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O Direito da gestante de interromper a gestação de feto anencéfalo

2.4 CONSIDERAÇÕES MÉDICAS ACERCA DOS MALES CAUSADOS A

2.4.1 O Direito da gestante de interromper a gestação de feto anencéfalo

Uma vez confirmado a gravidez e diagnosticado a má-formação do feto, incompatível com a vida – anencefalia - vem à tona a indagação sobre quem tem legitimidade para decidir sobre a continuação ou interrupção da gestação, se o médico, o Estado (Poder Judiciário) ou a própria gestante.

O médico somente pode tomar a decisão de interromper a gestação de feto anencéfalo se a gestante estiver correndo perigo de vida e inexistir outro meio para

salvá-la. Neste caso estará amparado na excludente de ilicitude estatuída no art. 128, I, do Código Penal (BRASIL, 1940). O perigo neste caso representa o próprio estado de necessidade. Mas, e quando esse perigo de vida não puder ser vislumbrado e residir apenas no dano à saúde da gestante? É nesse ponto que surge o dilema, pois foge a regra autorizadora do art. 128, I, do Código Penal, o qual prescreve “se não há outro meio de salvar a vida da gestante;”.

O Ordenamento jurídico brasileiro é silente no que se refere especificamente à anencefalia e por isso várias são as opiniões acerca de sua intervenção estatal. Marques (2011, p. 34), que é contrária a autorização da interrupção da gestação, invoca o princípio da proteção constitucional da vida para concluir:

Portanto, sendo o feto anencéfalo um ser vivo, não seria lícito ao Direito Brasileiro – através de decisões judiciais, julgamentos vinculativos do Supremo, ou mesmo através de projetos de lei – autorizar o abortamento em caso de anencefalia.

Gomes (apud COUTINHO 2005, não paginado) questiona a corrente que defende a vida do anencéfalo:

Os que sustentam (ainda que com muita boa-fé) o respeito à vida do feto devem atentar para o seguinte: em jogo está a vida ou a qualidade de vida de todas as pessoas envolvidas com o feto mal formado. E até em caso de estupro, em que o feto está bem formado, nosso Direito autoriza o aborto, nada justifica que idêntica regra não seja estendida para o aborto anencefálico.

O Coutinho (2004, não paginado) em reforço, cita também a opinião do advogado Luiz Roberto Barroso:

Obrigar uma mulher a conservar em seu ventre, por longos meses, o filho que não poderá ter, impõe a ela sofrimento inútil e cruel. Adiar o parto, não será uma celebração de vida, mas um ritual de morte, viola a integridade física e psicológica da gestante, em situação análoga à da tortura.

A FEBRASCO em carta aberta (2011) afirmou que “O Estado não tem nenhuma justificativa para defender interesses fetais nos casos de anencefalia, ou seja, nos casos de morte cerebral fetal, impondo, ademais, risco adicional desnecessário e evitável à saúde da mulher”. No mesmo sentido o Ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello:

[...] para qualquer pessoa nessa situação, ficar a mercê da permissão do Estado para livrar-se de semelhante sofrimento resulta, para dizer o mínimo, em clara violência às vertentes da dignidade humana – física, moral e psicológica" (...). Não se pode "aquiescer à ignomínia de condenar-se a gestante a suportar meses a fio de desespero e impotência, em frontal desrespeito à liberdade e à autonomia da vontade, direitos básicos, imprescindíveis, consagrados em toda sociedade que se afirme democrática" (MELLO apud FRANCO, 2004, não paginado).

Em relação à gestante, pende o argumento de que ela é quem tem legitimidade para decidir o futuro da gestação de feto anencéfalo, pois seja qual for sua decisão, interromper ou não, é ela quem suportará as conseqüências físicas e psicológicas. Portanto, a ela cabe a autonomia reprodutiva e a manifestação da vontade. Diniz (2004, p. 42), nesse diapasão, cita a posição da bioética atual sobre o tema:

O que se pretende garantir é a autonomia das pessoas para deliberar sobre suas próprias vidas e, no caso do aborto, a garantia de que as mulheres que consideram o aborto amoral devam ter condições sociais e sanitárias de realizá-lo se assim o desejarem, ao passo que as mulheres que consideram o aborto imoral devam ser livres para jamais o realizarem. O argumento fundamental é, então, o da defesa e promoção de uma sociedade suficientemente plural que proporcione as condições sociais, sanitárias e políticas para que diferentes mulheres expressem suas crenças frente ao aborto.

Em 2008 foi publicada uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE Inteligência), a pedido das organizações não- governamentais Católicas, pelo Direito de Decidir e Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero e teve como contexto os debates e audiências públicas realizados pelo Supremo Tribunal Federal sobre a anencefalia.

A pesquisa teve como público alvo as mulheres católicas, já que nas audiências públicas as lideranças religiosas defendiam a vida do feto, com exceção da Igreja Universal do Reino de Deus, que fez sua intervenção no sentido de garantir às mulheres o direito de escolha. Os demais grupos religiosos insistiram na manutenção da gestação, ainda que a saúde física e mental da mulher não sejam contempladas.

Segundo o IBOPE (2008, não paginado) a pesquisa revelou que:

O direito de escolha

• 70,5% da população geral e 72,2% dos católicos concordam que a mulher grávida de um feto anencéfalo pode escolher se interrompe ou

não a gestação em casos de anencefalia.

• 77% dos entrevistados concordam que é obrigação do Estado atender as mulheres.

• Dos entrevistados com escolaridade entre nível médio completo e superior completo, 75% concordam que a mulher grávida de um feto anencéfalo deve ter o direito de escolher sobre a interrupção da gestação nesses casos.

A Tortura

• 71% dos entrevistados consideram que obrigar uma mulher a manter a gestação de um feto sem cérebro até o final, contra sua vontade, é tortura. Entre os católicos, o número sobe para 72,5%.

O dever do Estado

• 77,6% dos entrevistados afirmam que os hospitais públicos têm o dever de atender a mulher que optar por interromper a gravidez nesses casos. O número sobre para 78,7% entre os católicos.

O IBOPE concluiu ao final de sua pesquisa, que: “A pesquisa mostra que a maioria da população brasileira, inclusive a maioria dos católicos, considera que a mulher deve ter garantido o direito de escolha nos casos de interrupção da gestação de feto sem cérebro.” E prossegue:

Ao contrário do que foi dito pelos representantes da Igreja Católica nas audiências públicas, a vasta maioria dos católicos da sociedade brasileira considera que o Estado não deve impor sofrimento às mulheres e que estas devem ser amparadas em suas decisões.

“A máxima “as mulheres devem ser livres para decidir sobre sua reprodução” é amplamente aceita nos círculos bioéticos internacionais.” (DINIZ, 2004, p. 41).

Barroso (2009, p. 27) lembra que o diagnóstico da certeza de morte ocorre ainda no útero ou pouco após o nascimento em 100% dos casos. “Para essa mulher, o parto não será um momento de celebração da vida, mas um ritual de morte, com obrigação de registrar o óbito e providenciar o enterro”.

Fica evidente que a autonomia reprodutiva da mulher deve ser considerada, visto que ela sofrerá independentemente da sua decisão. À mulher cabe decidir.