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3 BRASIL: DA DITADURA AO LIBERAL-NOVO-DESENVOLVIMENTISMO,

3.2 O LUGAR DA AGRICULTURA NA TRAJETÓRIA HISTÓRICA BRASILEIRA

3.2.3 A agricultura brasileira a partir dos governos do PT

A partir dos governos petistas, a dinâmica da economia da agricultura industrial foi aprofundada, mas, ao mesmo tempo, ampliaram-se os espaços ao segmento da agricultura familiar. Tais transformações representam a diferenciação do papel do Estado em relação ao seu período neoliberal. Segundo Fernandes (2015), enquanto no período desenvolvimentista o Estado centralizava toda ação; no período novo desenvolvimentista as partes interessadas (ou

stakeholders) como as corporações, as organizações e os movimentos socioterritoriais têm

participado cada vez mais na formulação de políticas públicas. Este elemento é central pois, a partir do governo Lula, os movimentos sociais se inserem diretamente nas fases de concepção e execução das políticas públicas voltadas aos pequenos agricultores. Tal fato caracteriza a permeabilidade e a proximidade entre o Estado e a Sociedade Civil. Até então as relações

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Atualmente, a maior parte da produção brasileira de soja é exportada para a China. Em 2015, as compras deste país responderam por 57% do valor total exportado pelo Brasil (R$16 bilhões). Em 1997, este percentual era de apenas 11% (R$0,61 bilhão). A formação do complexo ‘soja-carne’ entre os dois países talvez seja a principal expressão de um novo regime alimentar global (NIEDERLE; WESZ JUNIOR, 2018, p. 49).

estatais estavam quase exclusivamente associadas aos grandes empresários e/ou à burocracia estatal. Com a inserção de representações da sociedade civil no interior do Estado fortaleceu- se o caráter relacional, de modo que protesto, proposição e co-gestão passaram a fazer parte da ação social coletiva contemporânea (GRISA; SCHNEIDER, 2015).

Ao longo deste processo, a questão agrária foi assumindo novos significados. A luta pela reforma agrária perdeu força, apesar de manter-se atual. Mattei (2013) destaca que os meios de comunicação, uma parcela da academia e empresas de pesquisas governamentais atuaram para descaracterizar a importância da reforma agrária como uma estratégia de desenvolvimento econômico brasileiro. Por outro lado, movimentos sociais e algumas correntes da academia mantêm a pertinência da reforma agrária como uma alternativa central à superação do subdesenvolvimento. Nesse contexto, Ramos (2014, p. 689) afirma que a persistência da questão agrária no Brasil tem sido escamoteada ou atenuada por outros aspectos, tais como:

a) pelo grande crescimento de algumas produções nas regiões de fronteira, mesmo que criando números pequenos de empregos ou ocupações; b) a criação de projetos de assentamentos de trabalhadores sem terra em tais regiões; c) o grande crescimento de empregos (precários ou não) na construção civil; d) a criação e aprimoramento de políticas assistencialistas ou compensatórias (previdência rural, Bolsa Família, etc.); finalmente, como aspecto estrutural, e) a continuidade da queda de natalidade/fecundidade na população brasileira após 1960.

Ramos (2014) também reforça que a propriedade fundiária continua atrelada ao domínio econômico, social e político nos âmbitos locais, regionais ou mesmo nacional e, portanto, o caráter patrimonialista continua central. A maior evidência dessa questão, segundo o autor, é a atuação da bancada ruralista no Congresso Nacional, a qual é capaz de impor, redirecionar e inviabilizar iniciativas e ações do Poder Executivo. O Poder Executivo, por sua vez, também apresentou a cisão da grande agricultura e pequena agricultura representada pela atuação de dois Ministérios para o rural com estruturas, objetivos e orçamentos bastante diferenciados: o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Por sua vez, Fernandes (2015) aponta que o poder executivo, cada vez mais influenciado pelo protagonismo e participação da sociedade civil, se tornou responsável por gerar políticas públicas mais ou menos emancipatórias ou subordinadas, de acordo com a correlação de forças em disputa.

Como consequência desse processo, Grisa e Scheneider (2015) destacam que, desde 1994, pode-se identificar três gerações de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento

rural: a primeira geração apresenta um caráter setorial basicamente agrícola (crédito rural, seguro da produção e de preço) e agrário (política de assentamentos de reforma agrária); a segunda geração, constituída a partir de 1997, apresenta um referencial social e assistencial (destaque para Bolsa Família, Programa Nacional de Habitação Rural e Programa de Desenvolvimento Territorial); e a terceira geração, a partir de 2003, possui um referencial para a construção social de mercados para a segurança alimentar e sustentabilidade ambiental (com destaque para o Programa de Aquisição de Alimentos, Programa Nacional de Alimentação Escolar, Fortalecimento de Agroindústrias, Selos e Certificações).

As próprias transformações dos objetivos das políticas públicas do rural dão a tônica da transformação da questão agrária no Brasil nos últimos 30 anos. Para Medeiros (2015), atualmente vive-se mais do que a luta pela terra; incorpora-se a luta pela legitimidade do direito a um território, representado pelas singularidades dos grupos sociais tais como quilombolas, geraizeiros, faxinalenses, quebradeiras de coco, povos da floresta, pescadores artesanais, dentre outros. Ainda assim, a questão fundiária permanece central, na medida em que a disputa pela terra continua latente quando grupos sociais lutam para a delimitação de áreas indígenas, criação de unidades de conservação ou mesmo assentamentos de reforma agrária e quilombolas. Em última instância, são esses movimentos que, atualmente, fazem frente aos processos de land grabbing que marcam o avanço do regime alimentar corporativo (SAUER; BORRAS JÚNIOR, 2016; SAUER; LEITE, 2012) e que, atualmente, evidencia a continuidade do fenômeno de concentração de terras. Os dados censitários demonstram que praticamente não houve alteração significativa da distribuição fundiária entre 1980 e 2006. As propriedades com menos de 100 ha ocupam 21,20% das áreas de terra (dentre os quais destaca-se que aproximadamente 50% dos estabelecimentos rurais possuem menos de 10 há e ocupam somente 2,30% das áreas de terras). De outro lado, 0,9% dos estabelecimentos rurais possuem mais de 1000 ha e ocupam 45% das áreas de terras agricultáveis (SIDRA-IBGE, 2019).

A tese de Caio Prado Junior de que o Brasil baseia sua competitividade na exploração desmesurada da abundante e vasta disponibilidade de recursos naturais desde o período colonial continua presente (MATTEI, 2013). Assim, a questão ambiental se entrelaça com a questão agrária. Delgado (2012) ressalta que o modelo no qual está assentado a economia do agronegócio tem necessária implicação sobre dois princípios de equilíbrio ambiental: princípio da biodiversidade e a contribuição da agricultura moderna à emissão de dióxido de carbono na atmosfera. Desse modo, há um deslocamento do foco da luta pela terra para a

contestação do modelo produtivista com o excesso de insumos químicos e das biotecnologias, a defesa da soberania alimentar, a incorporação da dimensão ambiental e a consequente valorização de experiências tradicionais e camponesas.

Por sua vez, a imbricação entre a questão agrária, a questão ambiental e, mais recentemente, a questão alimentar repercute em um novo modelo de produção e consumo, onde a influência das grandes empresas multinacionais da agricultura industrial seja limitada, apreciando mais as articulações mercantis locais e regionais, o que novamente irá trazer à tona a importância das redes alimentares alternativas e os mercados cívicos para a oferta de alimentos saudáveis (MEDEIROS, 2015; RENTING; SCHERMER; ROSSI, 2012; CUCCO; FONTE, 2015). Como destaca McMichael (2008; 2007) na medida em que a nova questão agrária tem se convertido em uma “questão alimentar”, a explicação para a ação dos movimentos sociais agrários precisa se conectar ao modo como eles propõem reestabelecer um nexo entre agricultura, sociedade e natureza. Nesse contexto a bandeira da agroecologia ganhou espaço nos repertórios de ação coletiva, e forçou o governo a desenvolver políticas públicas para apoiá-la. Vale destacar aqui o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), lançado em 2013, com o intuito de fortalecer as ações em torno de programas e ações indutoras da transição agroecológica e da produção orgânica e de base agroecológica e, portanto, contextualizadas às realidades das agriculturas familiares e camponesas (PETERSEN, 2013).

Após a consumação do impeachment de Dilma Roussef, parte significativa das estruturas governamentais (como o Ministério do Desenvolvimento Agrário) e políticas públicas com caráter social, inclusive àquelas voltadas à agricultura familiar, foram desmanteladas (MATTEI, 2017). O governo de Temer, amplamente apoiado pelos setores vinculados ao regime alimentar corporativo, basicamente ignorou (ou desprezou) todas as demandas relacionadas à agricultura familiar e concentrou novamente suas estratégias na geração de superávits para a balança comercial por meio da exportação de commodities.

Desse modo, a trajetória de desenvolvimento da agricultura no Brasil é geralmente interpretada como uma das grandes conquistas da ciência e tecnologia. De fato, os números impressionam. Segundo Barros (2014), a colheita de grãos no Brasil em 1975 foi de 45 milhões de toneladas, sendo que, em 2013, essa cifra atingiu 187 milhões de toneladas. Um crescimento de mais de 4 vezes em quase 40 anos. No caso da balança comercial brasileira, esse crescimento foi ainda mais significativo, passando de um saldo de U$7 bilhões em 1990 para U$73 bilhões em 2013. Vieira Filho e Fishlow (2017) ressaltam ainda que a agricultura

brasileira se transformou em um modelo eficiente de produção. Desde a década de 1960, a oferta de carne bovina e suína quadruplicou e a produção de frangos expandiu 22 vezes. A exploração pecuária cresceu nove vezes e a produção de cereais saltou seis vezes. O Brasil se tornou um dos maiores exportadores mundiais de café, soja, carne bovina e suco de laranja representando dos maiores países exportadores de alimentos do mundo e que gerou a expressão ‘celeiro do mundo’.

Contudo, essa narrativa de sucesso não representa um discurso uníssono no campo dos estudos rurais. Pelo contrário, não são poucas as pesquisas em nível nacional e internacional que apontam as inconsistências nesses discursos, as quais ignoram os elementos que conformam uma crise civilizatória (GLIESSMAN, 2009; MACHADO; MACHADO FILHO, 2014; CAPORAL; COSTABEBER, 2007; SEVILLA-GUZMÁN, 2011; PETERSEN, 2013, entre outros). Somado a isso, assiste-se atualmente à proliferação de movimentos sociais que clamam por práticas mais sustentáveis da agricultura e que se inserem no que se convencionou classificar dentro do ‘guarda-chuva’ da agricultura alternativa. Em sua gênese, tais movimentos questionam o status quo do modelo da agricultura industrial e possuem o objetivo de desenvolver uma agricultura ecologicamente equilibrada, socialmente justa e economicamente viável (EHLERS, 1999). Um desses movimentos, refere-se ao MST, conforme se discute na próxima seção.

3.3 O MST E SUAS ESTRATÉGIAS DE CONSTRUÇÃO DE MERCADOS ALIMENTARES

Historicamente defendendo a reforma agrária como medida de redistribuição de riqueza, o MST vem alterando e diversificando seu repertório de ações coletivas (SILVA, 2010). Tendo em vista a conquista da terra e a estruturação da produção agropecuária e agroindustrialização, o MST agora encontra-se crescentemente envolvido com a discussão sobre a comercialização, tema central da parte final deste capítulo. Inicialmente, esta seção contextualiza o MST, refletindo sobre o seu papel enquanto ator desafiante do regime alimentar corporativo. A segunda subseção apresenta um panorama dos mercados alimentares desenvolvidos pelas organizações econômicas da reforma agrária, destacando as tipologias de mercados da agricultura familiar propostas por Schneider (2016). Por fim, apresenta-se a compreensão das lideranças do MST sobre suas estratégias de construção de mercados.