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A agricultura chilena nos governos da ‘Concertación’ (1990 – 2010)

4 CHILE: DA DITADURA AO NEOLIBERALISMO, FRAGMENTAÇÃO DOS

4.2 A TRAJETÓRIA DA AGRICULTURA CHILENA A PARTIR DO GOLPE

4.2.2 A agricultura chilena nos governos da ‘Concertación’ (1990 – 2010)

Com a transição para a democracia, o neoliberalismo pragmático chileno continuou, mas maior espaço foi concedido à agricultura camponesa e às políticas sociais. Segundo Kay (2002), no que tange à agricultura, três aspectos representam a continuidade dos governos da ‘Concertación’ em relação ao governo ditatorial:

a) manutenção das políticas de estabilidade macroeconômica,tendo em vista a atração de investidores estrangeiros;

b) manutenção do viés de exportações agrícolas que visavam geração de divisas na balança comercial e;

c) aumento da exposição do Chile à criação de novos mercados internacionais que se expressaram nos diversos Tratados de Livre Comércio tanto bilaterais como em blocos econômicos como o MERCOSUL e o North American Free Trade

Agreement (NAFTA).

Em última instância, foi intensificado o processo de competição internacional, o que pressionou a agricultura chilena como um todo à adaptar-se ao novo regime alimentar neoliberal-corporativo (McMICHAEL, 2016). Como destaca Kay (2002, p. 475),

A ênfase agora está na competitividade e não no protecionismo; no empreendedorismo privado, e não no intervencionismo estatal ou no desenvolvimentismo; na limitação das demandas sociais ao que é economicamente e politicamente possível; na continuidade e não na mudança; na competência técnica, e não ideologia e assim por diante.

Por outro lado, tendo em vista a construção de um ‘neoliberalismo com uma face humana’ (KAY, 2002), os governos da Concertación tinham o desafio de buscar uma maior inclusão dos camponeses marginalizados pelos impactos da abertura comercial e a consequente exclusão diante da falta de eficiência econômica (CHALLIES, 2010). Boyer (1999) ressalta que essas recomendações do Estado corrigir as falhas de mercado se tornaram explícitos nos relatórios do Banco Mundial a partir de 1993, visando um equilíbrio moderado entre intervenções públicas e ajustes descentralizados. No caso específico chileno, conforme se demonstrou na sua trajetória política econômica, a partir da metade dos anos 80, é reintroduzida uma complementaridade entre a intervenção pública e mercado. De acordo com Berdegué e Pizarro (2014, p. 6), havia um debate intelectual e político a respeito da pequena agricultura à época que trafegava por três vertentes distintas: uma tese funcionalista, que visava o fim da pequena produção no longo prazo; uma tese de proteção social aos pequenos agricultores diante da dinâmica capitalista; e uma terceira tese de fomento produtivo para a pequena agricultura se inserir de forma viável no contexto econômico.

El debate intelectual y político que se instala en los sectores que acceden al gobierno, enfrenta tres posiciones. La primera que es probablemente la dominante entre quienes están a cargo de la política económica general del país, es la visión neoclásica ortodoxa, según la cual la agricultura campesina tiene poca viabilidad de largo plazo, por lo que se postula que las políticas públicas deben orientarse a facilitar la transición de los hogares y de las personas a otros sectores sociales y a otras actividades económicas, y a reducir y mitigar los costos sociales de la

transición; ello va acompañado de un muy fuerte énfasis en políticas de reducción de la pobreza, que son uno de los sellos centrales del gobierno. La

segunda postura es de quienes proponían establecer una política cuyo objetivo central fuera dar protección especial a los sectores campesinos y de la pequeña agricultura, por ejemplo, a través de la política de precios y de subsidios, porque se pensaba que resultaba muy difícil que estos pudieran sobrevivir en una economía abierta y orientada a los mercados internacionales. Finalmente, un tercer grupo era de aquellos que argumentaban que segmentos importantes de la pequeña agricultura tenían buenas posibilidades de ser competitivos y viables aún en el difícil contexto económico imperante, y que las políticas debían estar orientadas centralmente a impulsar la productividad y competitividad de sus unidades productivas (BERDEGUÉ; PIZARRO, 2014, p. 6, grifo nosso).

Berdegué e Pizarro (2014) também apontam que o primeiro governo democrático optou pela terceira posição, o que se expressou na formulação da missão do INDAP e representou crescentes ações de fomento produtivo voltado à agricultura camponesa,

especialmente os estratos populacionais mais pobres.15 Challies (2010) elenca algumas dessas ações, tais como o Serviço de Consultoria Técnica (SAT), que visava apoiar o aumento da competitividade das empresas camponesas nos mercados nacionais e internacionais, principalmente com sua modalidade de apoio à agricultores individuais e empresas associativas camponesas, as quais estavam inseridos no âmbito de estratégias de inovação e competitividade regionais e nacionais. Outro exemplo é o ainda existente PRODESAL (Programa de Desenvolvimento Local), que visa construir capacidade técnica e produtiva associado com a gestão ambiental e comercial dos empreendimentos de pequenos produtores com poucos recursos.

Os objetivos principais estavam na busca da agregação de valor nos processos produtivos e comerciais com uma clara orientação exportadora e na redução das desigualdades no campo (TORRES; NAMDAR-IRANÍ; ISAMIT, 2017). De acordo com dados do Ministério da Agricultura Chilena de 2001 (citado por Challies, 2010, p. 106), havia três objetivos centrais dessas políticas:

a) promover o desenvolvimento comercial e melhorar a capacidade empreendedora, a inovação e a gestão;

b) inserir firmemente a agricultura de pequena escala em mercados internacionais favoráveis; e

c) promover e ampliar a associação e organização camponesa. Tais ações se inserem no chamado processo de ‘reconversión’ (KAY, 2002) que buscou modificar a estrutura produtiva tradicional da agricultura, pastagem e pecuária para outra voltada a mercados mais lucrativos e dinâmicos, particularmente das non-

traditional agricultural export commodities (NTAE’s), representadas pelas frutas

e produtos florestais.16

De acordo com Murray (2002), a política agrária da administração do presidente Ricardo Lagos (2000-2006) tinha como principais objetivos em seu governo:

15 Dentre os beneficiários dos programas de mitigação da pobreza rural estavam os povos originários mapuches,

que foram extremamente prejudicados com os avanços da indústria florestal, da agricultura empresarial e das hidrelétricas em relação à posse e ao uso da terra. Vale destacar que os conflitos envolvendo mapuches começam a aflorar já no primeiro governo da Concertación, em 1992 - conjuntamente com outros movimentos indígenas latino-americanos por ocasião dos 500 anos da descoberta (sic) da América. Mas é em 1997 que os ‘conflitos mapuches’ se intensificam em relação a atos violentos e após sucessivos eventos vão tornar-se mais conhecidos para a sociedade chilena a partir de 2006 (JAYMOVICH et al., 2018).

16 O caso do setor florestal é simbólico. A produção florestal teve início no governo de Eduardo Frei Montalva e

aprofundado no governo de Salvador Allende. Após o golpe militar e a imposição das políticas neoliberais, a indústria florestal se expandiu significativamente obrigando a camponeses (muitos descendentes de povos originários mapuches) a venderem suas terras e se tornando proletários nesse processo (KAY, 2002)

a) confiança e segurança para os produtores; b) desenvolvimento de mercado;

c) gestão da qualidade dos recursos naturais; d) competitividade;

e) produto de qualidade; f) desenvolvimento florestal; e g) o novo mundo rural.

Nessa gestão foi criado o slogan “Chile Potencia Agroalimentaria” pela ODEPA, cujo ambicioso objetivo era duplicar o valor das exportações até 2014 (GLATZ, 2017). Esta perspectiva de ‘reconversión’ seguiu nas gestões seguintes dos governos da Concertación, sendo que as principais iniciativas lideradas pelo Estado orientadas para a agricultura camponesa continuaram muito focadas na modernização e integração em mercados internacionais competitivos por meio de abordagens produtivistas (CHALLIES, 2010). Novamente, esse processo privilegiou os grandes e médios agricultores e apenas os camponeses com algum grau de viabilidade, negligenciando, portanto, os menores e mais vulneráveis (KAY, 2002).

Em síntese, os primeiros vinte anos de democracia pós-ditadura não conseguiram criar uma ruptura com a herança neoliberal que influenciou toda a trajetória política e econômica, incluindo a política agrária chilena. O Estado desempenhou um papel contraditório ao promover a modernização agrícola e a liberalização do comércio, por um lado, e apoiar pontualmente a agricultura familiar camponesa, por outro. Segundo Torres, Namdar-Iraní e Isamit (2017), entre os anos 1997 e 2007, a superfície cultivada de cerais diminuiu em 26%, enquanto que a superfície de frutas, especialmente a uva, cresceu 45%. Esse processo de especialização produtiva nas NTAE’s está diretamente associado com as demandas do mercado internacional. Assim, o desejo de combater a pobreza e a desigualdade rural ficaram mais no discurso dos governos da Concertación, dada a prioridade primordial de modernização rural voltada à exportação e a submissão da política agrária aos imperativos macroeconômicos, com uma maior preocupação com a produção de alimentos baratos para as massas urbanas (MAZOYER, 2010), do que propriamente a redução da desigualdade social no meio rural (NOORGAARD; SIKOR, 2002). Esse aspecto se justifica pela crescente urbanização da sociedade chilena, bem como pela diminuição da importância econômica na composição do PIB, que ao final e ao cabo, também representavam interesses eleitorais. Entre 1990 e 1999, de acordo com dados citados por Murray (2002), apenas 14,3 por cento da

população vivia em áreas rurais e a importância econômica da agricultura diminuiu, caindo de 8,2 para 6,3% do PIB. Além disso, nesse primeiro período pós-ditadura, o processo de concentração das terras aumentou, eliminando boa parte dos parceleros, gerando processos de proletarização e semiproletarização (CHALLIES, 2010; MURRAY, 2002).