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MAPA 4 A DIVISÃO DO TERRITÓRIO DE PORTO ALEGRE ENTRE BALAS E ANTIBALAS

6. AS TRAJETÓRIAS DOS ENVOLVIDOS NO TRÁFICO

Perigoso e excitante, tá ligado? Deliciosamente arriscado Um exagerado E traz um medo como ter um pelo É um tempero mágico Mas o final é sempre trágico

(9vinha, Emicida)

“Envolvido: um modo de estar, ficar ou ser?” (CECCHETTO; MUNIZ; MONTEIRO, 2018, p. 106). O questionamento que inicia a discussão de Cecchetto, Muniz e Monteiro sobre a “economia do envolvimento” estabelece de pronto uma nova gramática para falar sobre os sujeitos do “mundo do crime” que abdica das noções mais difundidas de “bandido” (ZALUAR, 2009) e “vagabundo” (MISSE, 1999) em nome de um adjetivo mais ambíguo e abrangente. Ainda que o português formal preveja uma complementação – envolvido com alguém ou envolvido em algo –, no caso dos adolescentes entrevistados para essa pesquisa, o significado desejado estava inteiramente contido no termo em si. Ser ou estar envolvido era o suficiente para designar a atuação, de maior ou menor proximidade, no “mundo do crime”.

São justamente os envolvidos o tema desse Capítulo. Após abordar as lógicas de constituição e atuação das facções gaúchas – entendidas como estruturas sociológicas – a discussão a seguir irá adentrar unidade de análise do campo da microssociologia, também comumente denominada de agência, ou, simplesmente, sujeito. Nesse sentido, coaduno com a perspectiva teórica que entende a sociologia como disciplina cada vez mais voltada às teorias de médio e micro alcance, isto é, como ciência empírica cuja prática pressupõe o campo de pesquisa e o encontro com os sujeitos sociais (VANDENBERGHE; VÉRAN, 2016, p. 11).

Para isso, por entender que somente é possível captar o universo de significados pertencentes ao domínio do tráfico de drogas e das facções criminais por meio do olhar e da compreensão daqueles que experienciam esse universo, afirmo minha aposta na reflexividade dos atores sociais com quem conversei (cf. BOURGOIS, 2003). Além de serem eles os especialistas nesse fenômeno social, acredito que também é por meio da apreensão da sua trajetória biográfica que se torna possível compreender como alguém se torna um envolvido a ponto de direcionar suas ações para os fins exigidos pela estrutura do tráfico, como, por exemplo, a realização da violência extrema.

Assim, na primeira parte do capítulo, utilizo as diversas trajetórias apreendidas durante o campo de pesquisa para propor o que chamo de “trajetória comum” do adolescente envolvido, traçando pontos de contato entre as suas experiências de vida individuais que possibilitam

147 determinar “momentos chaves” na adesão ao tráfico de drogas por meninos que vivem na periferia dos espaços urbanos do Rio Grande do Sul100. Com isso, não estou afirmando que a ocorrência de um ou outro evento é determinante na adesão do jovem, ou que seria possível generalizar essa trajetória a todos os envolvidos. Não seria plausível propor algo dessa magnitude, primeiro por não se estar trabalhando com uma amostra que permita esse tipo de afirmação; segundo, por se acreditar que as trajetórias individuais são mais permeadas de particularidades e contradições do que de possíveis universalizações e continuidades.

No segundo item, conforme previa o referencial teórico fundante dessa pesquisa, questiono as possibilidades de afirmar a existência de uma “sociabilidade violenta” no caso do contexto analisado, indagando se o exercício da violência extrema por eles poderia, de fato, indicar um “novo regime de ação” (MACHADO DA SILVA, 1999). Em seguida, retomo a discussão em relação ao que acredito ser o principal achado dessa pesquisa: a relevância teórico- empírica que a compreensão das práticas de gênero desses meninos tomou para a explicação dos atos extremos de violência letal. Nesse momento, contraponho a justificativa para o uso da violência extrema na visão dos coletivos criminais – conforme estabelecido no Capítulo 5 – em relação aos significados que a mesma violência extrema tomou pela ótica dos sujeitos envolvidos.

Por fim, questionando “o que vem depois da guerra?”, adentro nas especificidades das transições de vida dos envolvidos, isto é, nas experiências que indicam processos não-lineares de construção do processo de “fazer-se adulto” (PIMENTA, 2007, p. 35), sejam essas vivências propriamente vinculadas ao “mundo do crime” ou não. Nesse momento, busco indagar quais foram os acréscimos, as cicatrizes e as transformações que se assentaram nas subjetividades desses adolescentes após o envolvimento, a guerra e a internação. Que sujeitos emergem desse emaranhado de conflitos? Para onde vão esses meninos e com o que irão se envolver quando retomarem suas vidas em liberdade?

6.1 “Daí comecei a me envolver”: a trajetória comum na adesão ao tráfico de drogas

100Em que pese o foco principal da análise se restrinja às realidades de Porto Alegre e Região Metropolitana, um dos adolescentes entrevistados residia na cidade de Rio Grande, litoral sul do estado. Apesar da existência de particularidades de cada território, entendo que é possível tratar essas trajetórias em conjunto pela similitude de eventos apresentada.

148 6.1.1 Infância

Conforme já explicitei anteriormente, as análises que serão apresentadas a seguir são fruto da pesquisa de campo realizada com adolescentes internados na FASE, com os quais realizei entrevistas narrativas sobre suas trajetórias de vida (BERTAUX, 1997). Ainda que eu tenha deixado claro que meu interesse se dava na história de cada um deles, sem especificar quais aspectos dessa trajetória eu buscava compreender, de pronto três dos meninos entrevistados iniciaram suas narrativas indicando serem envolvidos: “ah eu sou envolvido desde os 13 né Dona?”; “ah, quando eu era criança na real, por eu ter me envolvido no crime, já tive uma influência”; “ah eu era uma criança normal né (risadas). Brincava, jogava bola, tudo. Mas depois de um tempo fui me envolver com o tráfico”. O quarto adolescente iniciou sua narrativa a partir de outro aspecto que também denota seu envolvimento: “primeira vez que eu caí preso eu tinha 12”.

O ponto pelo qual um sujeito inicia a narrativa da sua história de vida é uma primeira questão a ser observada nas análises que utilizam esse tipo de metodologia (ROSENHTAL, 2014, p. 225). No caso da presente pesquisa, se por um lado, a forma como os adolescentes introduziram suas vidas evidenciou a centralidade que a vinculação com o “mundo do crime” possui na vida deles, por outro, permitiu questionar o quanto alguém que se apresenta como “pesquisadora da Universidade” poderia estar interessada em outra coisa que não as histórias a respeito do envolvimento. Os meninos podem não saber exatamente o que queremos – nós da Universidade – mas conhecem exatamente o discurso de “gente como a gente” (FELTRAN, 2008a, p. 82).

Em todo caso, na perspectiva teórico-metodológica de Bertaux, é pela comparação entre as trajetórias que se consolida o modelo de análise, isto é, pela busca de percursos com traços comuns (1997, p. 94). Seguindo essa orientação, iniciarei abordando os aspectos análogos das trajetórias dos adolescentes entrevistados, a começar pelas narrativas a respeito da sua infância, referentes principalmente ao período que antecede o envolvimento nas atividades do “mundo do crime”. Com isso, contudo, não estou afirmando que a infância desses meninos terminou no momento em que eles identificaram o início da vinculação ao tráfico de drogas: não se trata de estabelecer a infância-juventude-adultez como “fases de vida” subsequentes uma a outra (PIMENTA, 2007, p. 68).

Romper com esse modelo linear de desenvolvimento do ser humano – em que a existência está segmentada em “categorias de idade” (ibid.) – pressupõe entender as

149 especificidades desses períodos de acordo com as vivências de cada grupo de sujeitos. No caso da infância, por exemplo, para além de uma “fase natural”, supostamente marcada pela pureza e espontaneidade, seria necessário localizá-la como uma “experiência cultural particular, histórica, politicamente contingente e sujeita a mudanças” (COSSE et al., 2011, p. 12).

Nesse sentido, a ideia de infância, no caso da presente pesquisa, foi construída com base na forma como os próprios sujeitos identificaram essa fase, marcada, sobretudo, como um período em que a vida era “normal” e “serena”. Um dos adolescentes ressaltou que “ia na Igreja, estudava, fazia tudo certo”, enquanto outro trouxe elementos comumente esperados na vida de uma criança: “brincava, jogava bola, tudo”. Em narrativa um pouco mais aprofundada, um terceiro interlocutor explicou o que seria o “fazer o certo” durante esse período:

Não arrumava briga no colégio, fazia tudo certinho. Eu ia pro colégio de manhã, ia pro colégio ficava no colégio, voltava ai almoçava. Aí meu pai deixava eu ficar jogando vídeo game até de tarde. De tarde ia pro SASE101. Do SASE voltava um pouco pra casa, tomava um banho, comia, jogava um vídeo game até umas 22h, dormia pra se acordar cedo no outro dia. Eu nem ficava muito na rua.

(Entrevista com Wellington, 19 anos).

Ainda que os relatos sobre a época em que os adolescentes se entendiam como crianças sejam bastante escassos em comparação com as narrativas de outros períodos de sua vida, a priori é possível identificar uma certa idealização a respeito da infância. A vida era tranquila, permeada de momentos de lazer e marcada por uma rotinização que dividia o tempo dos meninos entre a escola, o brincar e alguns espaços típicos de sociabilidade, como a Igreja e os serviços assistenciais. Nesse sentido, é possível identificar paralelos com a fase da infância descrita por Lyra (2013) em sua pesquisa com os “garotos do morro”. Para o autor, nesse período as tradicionais instituições da escola e da família se fariam presentes na organização da rotina destes indivíduos, cumprindo um papel de proteção das “más influências” (LYRA, 2013, p. 76).

Por meio da simbologia do cuidado e da proteção, Lyra identificou uma valorização simbólica realizada pelos garotos em relação a esse período, a qual vem a sofrer um corte abrupto a partir do momento em que a condição de “criança normal” deixa de existir (LYRA, 2013, p. 77). Também foi essa a operação realizada pelos adolescentes envolvidos que, de pronto, estabeleceram uma cisão entre a infância e o período posterior de suas vidas: “(...) mas depois de um tempo fui me envolver com o tráfico, começar a matar aula pra traficar.”

101A Sociedade de Assistência Social e Educacional (SASE) é um serviço vinculado à Assistência Social do Município e objetiva o atendimento a criança e adolescente do turno inverso a escola, com foco no acolhimento de crianças e adolescentes cujas famílias participam de programas sociais.

150 Antes de adentrar nesse segundo momento, contudo, é preciso realizar algumas ressalvas a essa imagem idílica a respeito da infância dos envolvidos. Se a primeira narrativa proposta pelos interlocutores apresentou uma imagem substancialmente positiva a respeito do período, no decorrer da entrevista outros elementos operaram como importantes contrapontos. O adolescente que havia feito referência à igreja, por exemplo, explicou que, quando não queria ir ao espaço do culto, sofria agressões físicas de seu avô, situação que ele, em seguida, articula como importante fator para o seu envolvimento.

Ah porque na real ele [avô] batia em mim quando eu era pequeno, batia afu em mim. Eu ia na igreja, se eu falasse: não, não vou ir. Eu apanhava e ia igual. Entendeu? Isso ai já contava bagulho...afu pro negativo que o cara tinha em mente. Daí foi passando o tempo, ele queria que eu fosse. Eu falei "não, não vou ir e já era". Daí eu parei de ir, não comecei mais. Foi logo que mataram meu primo. Daí comecei a me envolver mesmo.

(Entrevista com João Pedro, 20 anos).

Já outros dois interlocutores identificaram uma falta de interesse no ambiente da escola: “me anojei da escola”; “ah não curtia o colégio, nem gostava de aula”. Para esse segundo, a falta de alguém para levá-lo ao ambiente escolar teria sido um incentivo para que ele procurasse outras atividades: “já faltava aula já (risada). Minha mãe ia trabalhar né? Daí não tinha ninguém, ficava lá, eu já não ia pro colégio. Tinha que ir sozinho, daí nem ia”. Esse mesmo adolescente resumiu esse período da sua vida de forma categórica: “nem tive infância direito”.

Há ainda um elemento que apareceu em duas narrativas referente às brigas ocorridas na escola e às consequências desses comportamentos para os meninos. Um dos adolescentes afirmou que “brigava toda hora”, tendo sido expulso do colégio em razão desses conflitos. O relato de um segundo deu conta do uso de remédios para conter uma suposta agressividade nata identificada por ele.

Matheus: E eu bebia remédio quando eu era pequeno né? Porque eu era muito brigão na escola. E depois que eu me envolvi eu parei de beber remédio, daí eu fiquei muito agressivo, eu gostava de agredir as pessoas.

Pesquisadora: Mas daí tu brigava na escola com teus colegas?

Matheus: Com todo mundo. Com professor, já bati em professor, já dei cadeirada em professor. Era muito brigão, era agressivo afu. Não sei porquô. Sempre fui agressivo. (Entrevista com Matheus, 17 anos).

A manifestação de comportamentos agressivos por parte dos jovens será retomada posteriormente. Em todo caso, o importante aqui é observar como os exemplos trazidos contestam a imagem romantizada da infância desses meninos inicialmente apresentada. Assim, mesmo antes do seu envolvimento, os adolescentes identificaram a existência de momentos de

151 tensão e conflitos em suas trajetórias, sendo que alguns eventos ocorridos durante esse período foram acionados como justificativas para o “abandono” da infância e a aproximação ao “mundo do crime” ocorrida logo em seguida.

6.1.2 Envolvimento

Os eventos disruptivos, como estou chamando esses episódios que marcam o início do envolvimento, estão indicados no quadro a seguir, juntamente com outras características descritivas dos adolescentes entrevistados. O propósito desse quadro é estabelecer um panorama geral a respeito das trajetórias analisadas, sobretudo em relação a aspectos mais objetivos extraídos de suas narrativas. Algumas dessas características, por estarem presentes em todos os casos, merecem destaque: a) a idade de 12 e 13 anos como marco do início do envolvimento; b) a presença da mãe ou de figuras femininas, como irmãs mais velhas e avós, no núcleo familiar principal; c) a ausência do pai biológico; d) a vinculação de pessoas do círculo familiar, mais ou menos próximas, ao “mundo do crime”.

QUADRO 8 - CARACTERÍSTICAS DOS ADOLESCENTES ENTREVISTADOS: FASE ANTERIOR AO ENVOLVIMENTO

Carlos João Pedro Matheus Wellington

Idade em 2019 18 20 17 19

Idade no início do

envolvimento 13 12/13 12/13 12/13

Núcleo familiar mais

presente Mãe e irmãos

Mãe, avó, avô e irmãos

Mãe, irmãos maternos, padrasto

Mãe, irmã materna (marido e filhos), irmãos maternos Pai biológico Saiu de casa quando Carlos tinha 12 anos Não conhece Conheceu quando já era adolescente. Não é muito presente Vítima de homicídio quando Wellington tinha 9 anos Pessoas referências

ligadas ao crime Irmão Tio e primo

Mãe e irmãos paternos Primos, irmãos paternos Evento disruptivo Saída do pai de casa pelo uso abusivo de crack

Morte do primo e do tio (vítimas de homicídio)

- Morte do pai

Fonte: elaboração própria.

Ao contextualizar o momento do seu envolvimento, os adolescentes articularam situações marcantes como sendo o fator explicativo principal para que eles, figurativamente, passassem por uma porta e adentrassem o “mundo do crime”. Assim, em dois casos, os eventos disruptivos foram constituídos pela morte violenta de algum parente próximo, aproximando a

152 presente pesquisa dos achados do trabalho realizado por Rolim a respeito do que o autor chamou de “formação de jovens violentos” (ROLIM, 2016, p. 171).

Para João Pedro, o golpe foi duplo: no intervalo de alguns meses, seu primo foi morto por um grupo contrário que vivia na mesma vila e seu tio morreu enquanto realizava um assalto.

Mas daí em 2012 mataram meu primo, quando ele tinha minha idade mais ou menos. Naquele tempo né? Ele tinha uns 12 anos. 2012 mataram ele. Quando vê meu tio morreu num assalto também. Comecei a fumar maconha e comecei a me envolver daí. Comecei a me perder. 2014 comecei a traficar, vê mão.

(Entrevista com João Pedro, 20 anos).

O adolescente referiu sentimentos de indignação e rebeldia surgidos a partir desses eventos que foram responsáveis por tirá-lo da condição de “sereno” para colocá-lo em um estado de não querer “mais nada”, referindo-se ao ambiente escolar. O passo seguinte expressou uma nova fase na vida do jovem: “comecei a vê mão102”. Já no caso de Wellington, o evento disruptivo não se constituiu apenas pela perda do pai, assassinado na noite de natal, mas das mudanças no seu território de referência decorrentes do fato. A partir de então, o jovem indicou que sua socialização passou a se dar no trânsito entre o local de moradia de sua irmã mais velha e de sua mãe.

Ah porque antigamente ele [pai] era envolvido com o crime. Ele tinha boca, ele era patrão de boca de tráfico, mas ele tinha largado tudo de mão. E mesmo assim mataram ele. Daí mataram ele numa festa de natal. Daí eu fiquei morando com a minha irmã um tempo. Depois não quis mais morar com ela, daí fiquei morando com a minha mãe. Depois eu acabei me envolvendo.

(Entrevista com Wellington, 19 anos).

Nas proximidades de onde sua mãe vivia, também moravam os primos paternos do adolescente, identificados por ele como “patrões” da vila. O processo de envolvimento é, então, narrado de modo mais ou menos natural: “quando vê103 eu comecei a roubar, quando vê daí, bá, eles ficaram armado, eu gostava de vê eles armado, vou ficar armado também um dia. Quando vê eu comecei a ficar com eles aí”. Em ambos os casos, portanto, o homicídio de homens referências é o marco que separa o período da infância com o do envolvimento, como se os meninos buscassem nas atividades do tráfico alguma resposta ao luto que estavam vivendo.

Esse luto também aparece na trajetória de Carlos, mas de modo figurativo. O evento disruptivo na vida do adolescente é formado pela saída de casa de seu pai que, segundo descreve

102 Expressão que faz referência a atividades relacionados ao tráfico, como transporte e comércio de drogas. 103 A expressão “quando vê” é bastante utilizada nos relatos dos adolescentes e indica, como bem descreve Rolim, “uma determinada experiência onde tudo acontece não porque há sujeitos responsáveis ou porque há circunstâncias condicionantes, mas porque as coisas simplesmente acontecem” (2016, p. 161).

153 o jovem, seria um usuário abusivo de crack: “é, daí depois que ele foi embora daí mesmo que eu me envolvi”. A relevância da ausência do pai é algo que retorna em outros momentos da narrativa como, por exemplo, quando refere que a situação mais triste vivenciada por ele foi quando começou a entender que seu pai fumava crack. Já o momento mais feliz foi acionado pela imagem de toda a família reunida: “ah acho (que um momento bom foi) quando tava eu, minha mãe, meu pai e meus irmão né Dona?”

Por fim, para Matheus, o evento mais marcante não foi relacionado ao envolvimento inicial, mas à maior vinculação com o “mundo do crime”, ocorrida anos após. Assim, no caso dele, o corte na narrativa se deu pela comunhão entre a responsabilidade adquirida nas atividades do tráfico e a entrada da sua mãe em uma posição de comando na boca.

Daí com 15 anos ali eu já comecei a ver uma mão mais de responsa pros cara né. Comecei a mexer um pouco mais com droga, mais dinheiro. E depois de um tempo a polícia pegou e matou um dos patrão lá da minha vila né. Daí minha mãe ficou no lugar dele. Porque minha mãe sabe lidar com dinheiro e tudo, e ficou no lugar dele. (Entrevista com Matheus, 17 anos).

A ausência de um evento disruptivo evidente, como demonstrado nos demais casos, também se deu pelo fato de que a narrativa de Matheus foi a única da qual as principais justificativas para a entrada no “mundo do crime” não emergiram de forma suficientemente nítida. O jovem é o que teve mais dificuldade para expressar quais seriam as razões que o fizeram se envolver, terminando por utilizar uma expressão jocosa que pouco diz a respeito dos reais fatores da sua adesão ao tráfico.

Me envolvi mais de cabeça dura mesmo. Tem muita gente que se envolve porque precisa né. Tem problema na família. Mas eu me envolvi mais de cabeça dura, fui mais pelos outros. Que nem eu te disse, meu padrasto tinha um mercado, nunca deixou faltar nada pra mim. Meu irmão sempre trabalhou, nunca deixou faltar nada pra mim também. Eu me envolvi de bobalhão mesmo.