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A “ambientalização dos conflitos sociais” em casos de contaminação mineral

2 ARQUITETURA DO QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO QUE EMBASA A PESQUISA

2.1 A “ambientalização dos conflitos sociais” em casos de contaminação mineral

A opção por operar neste trabalho com a noção de “ambientalização dos conflitos sociais” é justificada pelo fato de implicar em uma análise que trata da questão ambiental como nova fonte de legitimidade e de argumentação de conflitos, pressupondo transformações no Estado e no comportamento das pessoas em vários aspectos da vida cotidiana. É um neologismo semelhante a alguns outros usados nas ciências sociais para designar novos fenômenos associados a um processo de interiorização de formas de agir pelas pessoas e grupos sociais, segundo afirma Leite Lopes (2006). Este autor chama a atenção, sobretudo, para um processo de consolidação da temática ambiental que se manifesta por conflitos, contradições, limitações internas, assim como por reações, recuperações e restaurações que incluem formas de apropriação distintas da linguagem ambiental por diferentes atores.

Nesse panorama, podemos visualizar disputas que decorrem da participação de populações vulneráveis ou sob risco, profissionais e especialistas que incorporam essa temática nas políticas públicas e instituições de Estado, além de empresas que se apoderam da crítica a sua atuação e procuram usá-la a seu favor. Deste último, podemos citar a “responsabilidade ambiental” que reflete em vários campos do setor produtivo, acompanhada de novos lucros materiais e simbólicos. O resultado desse processo é visto pelo autor supracitado como a variação entre “a ilegalidade e ilegitimidade não fiscalizada de uma continuidade de práticas de acumulação primitiva ambiental até a violência doce do uso da linguagem e procedimentos ambientalmente corretos no contexto da dominação empresarial exercida de forma socialmente irresponsável” (ibidem, p. 32). Isso quer dizer que, apesar da relevância em termos de tomadas de decisões públicas e políticas que a temática ambiental ganhou nos últimos anos, há em curso uma violência simbólica,

principalmente por parte de alguns grandes empreendimentos que se utilizam dos argumentos de uma contínua implementação de gestão de riscos, mitigação de impactos e ações sociais para justificar uma série de danos causados no lugar onde se instalam e operam.

No caso que estamos analisando, os discursos dos atores envolvidos no conflito refletem essa lógica de legitimação ambiental à medida em que, no embate do espaço público, os afetados aliados a organizações sociais, ONGs e a pesquisas científicas questionam os padrões técnicos de apropriação do território e seus recursos. Enquanto empresas se defendem das acusações ao afirmar investimentos em proteção ambiental e ações sociais. O Estado, a depender das consequências negativas geradas, nega a eficácia desses investimentos e critica a falta de estrutura pública para implementar as fiscalizações necessárias. As instâncias jurídicas, embora apresentem no processo uma certa morosidade em lidar com o caso, como é o caso do Ministério Público e Defensoria Pública, servem como mediadoras para estabelecer acordos e intervir se, por acaso, não forem cumpridos, para tornar concreto o dispositivo de reparação. Acselrad (2010) afirma sobre a noção de “ambientalização” que:

Essa pode designar tanto o processo de adoção de um discurso ambiental genérico por parte dos diferentes grupos sociais, como a incorporação concreta de justificativas ambientais para legitimar práticas institucionais, políticas, científicas etc. Sua pertinência teórica ganha, porém, força particular na possibilidade de caracterizar processos de ambientalização específicos a determinados lugares, contextos e momentos históricos. É por meio desses processos que novos fenômenos vão sendo construídos e expostos à esfera pública, assim como velhos fenômenos são renomeados como “ambientais”, e um esforço de unificação engloba-os sob a chancela da “proteção ao meio ambiente”. (ibidem, p. 103)

No Brasil, segundo o autor, o conjunto de entidades envolvidas no debate ambiental sempre esteve perpassado por uma questão central associada ao modo de como engajar-se em campanhas de proteção ambiental sem desconsiderar problemas prioritários como a luta contra a pobreza e desigualdade social. Esse ponto chama a atenção neste trabalho, pois em alguns momentos analisados no campo de pesquisa apresenta-se a preocupação ambiental como um obstáculo ao desenvolvimento, à criação de empregos e ao progresso da cidade em questão. Estes elementos são incorporados na discussão deste estudo de caso a partir das expectativas criadas pela população local com a chegada dos empreendimentos no local e

que gerou o rompimento de uma “confiança”, no sentido de Luhmann (2005)8, quando as promessas não aconteceram, de fato. Pelo menos não nas proporções em que foram manifestadas. A temática ambiental é enfatizada na medida em que as argumentações centradas em um sentido de justiça evocam as condições de poluição e consequente adoecimento causado com o funcionamento irregular das empresas.

Ao retomarmos a noção de “racismo ambiental”, percebemos que as injustiças ambientais no Brasil não se restringem à população negra, mas remete às diversas comunidades vulnerabilizadas, as quais são vítimas de uma lógica desenvolvimentista que forja condições de degradação crescente para uns e propicia lucros abusivos para outros, onde as empresas são atraídas pelas condições de isenção fiscal dada pelo Estado, ainda que estas sejam nocivas tanto ao meio ambiente quanto aos próprios trabalhadores. Conforme mostra o Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil desenvolvido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e pela Federação dos Órgãos para a Assistência Social e Educacional (Fase), a constituição dos movimentos por Justiça Ambiental no Brasil e da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA) a partir de 2002, surge das comunidades impactadas pelo movimento de desenvolvimento hegemônico que, junto com grupos solidários a elas, se organizam e se mobilizam.

Geralmente, os empreendimentos oriundos das políticas públicas desenvolvimentistas do Estado, possuem como características principais a concentração de renda e de poder; exploração insustentável dos recursos naturais; e autoritarismo na tomada de decisão sobre o uso dos territórios, não envolvendo as comunidades e relacionando-se diretamente com a violação dos direitos humanos dessas populações, somando-se às consequências para a saúde das mesmas (PORTO, PACHECO, LEROY, 2013). Abaixo, a reprodução do Mapa de Conflitos supracitado que, por sua vez, faz um mapeamento de conflitos ambientais no Brasil com foco na visão das populações atingidas, suas demandas, estratégias de resistência e propostas de encaminhamento. Dentre os conflitos destacados em vários estados, podemos observar a comunidade de Piquiá de Baixo, no município de Açailândia. Conforme nos mostra a imagem, é possível visitar a página eletrônica do Mapa de Conflitos e pesquisar por cidade ou estado, tipo de população atingida, atividades geradoras de conflitos, danos provocados e tipos de impactos.

8 Luhmann (2005) fala da confiança a partir de sua dependência com estruturas contingentes e do perigo que pode levar à uma ação social. Iremos retomar essa discussão no capítulo seguinte.

Fonte: Fiocruz, 2010.

Este quadro analítico relaciona-se à noção de “justiça ambiental”9 que refere-se a uma ligação lógica entre a degradação ambiental e injustiça social. Segundo Acselrad (2010), a ressignificação da questão ambiental no Brasil se mostra cada vez mais central e ligada às tradicionais questões sociais do emprego e da renda nas arenas onde acontecem os embates sociais. O autor mencionado evidencia a lógica cultural onde os riscos ambientais são diferenciados, desigualmente distribuídos e o ambiente passa a integrar as questões pertinentes à cultura dos direitos onde os sujeitos do conflito são aqueles que denunciam “a exposição desproporcional dos socialmente mais desprovidos aos riscos das redes

9 Segundo Acselrad (2010), “a noção de ‘justiça ambiental’ resulta de uma apropriação singular da temática do meio ambiente por dinâmicas sociopolíticas tradicionalmente envolvidas com a construção da justiça social. O Movimento de Justiça Ambiental surgiu a partir dos anos 1980 nos EUA denunciando a lógica socioterritorial que torna desiguais as condições de exercícios dos direitos, ou seja, a lógica dita “Nimby” – “not in my backyard” [“não no meu quintal”] que depois passou a vigorar como “sempre no quintal dos pobres” (Bullard, 2002). O Movimento se difundiu no Brasil através da Comissão de Meio Ambiente da Central Sindical (CUT) no Rio de Janeiro e por grupos de pesquisa do IPPUR/UFRJ, e em 2001 foi criada a Rede Brasileira de Justiça

produtivas da riqueza ou sua despossessão ambiental pela concentração dos benefícios do desenvolvimento em poucas mãos” (ACSELRAD, 2010, p. 108). Ou seja, a poluição atinge de forma variável os diferentes grupos sociais.

A crítica ao modelo de desenvolvimento é construída a partir da capacidade de “deslocalização dos capitais”10que usam do poder de chantagem locacional para impor aos setores menos organizados da sociedade níveis de poluição que são rejeitados por setores mais organizados. É nesse cenário que surgem sujeitos coletivos onde essa noção de justiça ambiental se materializa e é geralmente acionada no contexto discursivo dos grupos inicialmente mobilizados ao passo em que eles entram em contato com ONGs, pesquisadores e outras entidades e organizações que possuem algum conhecimento científico para orientar determinadas ações políticas.

Dessa forma, reconhece-se a força que o “poder simbólico” da expertise tecnocientífica exerce nos campos de disputa, mas buscamos trabalhar com a ideia de que os atores não são mais apenas simples marionetes movidas por condições objetivas às quais obedecem e, portanto, possuem capacidade crítica que são acionadas em momentos de incerteza que vem, por exemplo, da indignação e do sentimento de injustiça (BOLTANSKI; THEVENOT, 1999).