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O sofrimento social e o trabalho das emoções na construção da crítica

2 ARQUITETURA DO QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO QUE EMBASA A PESQUISA

2.3 Pensando o reassentamento: a noção de dispositivo e a construção da crítica

2.3.1 O sofrimento social e o trabalho das emoções na construção da crítica

No quadro analítico que arquitetamos para pensar como se deu a elaboração do dispositivo de reparação, há um elemento condutor que se destaca desde o momento de problematização até os dias atuais do processo de reassentamento: o sofrimento social. Sendo assim, buscamos entender qual a potência desse conceito na pesquisa, nos registros afetivos dos moradores e, sobretudo, na fabricação da crítica social feita a respeito da atuação da atividade econômica de mineração, ou seja, o que ela irá produzir de efeito danoso à saúde pública e à vida moral das pessoas, o sentimento de injustiça. Renault (2010) trabalha com essa questão a fim de mostrar que a referência política ao sofrimento pode contribuir com a retomada da crítica social. Nessa perspectiva, aponta para a importância de que os problemas teóricos desse conceito sejam tratados de modo interdisciplinar, alinhado a um quadro geral de combinação entre o psíquico, social e cultural para analisar as dimensões da experiência social. Na dimensão política, o autor parte da ideia de que o surgimento de novas condições de trabalho no mundo contemporâneo produz novas dificuldades subjetivas, onde sentimentos como o de vergonha e depressão são consequências de uma situação social. Isto ocorre porque, devido à exclusão, este se torna um obstáculo à crítica social e ação política. Para além disso, a questão central que se coloca é que cabe à teoria crítica estabelecer se a referência a esse termo é legítima, ao mesmo tempo em que a filosofia tem o compromisso de denunciar a sua naturalização. Portanto, a função crítica do sofrimento social está associada a uma luta pública contra a reprodução da sua invisibilidade tanto nos discursos

acadêmicos, quanto para legitimá-lo no espaço social em contextos de negação ou eufemização. O que está em jogo não é apenas uma interpretação da sociedade do ponto de vista das experiências negativas, mas um conhecimento de componentes sociais e psíquicos do sofrimento; não é apenas uma resposta dada à demanda psicológica para superar o sofrimento, mas também uma forma de oferecer uma expressão pública a ele (RENAULT, 2010).

Alguns trabalhos empíricos no Brasil desenvolvem essa abordagem levantando as problemáticas associadas à precariedade, pobreza, desemprego e exclusão social. Por exemplo, a pesquisa de Reich (2019), sobre a relação entre moradores das favelas e periferias do Rio de Janeiro (RJ) com a violência gerada pelas ações militares provenientes do Estado. A autora traça uma discussão baseada em Renault com o intuito de promover a visibilidade do sofrimento através das ‘vozes dos dominados’. A tentativa é produzir uma descrição pertinente dos males sociais e encontrar sujeitos políticos capazes de intervir no processo de transformação social. Esse estudo suscitou dois pontos importantes para nossas análises: o primeiro se refere ao modo de investigação pautada na denúncia de naturalização do sofrimento social e o resgate, pela teoria crítica, de uma expectativa normativa que já está ativa dentro da sociedade. Ou seja, o interesse em saber quais são os modos de vida inscritos como um padrão normal de vida boa em um contexto onde as práticas sociais estão indo contra um padrão normativo que já está aceito. Esse questionamento nos ajuda a pensar sobre a percepção de ‘normalidade’ para os moradores antes da construção dos empreendimentos poluidores. O que, segundo eles, era considerada uma vida normal, mesmo diante de alguns problemas de estrutura básicos no bairro? Como se constrói uma crítica através das experiências de sofrimento? São esses fatores que nos direcionam para a modelação dos discursos nos diferentes espaços. Em segundo lugar, Reich (2010, p. 491) afirma que “quando os indivíduos que sofrem permanecem na invisibilidade, eles naturalizam seus sofrimentos e passam a acreditar que esse é o seu destino e/ou se culpabilizam por ele. A descrição das experiências cotidianas é pertinente para mostrar essa relação no espaço público/político. Do mesmo modo, nos ajuda a compreender como a denúncia dos sofrimentos vividos cotidianamente se configuram como um motor que objetiva provocar a consciência crítica para que os atores se posicionem e pressionem por mudanças.

O modelo de reconhecimento proposto por Honneth (2003), nos oferece chaves interpretativas para pensar a emancipação social, já que não necessariamente o sofrimento,

por si só, serve de impulso cognitivo para uma luta moralmente direcionada, mas pode servir de base para constituir vínculos políticos (MAIA NETO, 2019). Trata-se de pensar numa possibilidade de articulação prática entre sentimento subjetivo e ação política que expressa a luta por reconhecimento. Nessa abordagem, os movimentos sociais podem cumprir dupla função: como um mediador para o compartilhamento coletivo do sofrimento, e também como agentes de alerta que apontam para os desajustes sociais. Mesmo possuindo um alcance limitado socialmente, o reconhecimento dentro de grupos que possuem uma identidade advinda de experiências de sofrimento em comum, permite ao sujeito iniciar um processo de recuperação psíquica. Essas interações levam os atores afetados por determinadas estruturas, a perceber uma conexão social e coletiva gerada de uma prática de injustiça, o que remete a uma forma de expressão mais ampla e articulada na esfera pública (idem).

Nesse desenho, entendemos as emoções como um elemento potencializador das ações relacionadas à formulação do problema e demanda da resolução. Nos embasamos, inicialmente, na perspectiva de Dewey (1981, p.94) na qual “a emoção compõe parte de uma situação inclusiva e duradoura que implica conexão com objetos e resultados”. Portanto, não estamos falando de simples reflexos automáticos e impensados, mas de uma experiência singular que é emocional e pode se modificar com o desenrolar do drama, ou seja, pode fazer um sujeito se engajar em uma ação coletiva. É, ao mesmo tempo, um momento crítico e um momento lógico, pois essas experiências podem levar tanto a uma reação desencadeada pela indignação, quanto a uma paralisação causada pelo medo ou pelo sentimento de impotência.

Em um movimento crítico às teorias clássicas de ação, Emirbayer e Goldberg (2005) visam mostrar como as emoções coletivas podem ser incorporadas ao estudo de episódios de “contenção política” através de uma sociologia relacional (BOURDIEU, 1996) e transacional (pragmatismo), incluindo a “psicologia coletiva” nesse novo projeto. Esse esforço teórico consiste em remediar três postulados teóricos “perniciosos” que são: oposição entre razão e emoção; apreensão das emoções como estados ou eventos individuais; incapacidade em conferir uma autonomia analítica às emoções coletivas. Ao levantar novas perguntas sobre movimentos sociais, os autores propõem uma compreensão mais ampla de como as emoções moldam a ação coletiva em conjunção com a estrutura social e a cultura15.

15 A “contenda política” é entendida por Mc Adam, Tilly e Tarrow (2001) como disputas episódicas que “ocorre em público, envolve a interação entre os fabricantes de reivindicações e outros, normalmente, traz o governo como mediador, alvo ou reclamante. Mesmo utilizando o termo “ação coletiva” para definir nosso objeto de

Para tal, formulam as seguintes proposições: ao estudar episódios de contenda política, deve-se olhar para a estrutura intencional nas emoções das várias partes e avaliar suas percepções e julgamentos com base na inteligência e adequação emocional que manifestam; buscar as emoções não apenas nas mentes individuais, mas também entre os indivíduos, como complexos de investimento psíquico, compromissos e “cathexis”.

As considerações trazidas por Emirbayer e Goldberg levam Queré (2012) a reconstruir a teoria das emoções de Dewey, com o objetivo de demonstrar como as emoções não são apenas atitudes impensadas, mas podem alcançar uma dimensão de racionalidade quando se convertem em um elemento que impulsiona as ações. Para deixar mais claro, ele faz uma distinção entre ‘problemas emocionais’, que são provocados por algo inesperado (explosão de alegria ou raiva, etc) e ‘atitudes emocionais duráveis’, se referindo a um certo tipo de conduta de longa duração (amor, orgulho, vergonha etc.). Elas não determinam o comportamento da mesma maneira. Em “Experiência e Natureza”, Dewey (1980) afirma que em seu sentido ordinário, a emoção é algo suscitado por objetos, sejam físicos ou pessoais, sendo esta, uma resposta a uma situação objetiva. Essa concepção funcionalista contrapõe os hábitos de pensamento subjetivistas e rompe com o dualismo entre razão e emoção. O medo, por exemplo, seria uma dessas funções do meio ambiente às quais reagimos por instinto ou por aquisição, porém, não é sua causa, afirma Queré. Para este autor, é justamente a ligação da emoção com a estrutura da intriga de uma situação que a distingue das reações reflexas, pois supõe uma preocupação com algo que está em desenvolvimento e cujo fim é indeterminado, formando assim, seu componente cognitivo. Assim, chega-se a ideia do “trabalho das emoções” que seria a realização de algo a partir da incorporação de uma emoção durável e se caracteriza pelo que opera, por exemplo, reunião de um material, seleção, organização, ordenação dos aspectos deste material que são apropriados para a sua expressão (QUERÉ, 2012).

Por um lado, a teoria diferencialista amplia a problemática a tudo que contraria, bloqueia ou desajusta os hábitos ativando orientações, expectativas e modos de agir em uma situação. Por outro lado, inclui na pesquisa, além das operações cognitivas e práticas destinadas a reduzir a indeterminação da situação a todas as finalidades práticas, um trabalho próprio das emoções – não apenas as emoções suscitam a pesquisa, mas também operam na configuração do problema e da solução (ibidem, p. 41).

estudo, entendemos que estamos falando de uma dinâmica complexa que envolve uma variedade de atores envolvidos, cada um com “regimes de engajamentos” distintos, e repertórios de ação na busca por uma solução

Portanto, as avaliações dos moradores afetados sobre as declarações e iniciativas de outros atores, serão feitas através do que viveram, sentiram em cada situação e dos debates que acompanharam e, principalmente, dos resultados das investigações espontâneas e científicas. A descrição dos processos de formulação do problema, sua problematização, dos momentos de prova e as associações, que fazem parte da construção do dispositivo de reparação colocam em questão o que Cefai (2013) chama de formação de uma ordem política

e moral. A observação das práticas ordinárias e declarações públicas dos indignados em

relação ao que consideram justo ou injusto, mostram uma ‘moralidade em atos’, tal como é feita. Essa moralidade está presente nos momentos em que as pessoas expressam a necessidade de serem respeitadas, se revoltam contra o desprezo de que são vítimas e queixam-se das humilhações que sofreram, afirmando-se enquanto pessoas morais (ibidem). Por outro lado, a interação entre moradores mobilizados e Missionários Combonianos revelam a criação de laços baseados no reconhecimento, na capacidade de ouvir, deixar-se comover pela situação, dar de si em direção ao outro. São a escuta e as orientações sobre como devem proceder para uma solução, que faz com que os afetados se sintam legitimados e recuperem sua autoconfiança.

As emoções coletivas não são as simples agregações de emoções individuais sobre um mesmo objeto, segundo afirma Queré. São emoções compartilhadas por um coletivo visando um bem comum quando, por exemplo, quando as práticas sociais e institucionais contrariam as expectativas normativas desse grupo e faz emergir a demanda de uma revisão das normas.