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A ampliação da esfera pública para além da lógica estatal

3 COOPERAÇÃO INTERNACIONAL

4.2 A ampliação da esfera pública para além da lógica estatal

O modelo proposto pelo Plano Diretor da Reforma do Estado, ao distinguir os quatro setores do Estado e destinar-lhes atribuições específicas, segundo mostra o Quadro 1, envolve, de acordo com Bresser Pereira (2000), mudanças na estratégia de gestão. Tais mudanças têm como objetivos tornar o aparelho do Estado mais forte e democrático e afirmar a cidadania. Dito de outro modo, por meio da alocação de novas formas de gestão, o Estado poderá ser capaz de atender democrática e eficazmente às demandas da sociedade.

Segundo Bresser Pereira (2000, p.20)

os Estados modernos contam com três setores: o setor das atividades exclusivas de Estado, dentro do qual estão o núcleo estratégico e as agências executivas ou reguladoras; os serviços sociais e científicos, que não são exclusivos, mas que, dadas as externalidades e os direitos humanos envolvidos, demandam dos pontos de vista técnico e ético que contem com forte financiamento do Estado; e, finalmente, o setor de produção de bens e serviços para o mercado.

Quanto aos serviços não-exclusivos, Bresser Pereira (2000, p.22) diz haver três possibilidades: “podem ficar sob o controle do Estado, podem ser privatizados e podem ser financiados ou subsidiados pelo Estado, mas controlados pela sociedade (...)”. As ações realizadas por organizações do Terceiro Setor mediante realização de parceria com o Estado incluem-se nesse último caso.

QUADRO 1

Setores do Aparelho do Estado e Tipos Ideais de propriedade

Setor Tipo de propriedade

Núcleo Estratégico – A essência do governo, composta pelos poderes executivo, legislativo e judiciário.

Estatal

Atividades Exclusivas - caracterizam a ação do Estado e representam funções que só o governo pode desempenhar, como o policiamento e o recolhimento de impostos.

Estatal

Serviços Não-Exclusivos – Atividades de caráter público que também podem ser desempenhadas por instituições privadas, como a operação de instituições de ensino superior, hospitais e museus.

Pública Não Estatal

Produção de bens e Serviços para o mercado – Atividades em que o Estado desempenhou um papel que não é mais necessário.

Privada

Fonte: Plano Diretor da Reforma do Estado, apud FALCONER (1999, p.15)

O interesse do Estado em transferir às empresas e às organizações do Terceiro Setor parte substancial da provisão de recursos e serviços sociais significa, por um lado, a ampliação da esfera pública, ou seja, o envolvimento e participação de outros segmentos no desenvolvimento e implantação de estratégias de desenvolvimento social e ambiental sustentáveis. Mas, por outro lado, essa ação pode significar mais um desafio, já que essas organizações passam a ser consideradas como componente complementar estratégico em áreas consideradas como não exclusivas do Estado (DURÃO, 1995; ARMANI, 2001).

Ao tecer comentários sobre os movimentos sociais dos anos 90, Gohn (1998) diz acreditar que as duas décadas que separam o exercício das práticas participativas e o regime autoritário não foram suficientes para que organizações do Terceiro Setor, em especial os movimentos populares urbanos, se reorganizassem e se reestruturassem diante da nova conjuntura de políticas sociais estatais de parceria. O estado de letargia e falta de nitidez impediram que as referidas organizações assumissem o papel de agentes propositivos em outras frentes.

Para Fischer (2002, p.32), o país “passa por um processo de transição, no qual o rearranjo das funções do Estado, a consolidação da economia de mercado e o aperfeiçoamento do funcionamento de instituições democráticas podem propiciar o surgimento de arranjos inovadores entre os três setores”. Isso significa que diferentes meios de prestação de serviços

podem obviamente ser utilizados, desde que sejam inseridos no arcabouço legal. Dentre esses instrumentos se apresentam as parcerias entre atores pertencentes a campos, muitas vezes, diferentes entre si.

Neste contexto, a parceria entendida como a assunção de responsabilidades e desafios pelas partes envolvidas passou a ser legalmente instituída pela Lei 9.790, de 23/03/1999, popularmente conhecida por Lei das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIPs (SZAZI, 2000). Embora esse instrumento possa abrir espaço para o estabelecimento de uma nova relação entre Estado e sociedade civil, é visto com reservas, pois, segundo Noronha (2001), o limite entre parceria e transferência de atribuições públicas é tênue e esconde o risco de as organizações do Terceiro Setor perderem sua autonomia e se transformarem em fornecedores de serviços.

A transposição de funções sociais do setor público para o privado e do nível federal para os níveis locais ocorreu, segundo Austin (2001), a partir do momento em que os limites do Estado foram reconhecidos. Sob esse enfoque, a descentralização surge como mecanismo de racionalização do aparelho estatal, “como meio de levar as instâncias de poder para junto do cidadão, criando uma rede de relações que possibilitam às regiões da cidade ter acesso aos responsáveis pelos serviços públicos”, diz Junqueira (2003, p.3).

A descentralização, entretanto, não é suficiente para garantir automaticamente a participação efetiva dos cidadãos (JUNQUEIRA, 2000) e tem se configurado apenas na inclusão18 formal dos cidadãos em espaços específicos e limitados de gestão e execução, estabelecendo uma participação controlada, instituída de cima para baixo (FARAH, 1997).

A questão da descentralização para outros setores e/ou esferas não é clara, podendo ser interpretada como redistribuição do poder estatal intra e intersetorial e desconcentração. Como processo de redistribuição intra-setorial, o poder da esfera federal é realocado para os Estados e municípios, de modo a propiciar o estabelecimento de práticas participativas e associativas locais em nome da democratização da gestão política e da eficácia e eficiência político-administrativa. Com a redistribuição intersetorial, o Estado almeja estabelecer redes

18 Considerando-se que não há inclusão sem a participação efetiva e consciente do sujeito, a utilização do termo

de cooperação entre os setores público e privado na provisão de bens e serviços sociais (RIBEIRO, 2000).

Deve-se observar que “a descentralização não significa apenas transferir atribuições, de forma a garantir eficiência, mas é vista, sobretudo como redistribuição de poder, favorecendo a democratização das relações do Estado e sociedade, bem como do acesso aos serviços” (FARAH, 2001, p.127).

No entanto, pode-se ter o risco da desconcentração, da transferência de encargos, responsabilidades e competências para outras esferas e/ou setores, sem a correspondente redistribuição de poder e recursos financeiros, aumentando a possibilidade de agravamento da desigualdade individual, social e regional (RIBEIRO, 2000). Nesse contexto, as ONGs não passariam de um braço operacional de uma política de Estado.

Reis (2002) chama atenção para quatro critérios de análise a serem adotados por organizações do Terceiro Setor ao verificar a possibilidade de realização de parceria com o Estado. O primeiro critério é o econômico-financeiro - é necessário ter clareza quanto à periodicidade de relatórios, prestação de contas e cronograma de recebimento e desembolso, haja vista que atrasos nos repasses dificultam o gerenciamento do fluxo de caixa e impedem que as organizações cumpram obrigações financeiras. O critério seguinte é o administrativo - as freqüentes mudanças de orientação podem originar demandas para as quais a organização pode não estar preparada para responder em tempo hábil.

Um outro critério é a independência/autonomia - de modo a se evitar a dependência que a implementação de projetos possa acarretar, a organização deverá analisar o risco que o percentual de recursos representa para a sustentação financeira da organização e prever os impactos que a descontinuidade da parceria decorrente de mudanças de governo ou alterações ao longo de um mandato possam causar para a organização. Para Gonçalves (1996), a perda de autonomia e independência pode resultar no comprometimento da capacidade reivindicatória das organizações do Terceiro Setor, uma vez que seus valores, relacionados a sua função política, cedem lugar a uma forma de poder assentada na prestação de serviços de caráter assistencialista.

O quarto e último critério apontado por Reis (2002) é a estratégia organizacional - ter uma estratégia institucional previamente definida facilita a análise de riscos e benefícios, além de possibilitar melhores estratégias de negociação da parceria.

Em síntese, deve-se analisar sob todos os ângulos o estabelecimento de uma junção com o poder público para que não haja acidentes ou incidentes no percurso dessa união de direito. Se a parceria entre o Estado e organizações do Terceiro Setor pode, por um lado, representar novas fontes de recursos para essas organizações, por outro lado, a maior exposição pública pode traduzir-se em desafios.