso ver como as imagens do major Thomaz Reis revelam uma preocupação em aculturar o outro “selvagem”, integrando-o e adequando-o aos costumes ocidentais e às expectativas do Estado Nacional. Numa das cenas, entregam-se roupas aos nativos como brindes. Nota-se, contudo, uma oposição entre o que as imagens mostram e o que nos informam os letreiros: os indígenas, vestidos, estão visivelmente desconfortáveis, ao contrario do que nos diz o texto: “embora muito justas eles ficaram contentes com essas roupas. Em breve teremos mais estes trabalhadores no convívio da sociedade”.

Os enquadramentos do filme, assim como a relação entre o antecampo e os sujeitos filmados, indicam, ainda que não totalmente, a convergência de propósitos entre o empreendimento estatal e a exploração cinematográfica. Assim como a expedição, o antecampo avança e enquadra, em visada integracionista, comprometida com a conversão dos povos indígenas aos modos “civilizados”, de maneira a recortar o quadro para melhor ordenar, classificar e controlar aqueles que são filmados (GUIMARÃES, 2012, p.56).

Figs. 25 e 26: a imagem do índio pacificado e convertido aos modos civilizados. Fonte: fotogramas do filme Ao Redor do Brasil.

A justificativa do esforço dos desbravadores para integrar os indígenas ao mundo ocidental é ainda legitimada por imagens de um posto avançado, onde os moradores indígenas estão adaptados à civilização, cultivando suas lavouras. Da mesma forma mostra-se uma mulher de traços indígenas casada com um funcionário público. Uma pose para a câmera, o casal, junto, sugerindo a felicidade que o mundo civilizado pode oferecer àqueles que saíram da sua condição

selvagem, em estreito contato com o mundo ocidental. Nesse caso, tornar-se cidadão brasileiro implica o reconhecimento como “trabalhador”, parte do sistema de produção rural e mesmo industrial.

Figs. 27 e 28: a imagem do índio integrado, trabalhando na lavoura. Fonte: fotogramas do filme Ao Redor do Brasil.

Figs. 29 e 30: a imagem do índio integrado que constitui família com o não indio. Fonte: fotogramas do filme Ao Redor do Brasil.

Na mise-en-scène desses filmes, reiteramos, nota-se a convergência entre o olhar do cinegrafista e o ponto de vista do Estado. O cinema acompanha a expedição, desbravando o território assim como os modos de vida “selvagem”, necessitados da ação do Estado. Da mesma forma que a expedição que adentra os territórios inexplorados do início do século XX, o antecampo avança, à medida que a comitiva percorre os sertões desconhecidos. Trata-se de um antecampo que

desbrava paisagens e ausculta os corpos, em sintonia com o discurso oficial da época.

Assim, Ao Redor do Brasil se organiza em torno de um discurso institucional alinhado ao pensamento governamental do progresso da nação em harmonia com as riquezas naturais do país. As imagens intentam mostrar que o esforço heroico daqueles que se aventuraram pela selva brasileira valera a pena, pois, no final, os indígenas deixaram a sua condição de selvagens para se tornarem trabalhadores do Brasil. O filme guarda a teleologia de uma rendição final do indígena, que aceita a cultura metropolitana de forma ordeira e passiva, integrando-se ao sistema produtivo nacional. O telos do filme será, em certo sentido, a nação, em discurso integracionista.