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a discussão sobre a possibilidade de interrupção da gestação de feto anencéfalo tornou-se fervorosa, isso tudo porque a citada lei acolheu a morte encefálica como indicador de fim da vida:

Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina [Grifo nosso].

A resolução nº. 1.480, de 08 de agosto de 1997, complementar a Lei nº. 9.434/97, do Conselho Federal de Medicina, fixa os critérios para a caracterização de morte encefálica. Em suas considerações iniciais, aduz que a parada total e irreversível das funções encefálicas equivale à morte, conforme critérios já bem estabelecidos pela comunidade científica mundial (BRASIL, 1997;1997).

Do artigo 3° da Lei 9.434/97 (BRASIL, 1997) é que surgiu o momento exato da ocorrência da morte e marco autorizador da retirada de órgãos e tecidos. Questiona-se se este conceito legal poderia ser aplicado ao feto anencéfalo considerando-o morto juridicamente. Parte tal fundamento da lógica de que morte é cessação das atividades cerebrais e como o anencéfalo não possui cérebro nunca foi vivo.

Para os que defendem a existência de vida, baseando-se nas atividades apenas do tronco cerebral (responsável pelos movimentos involuntários), ausente o córtex cerebral, aduz Fernandes Penna (2005, não paginado):

O diagnóstico de morte neurológica equivale em termos jurídicos ao diagnóstico de morte constatada com o critério circulatório (parada cardiorrespiratória irreversível). Portanto, não se trata de morte de uma determinada parte do organismo como muitos interpretam e os termos morte cerebral, morte do tronco encefálico e morte de todo o encéfalo (whole brain

death) sugerem.

[...]

Confunde-se, assim, morte neurológica com a morte de uma determinada parte do encéfalo ou de todo ele – ou seja, confunde-se critério com conceito.

Oportuna e fundamental é o entendimento de Holf (apud FRANCO, não paginado) “a vida biológica, controlada principalmente pelo tronco cerebral, não é unicamente humana, porque comparte suas características com os não humanos. É por isso que o geneticista Walter Pinto (apud VIEIRA, p. 14) explica que “a célula

retirada de um tecido vivo pode se multiplicar diversas vezes, se colocada no meio apropriado de temperatura e oxigênio, e guarnecida por vitaminas, sais, aminoácidos etc. É vida, mas não vida própria.” Holf finaliza: “A conclusão deste raciocínio é que a vida biológica é condição necessária, mas não suficiente para a vida humana” [grifo do autor].

Necessário, ainda, consignar o posicionamento de Sanches:

A doutrina ao que parece, procura legitimar essa espécie de abortamento (feto anencefálico), valendo-se de um contorcionismo jurídico alcançado pela interpretação sistemática com a lei 9.434/97, que determina o momento da morte com a cessação da atividade encefálica. Ora, se a cessação da atividade cerebral é caso de morte (não vida), feto anencefálico não tem vida intra-uterina logo, não morre juridicamente (não se mata aquilo que jamais viveu para o direito). A operação terapêutica caminha, desse modo, para a atipicidade. (apud VIEIRA SEGUNDO, 2009).

Vieira Segundo discorda do termo “contorcionismo” utilizado por Sanches (2009, não paginado):

Cumpre esclarecer que não se trata de um contorcionismo jurídico como ensina o ilustre penalista, pois asseverar que as manobras abortivas recaem sobre objeto sem vida para o nosso Ordenamento Jurídico, conduzindo assim a configuração de crime impossível (que exclui a tipicidade da conduta), decorre de uma análise técnica e uma interpretação sistemática do nosso Ordenamento, visto que se para o Direito a morte ocorre com a cessação da atividade encefálica e o feto anencéfalo carece desta, conclui-se que é impossível fulminar a existência daquilo que para nosso Ordenamento Jurídico jamais esteve vivo.

A interrupção de gestação de feto anencéfalo está contida dentro do gênero do aborto eugênico, o qual não encontra abrigo na legislação brasileira e, portanto, configura-se crime a prática de aborto nesta modalidade, como adverte Bitencourt (2009, p. 351): “O CP não legitima o chamado aborto eugenésico, mesmo que seja provável que a criança nascerá com deformidade ou enfermidade incurável”.

“O aborto eugenésico é aquele realizado para impedir que criança nasça com deformidade ou enfermidade incurável.” (CAPEZ, 2008, p. 137). O que se quer evitar neste tipo de aborto é que o feto nasça acometido de anomalias psíquicas ou físicas, ou que haja uma “purificação” racial.

No entanto, excepcionalmente, mediante prova irrefutável de que o feto não dispõe de qualquer condição de sobrevida, consubstanciada em laudos, subscritos por juntas médicas, o Superior Tribunal de Justiça tem autorizado a sua prática:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. INDEFERIMENTO DE LIMINAR NO WRIT ORIGINÁRIO. MANIFESTA ILEGALIDADE. CABIMENTO DE HABEAS

CORPUS PERANTE O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.

INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ. PATOLOGIA CONSIDERADA INCOMPATÍVEL COM A VIDA EXTRA-UTERINA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. GESTAÇÃO NO TERMO FINAL PARA A REALIZAÇÃO DO PARTO. ORDEM PREJUDICADA.

[...]

3. Não há como desconsiderar a preocupação do legislador ordinário com a proteção e preservação da vida e da saúde psicológica da mulher ao tratar do aborto no Código Penal, mesmo que em detrimento da vida de um feto saudável, potencialmente capaz de transformar-se numa pessoa (CP, art. 128, incs. I e II), o que impõe reflexões com os olhos voltados para a Constituição Federal, em especial ao princípio da dignidade da pessoa humana.

4. Havendo diagnóstico médico definitivo atestando a inviabilidade de vida após o período normal de gestação, a indução antecipada do parto não tipifica o crime de aborto, uma vez que a morte do feto é inevitável, em decorrência da própria patologia.

[...]

(HC 56.572/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA. Quinta turma, julgado em 25.04.2006, DJ 15.05.2006 p. 273)

De todo o exposto, em uma análise dogmática sistemática, percebe-se uma contradição entre as leis. Uma, Lei 9.434/97, afirma que se uma pessoa tem cessadas suas atividades cerebrais considera-se morta; outra Lei Penal ignora a definição e os critérios de morte cerebral estabelecido na Lei dos Transplantes e incrimina a interrupção de gestação de feto anencefálico (BRASIL, 1997, 1940). Neste sentido contribui Penna (2005, não paginado) ao discorrer:

[...] o conceito de morte cerebral pode ser adotado para os casos de fetos com anencefalia e que entender como crime a interrupção desse tipo de gravidez implica a não-aceitação desse conceito também nos casos de doação de órgãos.” [grifo nosso].

O Código Penal não estabelece o que é morte, nem seus critérios de definição e muito menos o momento exato da ocorrência, portanto havia uma lacuna. Por ser uma norma penal em branco coube a outra lei definir – Lei no 9.434, de 04/02/1997, auxiliada pela Resolução/CFM nº 1.480/97.

Capez (2008, p. 30) conceitua norma penal em branco:

São normas nas quais o preceito secundário (cominação da pena) está completo, permanecendo indeterminado o seu conteúdo. Trata-se, portanto, de uma norma cuja descrição da conduta está incompleta, necessitando de complementação por outra disposição legal ou regulamentar.

[...]

Complemento provém da mesma fonte formal, ou seja, a lei é completada por outra lei.

É evidente que não pode haver essa contraposição. Uma delas há de prevalecer sobre a outra, já que no ordenamento não pode haver normas opostas tratando do mesmo conteúdo.

Afirma Gomes (2006, não paginado) acerca da contradição entre normas:

[...] o que está permitido ou fomentado ou determinado por uma norma não pode estar proibido por outra. O juízo de tipicidade deve ser concretizado de acordo com o sistema normativo considerado em sua globalidade. Se uma norma permite, fomenta ou determina uma conduta, o que está permitido, fomentado ou determinado por uma norma não pode estar proibido por outra.

Esta consideração tem fundamental importância quando se pensa na tipificação do crime de aborto, pois somente uma norma poderá subsistir. Seja a que considera o feto morto, pela ausência de atividades cerebrais ou a que considera o feto anencéfalo vivo.

Enfatiza Zafaroni e Pierangeli (apud GRECO, 2010) “não é possível que no ordenamento jurídico, que se entende como perfeito, uma norma proíba aquilo que outra imponha ou fomente.” Zafaroni e Pierangeli na sua afirmação refere-se a Tipicidade Conglobante a qual é conceituada por Capez (2008, p. 197-198):

Tipicidade conglobante: de acordo com essa teoria, o fato típico pressupõe que a conduta esteja proibida pelo ordenamento jurídico como um todo, globalmente considerado. [...] O direito é um só e deve ser considerado como um todo, um bloco monolítico, não importando sua esfera (a ordem é conglobante). Seria contraditório permitir a prática de uma conduta por considerá-la lícita, ao mesmo tempo, descrevê-la em um tipo como crime.

Há assim evidente necessidade de se considerar apenas como delito que a conduta seja contrária ao ordenamento jurídico em geral (conglobado) e não apenas ao ordenamento penal.

Portanto, estas considerações têm reflexos imediatos quando se pensa na interrupção de gestação de feto anencéfalo, visto que considerá-lo vivo caracteriza o crime de aborto tipificado no artigo 124 do Código Penal (BRASIL, 1940).

De outra forma, prevalecendo à definição de morte estabelecido na Lei de Transplantes os efeitos serão outros, já que estar-se-i-a falando em crime impossível

pela absoluta impropriedade do objeto.

O crime impossível veio previsto no artigo 17 do Código Penal (BRASIL, 1940), com a seguinte redação: “Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar- se o crime.”. Greco (2010, p. 275) acrescenta: “[...] o Crime Impossível também é conhecido como tentativa inidônea, inadequada ou quase crime.”

Conforme ensinamentos dos professores Capez e Greco (2008; 2010) o Crime Impossível apresenta as seguintes características:

HIPÓTESES CONCEITO EXEMPLOS

Emprego de meio absolutamente

inidôneo

[...] considera o crime impossível quando o agente, depois de dar início aos atos de execução tendentes a consumar a infração penal, só não alcança o resultado por ele inicialmente pretendido

porque utilizou meio

absolutamente ineficaz

[...] ingerir medicamentos que não têm qualquer potencialidade para causar a morte do feto, realizar rezas, práticas supersticiosas, [...].

Emprego de meio relativamente

inidôneo

[...] dá-se a inidoneidade relativa do meio quando este, embora normalmente capaz de

produzir o evento

intencionado, falha no caso

concreto, por uma

circunstância acidental na sua utilização. O meio utilizado pelo agente pode vir ou não a causar o resultado.

[...] ingerir substância química em quantidade inidônea à provocação do aborto. Nessa hipótese, a substância química é apta a produzir o evento letal, mas, por uma circunstância acidental no caso concreto (ínfima quantidade), não foi possível concretizar o intento criminoso. Responderá o agente pela forma tentada do crime de aborto, afastando-se, então, a figura do crime impossível.

Absoluta impropriedade do

objeto

Objeto, como já conceituamos, é a pessoa ou a coisa sobre a qual recai a conduta do agente.

Se quando da manobra abortiva, o feto já estava morto, sem que o

agente tivesse qualquer

conhecimento, haverá crime impossível pela absoluta impropriedade do objeto. Também haverá crime impossível na hipótese em que o agente realiza manobras abortivas supondo erroneamente a existência de gravidez.

Figura 1: Hipóteses de Crime Impossível. Fonte: Capez; Greco (2008, 2010).

Na correlação do aborto com o crime impossível Capez (2008, p. 124) afirma que “exige-se a prova de que o feto se encontrava vivo quando do emprego dos meios ou manobras abortivas, do contrário poderá estar caracterizado o crime impossível pela absoluta impropriedade do objeto (CP, art. 17 – tentativa inidônea).”.

Complementa o autor:

Aliás, no que toca ao abortamento do feto anencéfalo ou anencefálico, entendemos que não existe crime, ante a inexistência de bem jurídico. O encéfalo é a parte do sistema nervoso central que abrange o cérebro, de modo que sua ausência implica inexistência de atividade cerebral, sem a qual não se pode falar em vida. A Lei n. 9.434, de 4-2-1997, em seu art. 3º, permite a retirada post mortem de tecidos e órgãos do corpo humano depois de diagnosticada a morte encefálica. Ora, isso significa que, sem atividade encefálica, não há vida, razão pela qual não se pode falar em crime de aborto, que é a supressão da vida intra-uterina. Fato atípico, portanto (CAPEZ, 2008, p. 138 [grifo nosso])

Fernandes Penna (2005, não paginado) utilizando de seu conhecimento médico entra na discussão e assevera:

Defendemos a tese de que o feto anencefálico é um feto morto, segundo o conceito de morte neurológica. Esse feto, mesmo que levado a termo, não terá nem um segundo de consciência, não poderá sentir dor, ver, ouvir – em resumo, não poderá experimentar sensações. É, portanto, um feto morto porque não há potencialidade de se tornar uma pessoa, não há possibilidade de consciência devido à ausência de córtex cerebral.

Uma vez diagnosticado a morte encefálica, o feto anencéfalo, é declarado legalmente morto. Esta é a hora que deve constar no atestado de óbito.

Bitencourt (2009, p. 345) complementa: “O crime de aborto pressupõe gravidez em curso, e é indispensável que o feto esteja vivo. A morte do feto tem de ser resultado direto das manobras abortivas.”. “Considera-se aborto a interrupção da gravidez, com a conseqüente destruição do produto da concepção. Consiste na eliminação da vida intrauterina.” (CAPEZ, p. 119)

Vieira Segundo (2009, não paginado) faz algumas indagações sobre a aplicabilidade do Instituto do Crime impossível quando aduz:

Crime impossível por absoluta impropriedade do objeto? As manobras abortivas recaem sobre objeto sem vida para o Direito? Sim, estamos neste caso diante de um inequívoco crime impossível por absoluta impropriedade do objeto, pois as manobras abortivas recaem sobre um corpo sem vida para o nosso Ordenamento Jurídico, porquanto o art. 3º da Lei 9.434/97 dispõe que a morte ocorre com a cessação da atividade encefálica, logo, como o feto

anencéfalo carece desta atividade, trata-se de um ser que para o Direito jamais viveu, demonstrando assim, a impropriedade absoluta do objeto que conduz a configuração do crime impossível

[...]

A princípio nossa posição pode chocar alguns (apesar de que para nós, não há qualquer choque), porém, o que choca na verdade, é a tentativa incansável de muitos em prolongar a discussão, trazendo para a questão dilemas éticos, religiosos ou morais, que em nada ajudam, aliás, atrapalham, pois, a gestante não encontra resposta definitiva para a sua tormentosa e cruel situação.

Alvarenga (2004, não paginado) não concorda com o critério de morte proposto pela medicina e adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro, porém, mesmo assim, destaca sua importância e seus efeitos:

11. Penso que o verdadeiro conceito de morte é o de morte clínica, quando, então, se dá a parada irrecuperável do coração e o corpo se torna verdadeiramente um cadáver (carne dada aos vermes). Entrementes, a adoção do conceito de morte encefálica justifica-se pelas necessidades atuais da medicina. Todavia posso prever certos questionamentos que daí poderão advir. Eis alguns:

[...]

15. Dogmaticamente, a razão da impunibilidade do aborto de feto anencefálico – que é um morto cerebral, prende-se à ausência de tipicidade, fundada em três causas: falta de objeto jurídico, falta de sujeito passivo próprio e falta de objeto material. O fato não é mais do que um quase-crime, na modalidade de crime impossível.

Portanto, para os defensores da possibilidade de se realizar a interrupção de gestação de feto anencéfalo, visto que considerado o feto morto, não há norma incriminadora que impeça a gestante de extrair o feto morto de seu corpo. Porém, para quem não o considera morto está totalmente afastada a tese do Crime Impossível.

Destarte, que a nomenclatura “morto” foi utilizada no sentido da não existência de vida e não como seu desfecho.

Por fim, ao se analisar a Teoria da Tipicidade Conglobante surge a possibilidade de não considerar a interrupção da gestação um crime, visto que a análise sistemática do ordenamento jurídico possibilita a interpretação "in bonam partem" favorável à mulher gestante que desejar a realização da interrupção da gestação.

De outra forma, se considerar o feto como não sendo pessoa, vez que, ausente a expectativa de um dia vir a ser pessoa, propriamente dita, poderia em tese, considerar ser um crime impossível a interrupção de sua gestação, pois neste

caso o feto seria considerado um ser vivente, porém a vida seria mera vida biológica sem qualquer possibilidade de desenvolvimento humano.

3 A ANENCEFALIA NOS TRIBUNAIS

O presente capítulo não se presta ao aprofundamento das temáticas penais suscitadas nos tribunais. A proposta é demonstrar como o tema, está sendo tratado nos tribunais, se há consenso ou não nas decisões proferidas e em que fase da discussão encontra-se a interrupção de gestação de feto anencéfalo.