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2 ARQUITETURA DO QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO QUE EMBASA A PESQUISA

4.1 Da promessa gloriosa ao desencanto indignado

4.1.1 Momentos iniciais de perturbação

A expectativa de conseguir emprego nas siderúrgicas foi diminuindo à medida em que se percebeu a dificuldade de garantir um posto de trabalho devido à falta de qualificação dos moradores locais para aquele tipo de produção. Tampouco, foram ofertados de imediato a capacitação de trabalho, a não ser pela prática de que os mais experientes no ofício passassem o seu conhecimento adiante, como já mencionado anteriormente. É importante fazer a ressalva de que essa dificuldade de obter trabalho junto às fábricas era, em sua maioria, daqueles que já moravam em Piquiá de Baixo e trabalhavam exclusivamente em lavouras, pecuária, atividades no campo em geral. Digo isso porque a origem geográfica de uma outra parte dos moradores do bairro era de migrantes de outros estados que chegavam com alguma experiência das siderúrgicas que haviam trabalhado anteriormente.

Os efeitos negativos da poluição também começaram a ser notados e, especialmente sentidos, em comparação com a rotina do bairro antes e depois da chegada dos empreendimentos. Os alertas emitidos pelo Sr. William no início, começaram a se materializar a partir da fumaça das chaminés que cobria o bairro, remetendo ao que CHATEAURAYNAUD (1999) vai destacar como a figura do “lançador de alerta” como aquele ou aquela que rompe o silêncio em meio a uma situação problemática cuja ação aponta para a iminência ou a possibilidade de uma catástrofe que se anuncia pelos seus sinais. O alerta, nesse sentido, se orienta em direção a um interesse coletivo, um bem comum que se respalda em valores universais como a proteção à vida.

O problema começa a ser desenhado através de mudanças nas práticas sociais da vida cotidiana para se adaptar aos efeitos da contaminação e em consequência disso, os discursos dos moradores revelam críticas que questionam as estruturas de poder que se manifestam na relação entre grandes empreendimentos de mineração e populações locais. Nesse sentido, a Análise do Discurso Crítica evocada por Resende (2006), inova ao focar também nas mudanças discursiva e social de atores sociais que atentam para sua inserção em relações de dominação e não apenas nos mecanismos de reprodução e manutenção do

poder. Ou seja, a concepção de discurso como prática social implica em uma dialética entre discurso e sociedade, onde o discurso é moldado pela estrutura social, mas é também constitutivo desta. Com base nas entrevistas das mesmas pessoas referidas no quadro 1, podemos captar esses elementos de mudança discursiva que se deram a partir da percepção da situação de anormalidade atrelados aos efeitos da poluição no bairro:

Quadro 3. Situação de anormalidade e percepção de injustiça

Morador Contra-discurso

Sr. Edvar “Quando cheguei aqui ainda tinha muita mata... aquela água que corre alí era

saudável, muita mata e tal. E fiquei até que chegou essas siderúrgica e atrapalhou nossa vida toda. Eu tive que mudar de Piquiá porque não aguentava mais de tanta poluição. Quando chovia, aquela lama de ferro vinha tudo pras nossas casas, o rio tá poluído. As casas o tempo todo suja de pó. Eles não respeitam as pessoas, nem a floresta...”

Sr. Joaquim e D. Osmarina

“Quando eles começaram a implantar ali fazendo no começo, nós só pensava que a coisa ia ser boa né. Porque nós ainda tinha nossas terrinha, tinha onde trabalhar, nós tava sempre cuidando do nosso serviço. Nós não tava olhando pra empresa lá não. Nós esperava um emprego pros nossos filhos que ia chegar né. Só que isso não aconteceu... Aí foi onde nós ficamos só no sofrimento e foi quando começou o sofrimento de doença, de poluição. Desse tempo pra cá nós não tivemos mais sossego não. Um dia um é doente, outro dia o outro melhora e aí aquela coisa”.

D. Tida “Nada presta mais lá. Porque além de tudo que te contei, do pó que tem, ainda

tem os barulhos. Aí o povo foi desistindo e saindo. Inclusive eu que já tem 7 anos que saí porque se não tivesse saído, tinha morrido. Minha casa tá lá. Eu tô pagando aluguel porque não posso morar na minha casa que eu construí com tanto sacrifício. Tive que fechar as portas... foi uma dor que me deu muito grande. Hoje moro em Piquiá de Cima. Não deu de ficar lá porque já tava rouca. Teve dia que eu amanhecia o dia e já cuspia sangue. E fiquei com medo e chorava... minhas filhas que pagam o aluguel pra mim”.

Sr. William “Olha, o que mais afetou pra mim é o meio ambiente... afetou muito. A saúde

nossa também afetou muito. O meio ambiente porque poluiu o ar, poluiu a água, poluiu o solo. O rio lá a gente banhava, a gente pescava . E a gente tinha uma vida completa juntos com os vizinhos da gente. Toda tarde a gente sentava de baixo de um pé de pau, e ficava conversando na porta de casa até tarde da noite. E agora a gente sabe que isso não existe mais no Piquiá”.

Fonte: Autoria própria, 2021.

De acordo com o que podemos analisar nos discursos emitidos pelos moradores, ocorre o rompimento da percepção de uma situação de normalidade no bairro à medida em que a poluição é sentida e identificada nas experiências cotidianas e interpretada como “anormal” e problemática. Nesse processo, as vozes enunciam o injusto e as emoções são despertadas pelas memórias afetivas, através do sentimento de dor dos sujeitos pela perda

da forma de vida que tinham, a identidade coletiva construída ao longo dos anos e o desolamento de deixarem as suas casas. A concretização dos efeitos nocivos das empresas no bairro e as avaliações negativas das expectativas em relação à geração de empregos define uma situação problemática onde o discurso crítico é fabricado a partir do sofrimento social. Segundo Cefai (2018), a perturbação rompe com hábitos da vida, com o curso das coisas ou com a tranquilidade dos costumes, porém, quando a “situação ordinária atravessa essa crise, os participantes saem de seus regimes de conduta habitual e elaboram uma experiência reflexiva”. É o que Boltanski e Thévenot (1999, p.5) chamam de momento crítico, no qual a pessoa que se dá conta de que algo não está funcionando, raramente permanece em silêncio e não guarda seus sentimentos para si. Quando não pode mais suportar o estado de coisas, expressa seu descontentamento”.

Nesse caso, Boltanski e Chiapello (2009) estabelecem uma diferença entre crítica e indignação ao argumentarem que a crítica funciona em um nível secundário, reflexivo e teórico, que intenta traduzir as indignações e os “impulsos emotivos” a uma série de valores passíveis de serem universalizados e justificados. Contudo, “mesmo quando as forças críticas parecem em total decomposição, a capacidade de indignação pode permanecer intacta” (ibidem, p. 72). Assim, caberia à crítica recolher e organizar teórica, retórica e representativamente a materialidade trazida pela indignação. Isto tem a ver com as fontes de indignação em relação ao capitalismo: o desencanto e a inautenticidade relativos ao tipo de vida associados ao Capitalismo; as formas de opressão que impedem o exercício das potencialidades espontâneas e autônomas, bem como das possibilidades de emancipação humana (ou seja, interfere nas capacidades de agir); a miséria de boa parte da população articulada à desigualdade social em uma amplitude cada vez mais assombrosa; o oportunismo e egoísmo que favorecem a interesses individuais e particulares e se sobrepõem ao bem-estar da maioria da população. Disso decorre os dois tipos de críticas: estética e social. A primeira, relativa ao desencanto, inautenticidade e opressão mencionados acima. No que diz respeito às indignações mobilizadas pela “crítica social” - denúncia de miséria, desigualdade, oportunismo e egoísmo - estas são incorporadas na presente análise justamente por correlacionar a “indignação em face ao sofrimento” à configuração da problemática da exclusão, e possui implicitamente o corolário de que a realidade do capitalismo apresenta-se como a única possível (idem).

dos conceitos de saúde, sofrimento e poluição para expressar a indignação e o sentimento de injustiça traduzidos no desrespeito e abandono (por parte das empresas e do Estado) que afetam tanto as pessoas quanto o meio ambiente naquela localidade, em descompasso com os princípios e valores da dignidade humana. Há, sem dúvidas, nas falas dos entrevistados o questionamento daquilo que Boltanski e Chiapello evidenciam como “provas” que são evocadas pela empresa siderúrgica de que a situação social da localidade iria melhorar. “A crítica desvela o que, nessas provas, transgride a justiça. Esse desvelamento consiste particularmente em revelar as forças escondidas que vêm parasitar a prova e desmascarar as vantagens imerecidas das quais se beneficiam certos protagonistas” (BOLTANSKI, 2003).

O contra-discurso dos moradores desvenda elementos ideológicos e de poder hegemônico das mineradoras, que se sustenta através de uma lógica industrial e mercantil, trazendo uma economia mais forte com geração de empregos. E é justamente baseada no preceito epistemológico de que a realidade é estratificada e que a atividade científica deve estar comprometida em revelar os níveis mais profundos das suas entidades, estruturas e mecanismos (visíveis ou invisíveis), que a ADC “considera a organização da vida social em torno de práticas, ações habituais da sociedade institucionalizada traduzidas em ações materiais, em modos habituais de ação historicamente situados” (RESENDE, 2006, p. 35). Por isso, a discussão acima se filia ao tratamento, neste trabalho, dado às exigências de justiça dos moradores com base na regulamentação das atividades de mineração na localidade, como também naquilo que não está previsto na lei, o reassentamento. Esse movimento é perceptível entre a problematização e a solução – mitigação do problema, uma vez que as pessoas também têm relações afetivas com o seu antigo bairro.

Nesse caso, a mudança de alguns moradores da comunidade ocorreu porque com o tempo tiveram problemas de saúde agravados pela inalação do ar contaminado. Aqueles que não tinham condições financeiras de abandonar suas casas e fazer o mesmo, permaneceram no local. Mas é interessante notar que, mesmo com o deslocamento para comunidades vizinhas, são esses mesmos moradores que se movimentam para discutir, refletem em voz alta, se informam e se questionam sobre as possibilidades de solução sobre a perturbação da experiência que é então convertida em um problema (CEFAI, 2018). A explicação para esse tipo de evento emocional crítico, segundo Losekann (2018, p. 81), “requer a conexão das emoções com as noções de certo e errado compartilhadas entre as comunidades, mas depende também de complexas informações que são organizadas cognitivamente e

dependentes em grande medida de atores externos aos territórios”. É desse modo que surgem as associações que descreveremos adiante, pois ao constatar que há um limite de capacidade de ação da Associação Comunitária dos Moradores de Piquiá, parte-se para a aliança com novas organizações que se engajam na causa.

Visto de outro modo, poderiam surgir questionamentos usuais sobre como escolher entre um emprego necessário para a sobrevivência e o risco de sofrer graves problemas de saúde quando estes não são apresentados à população impactada? E mais, escolher seria uma opção? Nesse caso, os riscos foram apresentados à comunidade de modo particular, quando passaram a ocorrer e incomodar, através da experiência dos próprios moradores com o alto nível de poluição, comprometimento da saúde e, por fim, os cargos de trabalho que não se concretizaram efetivamente da forma como se imaginavam. Mesmo aqueles que hoje estão expostos a esta situação, mas são empregados nas siderúrgicas, têm medo de denunciar e perder sua única fonte de renda. A principal denúncia é de que restam a eles o ônus do sofrimento.

O caso em Piquiá de Baixo é emblemático por não se tratar apenas de um grupo vulnerabilizado que entra nas estatísticas dos “deserdados da sorte”, interpretação criticada por Vera Telles, quando se refere à construção tipificada dessas populações como fixadas nas determinações inescapáveis das leis da necessidade. Queremos dizer com isso que a experiência perturbadora com a contaminação do bairro, a necessidade de buscar conhecimento para entender esses problemas e, eventualmente, buscar uma solução, são elementos fundamentais para a construção da mobilização. Nesse sentido, esta socióloga afirma quanto aos “direitos” que:

De um lado, essa palavra, individual ou coletiva, que diz o justo e o injusto, é também a palavra pela qual os sujeitos que a pronunciam se nomeiam e se declaram como iguais, igualdade que não existe na realidade dos fatos, mas que se apresenta como uma exigência da equivalência na sua capacidade de interlocução pública, de julgamento e deliberação em torno de questões que afetam suas vidas – e essa exigência tem efeito de desestabilizar e subverter as hierarquias simbólicas que as fixam na subalternidade própria daqueles que são privados da palavra ou cuja a palavra é descredenciada como pertinente à vida pública do país (TELLES, 1998, p. 39).

Em outras palavras, a busca pela necessidade de saber quais são seus direitos sociais relativos aos problemas de saúde e moradia que enfrentam e o impacto quando os referidos moradores comparecem na cena política como “sujeitos” portadores de uma palavra que

exige o seu reconhecimento, trazem para a cena pública o que antes estava silenciado. O que nos importa, portanto, é mostrar outros mundos possíveis nessas vozes que se enunciam e como todos esses elementos estão perpassados pela experiência que os afetados têm com uma negação de direitos e o que isso vai produzir.