• Nenhum resultado encontrado

4. COMO EXTRAIR DADOS QUALITATIVOS SOBRE VIOLÊNCIA EXTREMA? O CAMINHO METODOLÓGICO

4.3 A análise dos dados: filtros e sistematizações

Os resultados da presente pesquisa foram divididos em dois grandes conjuntos, sendo o primeiro referente à formação dos embolamentos do tráfico de drogas no estado do Rio Grande do Sul, bem como a descrição das suas práticas violentas, e o segundo referente às trajetórias dos sujeitos envolvidos com o tráfico de drogas, autores da violência extrema. A análise de cada um desses conjuntos será realizada em Capítulos específicos apresentados a seguir. Para chegar a esses resultados, contudo, antes foi necessário agrupar os dados coletados a partir dessa divisão analítica, de modo que o campo exploratório, as notícias jornalísticas e as interações dos grupos focais foram as principais fontes utilizadas na análise da estrutura do tráfico de drogas (Capítulo 05), enquanto as entrevistas narrativas foram operacionalizadas no momento da análise do sujeito do tráfico de drogas (Capítulo 06).

A transcrição dos áudios tanto dos grupos focais, como das entrevistas narrativas foi inteiramente realizada por mim com auxílio do programa informacional Sonal. O software possuis ferramentas que permitem transcrever muito mais rapidamente o que se ouve, na medida em que o programa pré-determina pausas no áudio que duram 5 segundos e fazem com que o pesquisador transcreva o que ouviu enquanto o arquivo de áudio está pausado. Após esse espaço, o próprio programa volta a reproduzir o áudio por mais 5 segundos e assim sucessivamente. O Sonal também estabelece atalhos de teclados que agilizam o processo de transcrição.

87 Sobre o processo de transcrição, há ainda alguns esclarecimentos a serem feitos. Na busca por preservar ao máximo a forma como os adolescentes se expressaram tanto nos grupos focais como nas entrevistas individuais, optei por manter a literalidade das falas, mesmo quando em dissonância com a Língua Portuguesa formal. Realizei apenas algumas inserções, para casos em que a fonética divergia da língua escrita, como, por exemplos, nos verbos no infinitivo terminados com a letra R. Também optei por não incluir a convenção de linguagem sic entre colchetes, normalmente utilizado para afirmar que o texto está reproduzindo o que originalmente foi dito. Na medida em que todo o conteúdo das falas foi reproduzido na sua originalidade, refleti que a reiteração do sic, não apenas deixaria a leitura mais cansativa, como acabaria auxiliando na afirmação de que as falas dos meninos são supostamente “menos corretas” ou estão em “descordo com a língua formal”. Para esclarecer o sentido de alguns termos que apareceram nas falas, além de explicar as expressões regionais utilizadas, inclui um Glossário ao fim do trabalho.

Findo o processo de transcrição e, para melhor proceder na análise de todo o material coletado, optei por exportar os dados e categorizá-los com o auxílio do programa informacional CAQDAS (Computer Aided Qualitative Data Analisys Software) NVivo 12. O software é uma ferramenta de suporte à análise dados qualitativos de diversos formatos, como textos, áudios e imagens, pois permite que as informações contidas nesses arquivos sejam agrupadas pelo pesquisador em distintas categorias. Esse processo é chamado de “codificação” e é responsável pela geração de “nós, nomenclatura utilizada pelo NVivo para se referir às categorias. Ao final do processo de codificação, portanto, o “nó” criado pelo pesquisador será constituído por todos os dados que digam respeito à categoria criada. No caso da presente pesquisa, os nós foram definidos a posteriori, após a coleta do material36.

Assim, se uma notícia continha, por exemplo, a narrativa sobre um episódio de esquartejamento e, em seguida, retomava alguma questão sobre a formação de um dos grupos, cada estrato foi indexado no “nó” respectivo às categorias “Formação do grupo X” e “Esquartejamento”. O mesmo em relação a fotos e gráficos cujo conteúdo se relacionasse com as categorias: os extratos foram selecionados como imagens e indexados nos seus nós de referência. A codificação dos dados com auxílio do programa NVivo foi utilizada para todos os dados coletados no campo: notícias jornalísticas, grupos focais e entrevistas narrativas. No caso das categorias analíticas referentes à dimensão da estrutura do tráfico de drogas, as notícias e

36 Em verdade, o processo de definição das categorias foi realizado em concomitância com a leitura do material. Evidente que alguns grupos de nós já estava previstos (como “Formação dos grupos” e tipos de “Violência extrema”). Outros, como “Ações estatais” surgiram a partir da presença recorrente do assunto no material.

88 grupos focais foram categorizados e analisados em conjunto, isso é, tendo como base os mesmos “nós”.

Nas figuras abaixo é possível visualizar o diagrama com os “nós” dessa primeira dimensão de análise e suas subdivisões. Optei por separar esse diagrama em duas imagens: na primeira constam o que chamei de “Nós principais”, pois são sobretudo a partir do conteúdo indexados nessas categorias que realizei a análise da estrutura do tráfico de drogas de Porto Alegre. Na segunda figura, constam os “Nós secundários”, cujas temáticas são relevantes à compreensão da violência urbana, mas cuja análise não foi desenvolvida em profundidade no presente trabalho.

FIGURA 2 - “NÓS” PRINCIPAIS DA PRIMEIRA DIMENSÃO

89 FIGURA 3 - “NÓS” SECUNDÁRIOS DA PRIMEIRA DIMENSÃO

Fonte: elaboração própria.

No diagrama da Figura 2, constam os nós “Eventos violentos” e “Violência Extrema”. O primeiro diz respeito aos eventos cuja autoria foi identificada na notícia, enquanto o segundo diz respeito ao tipo de violência operacionalizada pelos agentes. Nos casos de eventos de violência extrema específicos em que havia a identificação do grupo autor, o estrato da notícia foi codificado em ambos os nós. A razão pela qual optei por diferenciar essas duas categorias se explica pelo fato de que me pareceu relevante, por um lado, analisar o conjunto de informações a respeito dos tipos de violência e, por outro, particularizar os eventos protagonizados por cada facção.

Para proceder à análise desse material, exportei os nós separadamente para um documento no editor de textos Word e, então, organizei os estratos jornalísticos de cada nó em ordem cronológica, pois a ideia era identificar o histórico de atuação dos grupos e da operacionalização das violências de modo que fosse possível construir uma certa linha do tempo dos eventos codificados. Nesse momento, também realizei uma primeira análise do material, destacando em amarelo as informações mais relevantes de cada nó. Por fim, acrescentei algumas informações que tratavam especificamente das constituições dos grupos, da sua forma de atuação ou das violências extremas realizadas trazidas pelos adolescentes durante as entrevistas narrativas. Essas inserções foram apenas pontuais, pois a maior parte dos dados coletados por essa técnica de pesquisa foram trabalhados na segunda dimensão de análise da pesquisa, apresentadas no Capítulo 6.

90 A codificação de todas as páginas de jornal coletadas e dos grupos focais transcritos permitiu que eu visualizasse as temáticas mais presentes nesse material, identificando os assuntos abordados de modo mais recorrente. Contudo, é importante destacar que a análise dos dados foi estritamente qualitativa, de modo que não interessava para o objetivo da pesquisa identificar a proporção de cada categoria no conjunto de dados analisados. Além disso, as mídias de ambos os jornais foram analisadas em conjunto, pois também não me interessava observar possíveis diferenças de abordagem dos periódicos, uma vez que o material jornalístico foi tomado como narrativa que descreve a realidade. Desconsiderei, a priori, os vieses interpretativos na produção dessas matérias.

A cobertura da mídia tem sido uma importante fonte de dados, por exemplo, no campo de estudos sobre ciclos de protestos. Há uma parte desses estudos que, assim como a presente pesquisa, tomam os textos jornalísticos como uma fonte de informação sobre as características dos eventos, mapeando variações em suas dinâmicas ao longo do tempo. São as chamadas “análises de eventos de protestos”, uma metodologia que permite pesquisas comparativas com ênfase em processos históricos, mas que busca controlar os vieses contidos nas informações por meio do uso de fontes que cubram todo o recorte temporal da pesquisa ou pela triangulação de dados entre fontes diversas (cf. SILVA, ARAÚJO, PEREIRA, 2016). Essas foram estratégias também utilizadas na presente pesquisa.

Ainda assim, a desconsideração dos vieses das fontes jornalísticas na análise dos dados é uma limitação dessa dimensão de análise do trabalho: descrever a estrutura do tráfico de drogas de Porto Alegre tomando como base fundamentalmente as notícias jornalísticas impõe um certo ponto de vista para a descrição dessa realidade. Se eu tivesse optado por realizar uma etnografia nas comunidades em que esses grupos se instalam, por exemplo, certamente os resultados seriam outros. De todo modo, acredito que as informações trazidas pelos próprios envolvidos na dinâmica social em análise por meio dos grupos focais e entrevistas narrativas, auxiliaram a mitigar esse limite da pesquisa, na medida em que acrescentaram à narrativa jornalística a perspectiva de quem viveu o fenômeno social descrito.

Em uma segunda codificação realizada também com o uso do NVivo, inseri apenas os arquivos em que constavam as transcrições das entrevistas narrativas realizadas com os 4 adolescentes que participaram dessa etapa da pesquisa. Realizei, então, o mesmo processo de seleção dos extratos dos arquivos e agrupamento em “nós” pré-definidos. Para a análise da dimensão do sujeito, as categorias escolhidas correspondiam aos temas abordados na teoria operacionalizada, conforme se percebe na figura abaixo.

91 FIGURA 4 - “NÓS” DA SEGUNDA DIMENSÃO

Fonte: elaboração própria.

Assim, as categorias correspondem às subdivisões do Capítulo 06 e representam as temáticas que julguei essenciais para abordar o envolvimento dos adolescentes e a prática da violência extrema: a) envolvendo-se: relatos a respeito dos processos de adesão ao tráfico de drogas; b) sociabilidade violenta: relatos sobre as justificativas dos atos de violência extrema; c) masculinidades: relatos que abordem direta ou indiretamente as práticas de gênero dos meninos ao longo da sua trajetória; d) transição de vida e futuro da FASE: relatos sobre momentos que indiquem a transição para a vida adulta e sobre os projetos para quando saírem da FASE.

Certos extratos das transcrições foram alocados em mais de uma categoria, na medida em que continham significados dúbios, passíveis de serem entendidos, por exemplo, tanto como representantes do envolvimento do jovem, como da construção da sua masculinidade. Nesses casos, optei por escolher em qual subdimensão de análise as narrativas poderiam ser mais bem trabalhadas. Em alguns casos, pela força do conteúdo dos relatos, optei por analisá-las em mais de um momento, destacando os diferentes significados de uma mesma narrativa.

Nesse momento do trabalho, portanto, passei a dialogar mais diretamente com os interlocutores da pesquisa, buscando apresentar uma possível trajetória coletiva, ao mesmo tempo que destacava as particularidades das histórias de cada um. Durante a análise, portanto, em alguns momentos enfatizo os pontos de aproximação entre os meninos e, em outros, apresento as diferenças em suas trajetórias, sempre no que diz respeito às temáticas das categorias. Contudo, minha pretensão nunca foi abordar a totalidade das dimensões da vida dos adolescentes com quem conversei: a complexidade dos caminhos e vivências desses sujeitos nunca poderia ser absolutamente apreendida por uma pesquisa.

Por essa razão, existem diversas questões relatadas pelos adolescentes que auxiliaram a contextualizar alguns aspectos da sua trajetória, mas não chegaram a constar diretamente na

92 análise do trabalho. Por fim, antes de adentrar nos resultados da pesquisa, gostaria de frisar que as categorias escolhidas para serem desenvolvidas no trabalho são apenas uma possibilidade de leitura para os dados coletados. A complexidade da pesquisa qualitativa se dá justamente pela existência de inúmeras possibilidades de compreensão de um mesmo fenômeno social. A que passo a desenvolver a seguir, é apenas uma dessas perspectivas e foi construída na tentativa de fornecer uma resposta coerente com a articulação teórico-metodológica que propus nos Capítulos anteriores.

93

5. DOS EMBOLAMENTOS À VIOLÊNCIA EXTREMA: AS TRAJETÓRIAS