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2. TRÁFICO DE DROGAS NO BRASIL: A CONSTITUIÇÃO DE UM CAMPO DE ESTUDOS

2.1 As dinâmicas regionais do mercado da droga no país

Do campo de estudos sobre as facções regionais, destacam-se as pesquisas sobre as dinâmicas entre tráfico de drogas e violência em Recife (DAUDELIN; RATTON, 2017), Fortaleza (PAIVA, 2019), Belo Horizonte (ZILLI, 2015) e Porto Alegre (CIPRIANI, 2019; FBSP, 2010). Além disso, em 2018 o Anuário Brasileiro de Segurança Pública dedicou-se a mapear a incidência dos grupos no território brasileiro, indicando quais coletivos estão presentes em cada Unidade Federativa (FBSP, 2018a). A conclusão da análise é sintomática: apesar do avanço em quase todos os indicadores socioeconômicos durante a segunda metade

31 da década, as facções encontraram cenário propício para a nacionalização das suas redes (FBSP, 2018a, p. 5).

Se a nacionalização das facções criminais é uma realidade cada vez mais incontestável, evidentemente que não seria possível abordar as produções acadêmicas referentes a todos esses grupos regionais – inclusive porque apenas aqueles citados pelo Atlas somam um total de mais de 20 grupos (FBSP, 2018a, p. 7). Por outro lado, certos estudos sobre os coletivos criminais regionais são importantes porque possibilitam verificar em que medida existem padrões e distinções nas suas dinâmicas de atuação, no exercício da violência e nos processos de adesão dos jovens a esses grupos, razão pela qual serão brevemente retomados a seguir. Já as produções específicas sobre os grupos criminais de Porto Alegre serão articuladas diretamente com a análise do histórico e das formas de atuação desses grupos, em conjunto, portanto, com o material empírico coletado.

Em relação à realidade de Belo Horizonte, Zilli (2015), trabalha com a simbologia dos homicídios ocorridos em conflitos de gangues na região do entorno da cidade. Na sua concepção, a violência não é apenas uma manifestação instrumental do mercado da droga, mas preenche um caráter simbólico muito relevante na construção das subjetividades dos jovens. É uma violência, portanto, mais vinculada ao “mundo do crime” – cuja normativa interna associa a sobrevivência do jovem à execução da violência – do que à lógica utilitária do negócio da droga (ZILLI, 2015, p. 482).

Ao pensar as formas por meio das quais o tráfico de drogas e a violência letal se relacionam, Ratton e Daudelin ressalvam que o nível de propagação da violência sistêmica própria de um mercado ilegal despossuído de controle externo depende dos mecanismos particulares de cada mercado (2017, p. 118). Há, portanto, configurações que permitem mercados ilegais de droga pacíficos, como no caso das chamadas transações cobertas14, em contraste com os mercados descobertos, em que as trocas físicas são realizadas em locais públicos, visíveis, baseadas em um espaço determinado e, portanto, desprotegidos (ibid., p. 120). Assim, os autores concluem que a brutalidade do mercado do crack no Recife – devido, por exemplo, ao consumo compulsivo e ao uso excessivo de crédito consignado – contrasta de forma substancial com a quase ausência de violência nos mercados da classe média (ibid., p. 127).

14 Os autores entendem as transações cobertas como transações ocorridas “em espaços privados e bem protegidos ou mesmo em ambientes virtuais” (DAUDELIN; RATTON, 2017, p. 120).

32 Em relação à realidade de Fortaleza, Paiva (2019) aponta a transformação das dinâmicas dos grupos do tráfico na cidade. As gangues que povoavam as periferias da capital do estado na década de 1990, juntamente com os traficantes locais, ainda que fossem responsáveis por crimes de pistolagem para matar traficantes de outra região, não chegavam a exercer o domínio na vida comunitária (PAIVA, 2019, p. 172). Isso começou a mudar a partir de 2014, quando esses grupos localizados vislumbraram a possibilidade de constituir novos arranjos de união com PCC, CV, e Família do Norte (FDN). Ao mesmo tempo, o surgimento do Guardiões do Estado (GDE) deu força a um discurso identitário de vinculação com o estado do Ceará que se impôs diante dos grupos considerados “estrangeiros” (PAIVA, 2019, p. 173).

A aglutinação de interesses em torno do GDE levou a uma narrativa de que o coletivo estaria promovendo a pacificação dos seus territórios, em que pese Paiva chame atenção para a ambiguidade desse fenômeno: por um lado, a diminuição significativa do número de crimes de homicídio e, por outro, o aparecimento da tortura como meio de controle social dos que cometem delitos nos limites da periferia (ibid.). Nesse contexto, passou a ser uma prática o compartilhamento de vídeos dos “rituais” em que jovens são cobrados pelo coletivo a respeito da sua participação nesses delitos, inclusive com a ocorrência de cenas de esquartejamentos.

As dinâmicas da violência ganharam contornos ainda mais extremos quando, a partir de 2017, se criou uma rivalidade que, ainda que continue sendo local, foi representativa da disputa nacional entre CV e PCC: o primeiro se aliou à FDN, o segundo ao GDE (ibid., p.176). Nesse novo cenário, destacaram-se novas configurações da violência como a atuação das “tropas” do GDE – unidades autônomas que disputam quem realiza as missões mais espetaculares e a eliminação dos adversários da forma mais cruel –, a expulsão e morte de familiares dos envolvidos no momento da tomada de territórios, e a morte de mulheres envolvidas com homens da facção rival (PAIVA, 2019, p. 179). Conforme se verá mais à frente, esse cenário se assemelha muito ao que aconteceu na cidade de Porto Alegre, mais ou menos no mesmo período.

Por fim, no intuito de valorizar investigações sociais que busquem compreender a violência urbana nas suas particularidades locais, retoma-se brevemente alguns achados do relatório denominado “Narrativas da Violência”, parte integrante de uma pesquisa de escopo nacional vinculada ao Projeto Juventude e Prevenção da Violência e publicada no ano de 2010 (FBSP, 2010). Nesta etapa de pesquisa, a partir da realização de grupos focais com adolescentes

33 e suas mães, moradores dos bairros escolhidos para a análise15, produziu-se uma análise comparativa entre as regiões pesquisadas, no que diz respeito principalmente às relações desses sujeitos com a segurança e seus agentes nas regiões (sejam policiais ou organizadores do crime).

Uma das evidências produzidas pelo relatório diz respeito à palavra “droga” como sendo o termo mais utilizado pelos participantes da pesquisa de todas as regiões para caracterizar um local violento (FBSP, 2010, p. 56), seja na vinculação com o usuário ou com o traficante. A pesquisa, ao buscar compreender como os moradores estabelecem suas relações com os organizadores do crime, observou em todas as regiões uma regularidade na existência de um “ordenamento” a ser seguido, fundamentado no controle das informações e circulação de pessoas (FBSP, 2010, p. 66). Esse cerco às notícias sobre episódios de violência ocorridos só é possível pela existência de um sentido de comunidade amplamente difundido e pelo uso de meios específicos de comunicação interna, sobretudo a partir das redes sociais.

A pesquisa também apontou a onipresença de grupos criminais que controlavam os territórios estudados, formados sobretudo por homens jovens vinculados ao mercado da droga. Em que pese existam distintos níveis de controle efetuados por esses grupos – há certos locais em que as disputas pelas localidades estão em mais evidência do que outros –, identificou-se uma dimensão em comum a esses territórios que diz respeito à rivalidade entre bairros construída não somente pela lógica concorrencial do mercado, mas pelo fortalecimento de um “status de pertencimento” aos jovens, sobretudo aqueles do sexo masculino (FBSP, 2010, p. 71).

Segundo Pimenta, esse “status de pertencimento” construído a partir da memória visual e das relações de confiança entre os moradores de um certo território acaba gerando uma distinção entre pessoas “conhecidas” e “de fora” (PIMENTA, 2015, p. 92). Assim, conformam- se “territórios com raízes e identidades” no interior dos quais são operadas relações de poder e controle que modificam as formas de sociabilidade desses sujeitos (PIMENTA, 2015, p. 102). A relevância dessa divisão socioespacial para a compreensão das redes de sociabilidade desses jovens impõe que as pesquisas sobre as facções criminais voltem sua atenção a um importante espaço de produção dessas fraturas sociais: o sistema prisional.

2. 2 O sistema prisional e a organização do tráfico de drogas

15 A pesquisa deu-se nas seguintes localidades (bairro, cidade, estado): Brasilândia – São Paulo – SP; Jardim Ingá – Luziânia – GO; Unidade Residencial 1 (UR-1), Ibura, Recife; ZAP-5, Rio Branco – AC; Vila Bom Jesus, Porto Alegre – RS (FBSP, 2010, p. 4).

34 Uma das questões que se tornou central para as pesquisas no campo sociologia da siolência no Brasil é como a formação de coletivos criminais se relaciona com o sistema prisional brasileiro. Os estudos sobre as prisões no país tiveram início ainda na década de 70, com o intuito de abordar as violações aos direitos humanos perpetradas em um sistema marcado pela precariedade e violência, e passaram a ganhar maior volume na virada do século (LOURENÇO; ALVAREZ, 2018, p. 217). Já a atuação dos grupos criminosos nas prisões foi uma questão de pesquisa que ganhou fôlego apenas a partir do ano de 2009, com destaque para os trabalhos sobre o PCC (ibid., p. 221).

Inseridos nesse campo de estudos, Alvarez, Salla e Dias (2013) resgatam a formação das Comissões de Solidariedade que funcionaram durante o governo Montoro, em São Paulo durante a década de 80. A ideia de instituir grupos representantes dos presos foi uma das propostas postas em prática pela Política de Humanização dos Presídios e pretendia a realização de um canal direto entre os presos e a Secretaria de Justiça (ALVAREZ; SALLA; DIAS, 2013, p. 72). Assim, demandas em relação às penas e questões específicas do ambiente prisional eram encaminhadas pelos representantes que se legitimavam através de uma eleição realizada pela população carcerária. Ocorre que a política foi alvo de diversos ataques por parte da imprensa e da oposição ao governo, com base no argumento de que os representantes seriam parte de um grupo criminoso chamado Serpentes Negras.

Com a perda da legitimidade das Comissões, a negociação e os acordos formais foram abandonados em nome da retomada do uso da rebelião como forma de reinvindicação por parte dos apenados (ibid., p. 73). Finda a Política de Humanização de Montoro, a área da segurança pública tomou uma guinada bastante conservadora, o que, para resumir, acabou levando ao Massacre do Carandiru em 1992. O episódio em que 111 presos foram executados pela Polícia Militar após a eclosão de uma rebelião na Casa de Detenção de São Paulo marca não apenas o maior massacre da história das prisões no país, mas um divisor de águas para a área da segurança pública do estado de São Paulo (FELTRAN, 2018).

Assim, no ano seguinte ao episódio, surge, no Anexo da Casa de Custódia de Taubaté – presídio em que aconteciam inúmeras arbitrariedades por parte do Sistema de Justiça – um grupo organizado pelos presos e que produzia um discurso de união como forma de luta contra a opressão do Estado, o PCC. Nas narrativas dos fundadores do movimento retomadas pelos autores, é visível como a demanda por canais de comunicação entre apenados e o Sistema de Justiça possuía centralidade no discurso propagado pelo grupo.

35 Em que pese o discurso “contra o sistema” ter servido como catalisador para um grupo que logo passou a projetar novas ordens dentro da prisão, os autores concordam que é possível afirmar

que foi no vácuo deixado pela ausência de uma instância representativa da população carcerária e da completa obstrução dos canais de comunicação entre os presos e a administração prisional que o PCC encontrou um espaço para se constituir e se legitimar como alternativa ao isolamento dessa população diante de suas demandas (ALVAREZ; SALLA; DIAS, 2013, p. 74).

Com o fim das Comissões de Solidariedade, a ausência de canais de comunicação e representação dos presos que fossem legitimados pelo Estado acabou produzindo a base ideológica na qual o PCC se firmou como instância de organização da massa carcerária de São Paulo. Evidente que, desse primeiro momento até a consolidação do grupo como principal ator do mercado ilícito de drogas no país, houve um extenso percurso que só se explica, na visão de alguns pesquisadores do tema como Dias (2011), pela interlocução das ações dos agentes mobilizadores do PCC com as decisões tomadas no âmbito da administração do sistema prisional.

Um exemplo dessa vinculação entre o crescimento do coletivo criminal e as ações estatais, é a transferência de líderes para unidades prisionais do interior do estado de São Paulo. Com o intuito de desarticular o grupo, a ação acabou permitindo que a ideologia do PCC fosse divulgada em novos espaços prisionais, conforme explicam Dias e Manso (2018). O mesmo processo veio ocorrer após a criação do Sistema Penitenciário Federal, em 200616, e a consequente transferência dos principais líderes do grupo para presídios espalhados em regiões de difícil acesso, como o presídio de Catanduvas (localizado no oeste paranaense), a unidade de segurança máxima em Campo Grande, a Penitenciária de Porto Velho, em Rondônia e a Penitenciária Federal de Mossoró, a cerca de 300km da cidade de Natal.

Conforme afirmam Dias e Manso (2018), a utilização das transferências como principal instrumento dos governos estaduais para conter conflitos nos sistemas prisionais e apaziguar “crises” na segurança pública, acabou ajudando a constituir as prisões federais como principal espaço de articulação e de desarticulação do crime no Brasil. Isso se explica, na medida em que não haveria outra maneira para que líderes do crime de diferentes regiões do país (como São Paulo, Rio de Janeiro e estados do Norte e Nordeste) se encontrassem e discutissem as

16 O Sistema Federal possui características próprias de controle dos presos, com o uso de tecnologias de vigilância; celas individuais que não possuem acesso à televisão e rádio; controle da iluminação e água por parte dos agentes penitenciários; apenas duas horas diárias de banho de sol. Apesar de todas essas restrições e do Regime Disciplinar Diferenciado (Art. 52 da Lei de Execuções Penais), o sistema não foi exitoso em isolar os demais presos das lideranças do PCC. Sobre o tema ver Teixeira (2018).

36 possibilidades de aliança, de fortalecimento, de parcerias para a distribuição das drogas, ou ainda, as eventuais rupturas, não fosse a existência de um espaço prisional em comum para esses agentes. Segundo os próprios integrantes do PCC afirmam, o Sistema acabou se tornando o “comitê central do crime no Brasil” (DIAS; MANSO, 2018).

Ainda, a aderência dos presos às normas e “estatutos” propagados pelo PCC por meio dos conhecidos “salves”17 acabou produzindo, como regra, um ambiente de paz dentro das prisões estaduais de São Paulo, em contraposição ao período anterior à formação do grupo, na década de 90, marcado pelas constantes rebeliões prisionais. Em contrapartida, a aparente calmaria do sistema prisional fortaleceu o discurso dos agentes do sistema de justiça de que a situação estaria sob controle e que o PCC havia sido desmantelado pelas ações policiais. Nesse vácuo, o grupo obteve espaço para articular sua gestão e fortalecer a atuação na sua principal atividade lucrativa a partir dos primeiros anos do novo século: o mercado ilícito de drogas.

Dias e Manso (2018) apontam que, entre 2008 e 2016, o faturamento do PCC com a venda de drogas cresceu 300%, passando de 50 milhões para 200 milhões de reais, além do aumento no número de filiados ao grupo e das ações com objetivo de adentrar no mercado de drogas paraguaio. O que ocorreu no Brasil, portanto, foi uma reconfiguração criminal a partir da qual se fortaleceu a conexão “prisão-quebrada18” em grande parte do cenário nacional. Essa dinâmica funciona a partir de um entra e sai da prisão de sujeitos incriminados por tráfico de drogas, os quais fortalecem suas vinculações com as ditas “facções” no interior dos presídios em troca da garantia da segurança da manutenção de suas vidas no interior do espaço prisional.

Isso só e possível, pois, no interior das penitenciárias, aos presos não é garantido o acesso a itens básicos de higiene, à alimentação, ou mesmo ao espaço dentro das celas. No caso de Porto Alegre, por exemplo, são os presos os responsáveis pela grande parte da manutenção da infraestrutura do Presídio Central, pela execução de reparos ao prédio, bem como pelo conserto da fiação e pela pintura dos ambientes (CIPRIANI, 2019, p. 86). A penitenciária também conta com um “armazém” em seu interior, onde é possível adquirir produtos alimentícios e de higiene, pagos com dinheiro fornecido pelas famílias dos presos ou pelas próprias facções.

Além da disponibilização de artigos básicos de sobrevivência e da garantia de um ambiente com as condições mínimas para se viver, os grupos prisionais também asseguram a

17 Circulação de avisos, informações e ordens e todo tipo de mensagens oriundas dos escalões superiores do PCC (DIAS, 2011, p. 244).

18 A ideia geral do conceito é explicitar a articulação entre a prisão e a comunidade em que o sujeito vive, o que, no contexto de São Paulo, pode ser chamado de “quebrada”.

37 integridade física do preso que passa a contar com a proteção dos demais em caso de conflitos com outros indivíduos encarcerados ou com os próprios agentes penitenciários. Como forma de retribuir a proteção fornecida, os apenados saem já com tarefas específicas a serem realizadas em nome dos grupos, consolidando o ciclo “recrutamento” de indivíduos por parte das facções no interior do sistema prisional. Para Cipriani, em relação ao contexto de Porto Alegre, o que ocorre é uma “dinâmica do apoio e da tríplice relação de dar, receber e retribuir” (2019, p. 112). Essa conexão entre o espaço da rua e a cadeia, formou uma visão de mundo única, em que gírias, gestos e expressões são os mesmos tanto no interior do presídio, como nas favelas e comunidades para onde esses sujeitos retornam quando saem, tudo bastante interligado pelos novos meios de comunicação, como os aplicativos de mensagens no celular (DIAS; MANSO, 2018). Sobre essa interconexão entre o “de fora” e o “de dentro”, o sociólogo francês Loïc Wacquant desenvolveu a hipótese de que a forma como foram geridas as prisões nos Estados Unidos acabou consolidando dois processos sociais em paralelo: o gueto se tornou mais como uma prisão e a prisão se tornou mais como um gueto (2002, p. 97).

Para Wacquant, uma primeira questão diz respeito à emergência de uma “governabilidade para a pobreza”, em que o aparato punitivo é ancorado por um complexo assistencial de gestão desta população, a qual se encontra restrita a um espaço geográfico específico da cidade. Essa formação socioespacial tanto acaba representando um instrumento de exclusão, como oferece uma proteção parcial para aqueles que ali vivem (WACQUANT, 2002, p. 103). Instituições como abrigos para moradores de rua e crianças, além das escolas públicas, por exemplo, constroem seus próprios muros e se tornam cada vez mais semelhantes às prisões.

Ocorre que, na hipótese do autor, a exclusão socioespacial do gueto foi insuficiente para conter a população, sobretudo negra, que necessitava dos empregos oferecidos em outras regiões da cidade. Na década de 70, com a queda dos empregos nas manufaturas, ambos os espaços, gueto e prisão, passaram a desempenhar a tarefa de contenção do excedente populacional, na medida em que “os afro-americanos já não eram mais necessários no sistema econômico da metrópole” (ibid.p., 105). Assim, o aumento vertiginoso do encarceramento da população mais pobre e negra nos Estados Unidos vem acompanhado por um processo em que as prisões se transformam em espaços mais semelhantes aos guetos.

Um importante indicativo desse processo de homogeneização da prisão e do gueto, no caso da realidade observada por Wacquant, é a transferência para o espaço intramuros das segmentações que existem nas ruas, isto é, as prisões deixam de ser subdivididas, por exemplo,

38 a partir das categorias criminais a que correspondem os sujeitos e passam a ser segmentadas com base nos pertencimentos étnicos que vigoram nos guetos (2002, p. 110). Os afroamericanos, portanto, formam um grupo distinto dos latinos que também é distinto daquele formado por brancos.

Para o autor, esse processo se torna cíclico, na medida em que aqueles que saem das prisões retornam para as regiões da cidade onde há muito mais chance de serem novamente os alvos da força policial e, assim, voltarem às prisões de onde saíram. Entre gueto e prisão existe, portanto, uma relação de “equivalência funcional”, pois ambos servem ao mesmo propósito de coerção pelo confinamento e de estigmatização da população, e de “homologia estrutural”, uma vez que compreendem os mesmos tipos de relações sociais e de padrões de autoridade