• Nenhum resultado encontrado

Parceria Estado e ONGs: desafios enfrentados no contexto brasileiro

3 COOPERAÇÃO INTERNACIONAL

4.3 Parceria Estado e ONGs: desafios enfrentados no contexto brasileiro

É bom notar que, num cenário marcado pela retração do Estado e conseqüente compartilhamento de responsabilidades sem, entretanto, abdicar de sua condição de organizador exclusivo da vida social, organizações do Terceiro Setor, ao implantar políticas governamentais de cuja elaboração eventualmente não participaram, correm o risco de se tornarem meras intermediárias entre o Estado e as comunidades de base. Dito de outro modo, após a primeira onda de privatizações, centrada em companhias comerciais, e a segunda, em infra-estrutura, ocorre agora a terceira onda, ou seja, a privatização dos serviços sociais (GRAU, 1999) e, com esta, a possibilidade de organizações do Terceiro Setor serem transformadas em “braços executores” de ações do Estado (GOHN, 1998), perdendo autonomia e distanciando-se da sociedade civil organizada.

Mas em uma outra perspectiva, Menescal (1996) afirma que as organizações do Terceiro Setor podem canalizar melhor os recursos governamentais. O contato entre essas organizações e o Estado, além de poder permitir maior influência dos setores civis sobre os órgãos oficiais, permite complementariedade na ação. Ele apresenta, como exemplo, ONGs alemãs que recebem cerca de 75,00% de seus recursos do Governo e são dotadas de grande autonomia decisória.

Não se pode esquecer o que Castoradis (1981, p.69) menciona: “uma sociedade autônoma só pode ser composta por indivíduos autônomos”. Esses moldam seus valores, identidade e modos de pensar e agir a partir de suas vivências nas instituições. Instituições que, de acordo com Chanlat (1999, p.72), são “igualmente um mundo de signos, um espaço onde as diferentes linguagens se entrechocam...”. Autonomia é entendida aqui como capacidade e vontade das organizações de se autogovernar por valores e escolhas próprias.

Sob a perspectiva de Dalcero (1996), as organizações do Terceiro Setor devem estabelecer o maior número possível de parcerias com diferentes atores, de modo que sejam menos dependentes do Estado, pois, segundo Edwards e Hulme (1996), ao tornarem-se dependentes de recursos públicos, as referidas organizações correm o risco de terem suas agendas influenciadas e sua origem social independente corroída.

A relação de parceria entre o Estado e organizações do Terceiro Setor tem aspectos que extrapolam os pontos formais de complementaridade. Um deles é a desconfiança que algumas organizações nutrem em relação ao Estado. Em alguns casos, a desconfiança pode ser considerada como resquício dos anos de luta contra regimes autoritários19. Assim, muitas organizações, temerosas de serem cooptadas, recusam-se a interagir com órgãos do governo. Outras, contudo, aceitam a parceria com o objetivo de ampliar opções financeiras. Por outro lado, o Estado, de forma análoga, pode desejar manter-se distante das organizações do Terceiro Setor face à postura de oposição que essas assumem ao pressionar e fiscalizar suas políticas. Percebe-se, então, que a relação das organizações do Terceiro Setor com o Estado pode ser contraditória e ambígua, podendo oscilar entre parceria e cooptação (INOUE, 1997).

Em pesquisa sobre a relação de parcerias firmadas entre a Fundação da Criança e da Família Cidadã – FUNCI, órgão vinculado à Prefeitura Municipal de Fortaleza, capital do Ceará, e ONGs que desenvolvem ações junto a criança, adolescentes e famílias em situação de risco, Ribeiro (2000) verificou que, embora o discurso de membros da FUNCI sobre parceria estivesse permeado de expressões como: “ambas tenham benefícios, tenham poder de decisão”, “via de mão dupla”, “busca de objetivos comuns”, “assumir responsabilidades,

19 No caso brasileiro, até os anos 1980 a sociedade civil era excluída do processo de formulação das políticas, da

implementação dos programas e do controle da ação governamental. A lógica vigente era regulada pela relação entre políticos e sua clientela, na base de “troca de favores”, ou pela lógica corporativa típica da “cidadania regulada”. (Farah, 2001).

compartilhar recursos”, “ação de complementariedade, de confiança no outro”20, discurso e prática distanciam-se diante de múltiplas formas de controle, dominação e emprego do poder de persuasão como estratégia na elaboração de consenso ou processo de cooptação.

A dominação velada é então descortinada na fala de um entrevistado, membro de uma das ONGs parceiras: “(...) não a dominação presente, mas aquela dominação que na próxima avaliação do projeto a gente vai ver se fica com você ou não” (RIBEIRO, 2000, p.135).

Desse modo, embora as relações de parceria possam ser financeiramente interessantes, nem sempre resultam em sinergia entre as ONGs e o Estado, pois essa só se concretiza quando o trabalho realizado sob parceria é capaz de produzir mudanças no modo de interação entre os parceiros, ou quando a intervenção das ONGs conduz o Estado a melhorar a qualidade de sua atuação (KADT, 1998), ou vice-versa conforme o caso.

Diversos são os problemas verificados no contexto da parceria Estado e organizações do Terceiro Setor. Pesquisa realizada por Guimarães e Souza e Ckagnazaroff (2002) junto a duas ONGs de Belo Horizonte - Minas Gerais, verificou a possibilidade de a realização da parceria se restringir a projetos específicos, propostos pelo próprio Estado e, nem sempre, de acordo com as demandas das organizações pesquisadas. Um outro problema reside no fato de o montante dos recursos repassados pelo Estado ser, muitas vezes, insignificante (Bailey, 2000). Em agosto de 2002, por exemplo, em favor das organizações que os representam, portadores de deficiência da Bahia reivindicaram ao Estado o reajuste do valor per capita do Programa de Ação Continuada. Trata-se de um programa do governo federal cujos recursos são utilizados para o pagamento de despesas correntes e/ou contratação de pessoal especializado como psicólogos, fonoaudiólogos e fisioterapeutas. O valor repassado era de R$ 40,00 (quarenta reais) enquanto os custos operacionais giravam em torno de R$ 100,00 (cem reais). Os valores não eram reajustados há sete anos (www.correiodabahia.com.br, 2002).

Tenório e Rozemberg (1997, p.119) chamam atenção para o fato de os projetos ainda se encontrarem “em sua grande maioria, cercados por e assentados sobre estruturas arcaicas de poder, interesses resistentes a transformações sociais de maior vulto e processos

participativos”. Já Edwards (2000), ressalta que projetos bem sucedidos são aqueles que potencializam as comunidades locais.

Um outro problema dessa união é a instabilidade, provocada por atrasos ou descontinuidade no repasse dos recursos, assunto já mencionado por White e Robinson (2000), na primeira parte deste capítulo. Segundo Farah (1997, p.155) a interrupção dos projetos/programas a cada mudança de governo “decorre da permanência de mentalidade imediatista de caráter político-eleitoreiro, segundo a qual se trata de destacar a marca de cada administração pela negação radical de tudo o que foi implantado pela administração precedente”. Entretanto, dados do Programa Gestão Pública e Cidadania, desenvolvido pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, mostram que os projetos, programas e atividades investigados “freqüentemente têm mais de cinco anos de efetiva implantação, tendo continuidade de uma gestão para a outra, não em decorrência da continuidade política mas pela efetividade da ação”, relata Spink (2000, p.144), indicando uma possível reversão desse quadro.

De natureza conceitual, uma outra dificuldade refere-se ao fato de essas organizações encontrarem-se diluídas num diferenciado universo de organizações, quer sejam de benefício público, quer sejam de benefício privado, que formam o Terceiro Setor. Sabe-se, ainda, que a falta de clareza na legislação brasileira, quanto à identificação e qualificação das organizações sem fins lucrativos propicia a concessão de recursos públicos a qualquer organização desse tipo, indistintamente. Além disso, o critério de apreciação para concessão dos recursos é falho, resumindo-se somente ao exame de estatutos e documentos. Tudo isso indica que as normas relativas à constituição, funcionamento e gozo de benefícios fiscais para as organizações de perfil filantrópico necessitam de revisão (BARBOSA, 2002).

Na parte burocrática, um dos problemas reside na dificuldade das organizações do Terceiro Setor em obter o reconhecimento de utilidade pública, especialmente federal. Este instrumento, dentre outros, propicia às organizações com esse perfil o acesso a fundos públicos. Segundo Fischer (2002, p.34) “apenas uma minoria dispõe desse status e sua concessão foi fortemente manipulada como forma de distribuição de favores e de obtenção de apoio político”.

Além disso, percebe-se que, embora considerados, em certa medida, inevitáveis, excessivos controles burocráticos podem resultar no afastamento do foco de atuação no cliente,

indicando a necessidade de se buscar na expertise do Mercado instrumentos que atendam à burocracia governamental, sem que esta se sobreponha às necessidades dos cidadãos- beneficiários (DULANY, 1999).

Entre outros problemas também identificados encontram-se a exigência de transparência e submissão às regras de manuseio de recursos públicos (GONÇALVES, 1996) e a exigência de qualidade técnica das ações desenvolvidas (ARMANI, 2001).

Cada um desses fatores, isoladamente, ou a somatória deles representa, para as organizações do Terceiro Setor, problemas às vezes superiores a sua capacidade de resolução, principalmente se levar em conta sua indisponibilidade financeira.

No âmbito das parcerias firmadas entre as organizações do Terceiro Setor e o Estado, torna-se vital para os gestores de ONGs “reconhecer que a escolha de como agir deve ser, na medida do possível, uma escolha estratégica, de saber as vantagens e desvantagens de escolher pensando em futuras possibilidades e oportunidades e também nas conseqüências que podem resultar” (SPINK, 2002, p.162).

CAPÍTULO 5