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4. COMO EXTRAIR DADOS QUALITATIVOS SOBRE VIOLÊNCIA EXTREMA? O CAMINHO METODOLÓGICO

4.2 Tecendo a ética na pesquisa

Para a sua realização, a pesquisa passou por todos os trâmites previstos na Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde que rege a atuação do Comitê de Ética em Pesquisa da UFRGS (CEP-UFRGS). Após a apresentação dos documentos de pesquisa demandados e das adaptações necessárias, o projeto foi aprovado em parecer de nº. 3.525.243 emitido pelo

83 CEP-UFRGS (Anexo A). Além disso, a partir do contato com a Assessoria de Informação e Gestão da FASE, o projeto também observou os procedimentos internos para a realização de pesquisas dentro da instituição, tendo sido aprovada em observância da Resolução 004/2017 da Fundação.

O cumprimento desses aspectos normativos, contudo, não é suficiente para afirmar que a pesquisa respeitou parâmetros éticos. Há correntes nas Ciências Sociais que sequer entendem que os procedimentos dos Conselhos de Éticas devam servir de guia a esse campo de saber cujas implicações éticas não deveriam estar sob o crivo de pessoas da área médica (FONSECA, 2010). Sem querer entrar nesse debate, parece importante retomar tanto as estratégias que foram mobilizadas durante a interação com os entrevistados, como os momentos que fizeram aflorar aspectos éticos na realização de pesquisa com adolescentes e jovens privados de liberdade.

A partir do momento que entrei em contato com os profissionais da FASE para apresentar a ideia da pesquisa, busquei deixar claro que não estava dentre meus objetivos questionar a atuação da instituição para com os adolescentes, de modo que, mesmo em momentos em que presenciei situações que demonstraram algum nível de desrespeito aos direitos dos socioeducandos, minha opção foi sempre pela não interferência. Considerei que não seria ético utilizar da minha entrada na instituição como pesquisadora para realizar qualquer tipo de enfrentamento ou denúncia, inclusive pelas consequências que isso poderia ter para outras futuras pesquisas.

Apesar disso, devo salientar algumas particularidades próprias do modo de funcionamento da FASE/RS que acabaram interferindo no desenho da pesquisa e, consequentemente, nos resultados alcançados. Investigações sociais realizadas no interior de instituições totais são sempre permeadas por restrições impostas diretamente pelos trabalhadores da instituição ou por limitações decorrentes do fato de estar-se em um espaço de privação de liberdade, regido por critérios de segurança estritos.

O primeiro ponto diz respeito ao critério de seleção dos adolescentes. Conforme expliquei, a construção do corpus da pesquisa se deu em conjunto com a Equipe Técnica do CSE que indicou uma certa ala da Unidade como sendo o “melhor” local para a realização do estudo. Ainda que características objetivas tenham sido elencadas para essa escolha, a determinação de quais adolescentes poderiam participar da pesquisa acabou sendo realizada por profissionais da própria instituição. Uma outra questão ética diz respeito à qualidade do consentimento de adolescentes que estão em uma situação de total restrição de liberdade.

84 Sobre esse ponto, é importante recordar que todo o deslocamento dos adolescentes no interior da Unidade em direção aos espaços em que eu os aguardava para realizar a pesquisa aconteceram com os meninos algemados. Evidente que isso só ocorreu após eles terem consentido com a realização da pesquisa – os que não quiseram participar sequer foram deslocados –, mas, ainda assim, o uso das algemas relativiza a voluntariedade de sua participação. O que mitigou esse fato foi a permanência dos meninos sem as algemas durante todos os momentos em que estiveram comigo. Por fim, o fato de eu ter sido apresentada aos adolescentes pela Equipe Técnica que os acompanha e os avalia35, pode ter influído tanto na opção pela sua participação na atividade, por julgarem que isso poderia ajudar a produzir uma “boa” imagem deles, quanto pela negativa, por entenderem que as informações repassadas a mim poderiam prejudicá-los nessa avaliação.

Atentando para essa questão, desde o primeiro momento, tive a preocupação de me diferenciar dos profissionais da FASE sempre em que me encontrei com os adolescentes. Colocar-me como alguém que vem de fora da instituição foi importante para estabelecer uma relação de confiança com meus interlocutores, para que eles se sentissem seguros para compartilhar suas experiências, mesmo quando essas estivessem relacionadas com o cometimento de delitos. Durante a narrativa desses episódios, procurei não emitir qualquer juízo de valor, sobretudo quando os adolescentes tratavam com naturalidade situações de violência vividas por eles (tanto como autores, quanto como expectadores).

Ainda que aparentemente em contradição com essa última afirmação, também me permiti ser afetada pelos relatos que ouvi. Entendi que a postura ética nessa pesquisa em específico passava por me afastar de um comportamento “robótico”, como se, como pesquisadora, eu pudesse me colocar de forma completamente alheia aos sentidos das falas que se produziam na interlocução com os sujeitos da pesquisa. Assim, quando os adolescentes indicavam que uma dada situação era engraçada, eu acabava rindo com eles; quando

35 O Sistema de Justiça Juvenil não prevê a determinação prévia do tempo de cumprimento de medida socioeducativa de internação aos adolescentes condenados pela prática de ato infracional. A Lei que rege o Sistema, o ECA, apenas dispõe que a internação não ultrapassará o prazo de 3 anos de duração (Art. 121, §3º), de modo que, a partir do início do cumprimento da MSE, a internação será sempre reavaliada no prazo máximo de 6 meses (Art. 121, § 2º) em audiência realizada na Vara Judicial que acompanha a execução das medidas até se entender que a medida atingiu a sua finalidade ressocializadora. Nessas audiências, um dos critérios avaliados pela autoridade judiciária é o cumprimento da MSE de modo satisfatório. Para realizar a avaliação que pode culminar na decretação do término da medida e na liberação do adolescente, os magistrados se baseiam nos relatórios interdisciplinares realizados pela Equipe Técnica que acompanha o socioeducando. É por essa razão que muitos adolescentes prezam por uma boa relação com os profissionais da Unidade e buscam demonstrar proatividade em atividades oferecidas pela instituição.

85 demonstravam inconformidade com alguma questão – como a atuação da polícia ou do sistema de justiça, por exemplo – eu me expressava da mesma forma.

Em grande parte, essas escolhas foram muito mais intuitivas do que pré-determinadas. Em suma, o que me guiou durante a realização dos grupos focais e das entrevistas foi, principalmente, o pressuposto de que eu deveria buscar construir momentos de interação com os adolescentes que fossem o mais espontâneos possível, de modo que as minhas reações aos seus relatos também foram, em grande parte, fruto do que eu verdadeiramente sentia quando escutava o que eles me diziam. Meu único cuidado planejado, foi o de não desenvolver minhas opiniões sobre o que eles me relatavam, de modo que me expressei apenas por meio de sons afirmativos e de expressões simples como “entendi”, “sim”, “claro” ou através do silêncio.

Naquele momento, pouco importava o quanto eu considerava injusto o tratamento que eles recebiam do sistema repressivo, ou como admirava a resiliência deles em tantos momentos difíceis pelos quais passaram em fases tão precoces da vida. Na medida do que foi possível, busquei respeitar o sentido que meus interlocutores deram aos seus relatos, comportando-me de modo a indicar que eu, assim como eles, sentia indignação e tristeza, mas que também podia rir de situações tragicamente inusitadas, como, por exemplo, quando um adolescente narrou uma situação em que uma profissional da socioeducação que lhe atendia em outra instituição tomou um choque quando encostou em uma porta de ferro que estava sendo utilizada por ele e outros adolescentes para carregar um celular:

Carlos: É, também lá em Pelotas eu... eu mexia assim pra carregar o telefone né? Que eu aprendi que quando eu tava lá, meu cupinxa antes de ir embora ele me ensinou né, que nóis ligava o carregador...tipo aquelas lâmpadas que... que sai assim, daí nóis ligava o fio na lâmpada e um na porta, pra fazer o terra né Dona? Pra ligar o carregador.

Pesquisadora: E dá certo?

Carlos: Dava, só não podia tocar na porta que dava choque (risada). Uma vez deu até choque numa Dona sem querer. Porque o cara deixava ali e não podia pedir banheiro, né Dona? Daí quando vê a Dona libera nóis: “atendimento” (risada).

Pesquisadora: (risada).

(Entrevista com Carlos, 18 anos).

Por fim, nos momentos em que o adolescente indicou um nível de sofrimento capaz de silenciá-lo a respeito de algum aspecto da sua vida, senti a necessidade de suspender a abordagem do assunto. Isso ocorreu mais de uma vez durante a realização das entrevistas narrativas, mas a situação mais significativa foi quando Matheus me relatou o episódio em que ele atirou acidentalmente no rosto de um amigo de infância. O silêncio, a voz embargada e o olhar distante foram suficientes para que eu optasse por não questionar se o seu amigo havia falecido na oportunidade, ou ainda demandar mais detalhes sobre esse fato.

86 É muito provável que eu não tenha percebido todos os momentos em que as minhas intervenções levaram ao reavivamento de episódios de difícil assimilação por parte dos adolescentes. Afinal, a pesquisa sociológica que entra em contato com indivíduos e que busca na narrativa das suas experiências as informações que precisa para tecer suas análises está, a meu ver, fadada a causar desassossego, inquietação e sofrimento. O comprometimento em construir significados socialmente potentes com o que se obtém dessas intervenções, além da crença de que a narrativa dos envolvidos a respeito da sua própria vida precisa ser cientificamente considerada, talvez sejam os principais resguardos éticos do pesquisador, mesmo que as dúvidas a respeito do quanto é válido estimular sujeitos a relembrarem momentos difíceis da sua história sem lhes oferecer qualquer tipo de resposta a essas questões nunca deixem de existir.