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Argumentos favoráveis a interrupção de gestação de fetos anencéfalos

3.1 A ANENCEFALIA NOS TRIBUNAIS ESTADUAIS

3.1.2 Argumentos favoráveis a interrupção de gestação de fetos anencéfalos

É crescente a corrente que posiciona-se no sentido de permitir o aborto do feto anencefálico, visto sua inviabilidade para a vida. Partem do fundamento que a vida a ser protegida pelo ordenamento jurídico é aquela expectante, incluídas todas as fases de desenvolvimento, que vai do nascimento até a morte. Este é o principal argumento utilizado.

Mirabete e Fabbrini (2006, p. 70) trazem relevante notícia sobre o tema:

Há, entretanto, uma tendência à descriminalização do aborto eugenésico em hipóteses específicas. Com o válido argumento de que não se deve impedir o aborto em caso de grave anomalia do feto, que o incompatibiliza com a vida, de modo definitivo, já se têm concedido centenas de alvarás judiciais para abortos em casos de anencefalia (ausência de cérebro ou má formação do cérebro) (RT 756/652, JTJ 232/391, 239/375, JCAT 83-84/699,

RDJ 22/264) [...]. A inviabilidade da vida extra-uterina do feto e os danos

psicológicos à gestante justificam tal posição, apoiando-se alguns na tese da existência da possibilidade de aborto terapêutico e outros no reconhecimento da excludente de culpabilidade de inexigibilidade de conduta diversa.

Outros autores, como exemplo, Vieira Segundo (2009) defendem a tese do crime impossível pela absoluta impropriedade do objeto, baseando-se na Lei 9.434/97 (BRASIL, 1997), a qual considera morto quem tiver cessado suas atividades cerebrais. Em verdade, é feito uma analogia: se cessação das atividades cerebrais considera-se morto, quem não tem cérebro nunca foi vivo e, portanto, não haveria bem jurídico a ser protegido.

Há na jurisprudência outra tese que vem sendo decidida de modo a conceder a autorização para a interrupção da gestação: é uma interpretação extensiva do artigo 128, inciso I, do CP (BRASIL, 1940), de modo a incluir o

problema do risco à saúde física e psíquica da gestante. É a chamada “antecipação terapêutica do parto”. A exemplo do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais:

APELAÇÃO CÍVEL. ALVARÁ JUDICIAL. ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO. FETO ANENCEFÁLICO. EXAMES MÉDICOS COMPROBATÓRIOS. VIABILIDADE DO PLEITO.

Não se pode lançar mão dos avanços médicos, mormente, em casos de anencefalia cabalmente comprovada, cujo grau de certeza é absoluto acerca da impossibilidade de continuidade de vida extra- uterina do feto anencefálico por tempo razoável. Para haver a mais límpida e verdadeira promoção da justiça, é de fundamental importância realizar a adaptação do ordenamento jurídico às técnicas medicinais advindas com a evolução do tempo. Vale dizer, o direito não é algo estático, inerte, mas sim uma ciência evolutiva, a qual deve se adequar à realidade. Seja pela inexigibilidade de conduta diversa, causa supra legal de exclusão da culpabilidade, seja pela própria interpretação da lei penal, a interrupção terapêutica do parto revela-se possível à luz do vetusto Código Penal de 1940. Considerando a previsão expressa neste diploma legal para a preservação de outros bens jurídicos em detrimento do direito à vida, não se pode compreender por qual razão se deve inviabilizar a interrupção do parto no caso do feto anencefálico, se, da mesma maneira, há risco para a vida da gestante, com patente violação da sua integridade física e psíquica, e, ainda, inexiste possibilidade de vida extra-uterina. Dentre os consectários naturais do princípio da dignidade da pessoa humana deflui o respeito à integridade física e psíquica das pessoas. Evidente que configura clara afronta a tal princípio submeter a gestante a sofrimento grave e desnecessário de levar em seu ventre um filho, que não poderá sobreviver. Não bastasse a gravíssima repercussão de ordem psicológica, a gestação de feto anencefálico, conforme atestam estudos científicos, gera também danos à integridade física, colocando em risco a própria vida da gestante. Ademais, com o advento da Lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, adotou-se o critério de morte encefálica como definidor da morte. Nessa linha, no caso de anencefalia, dada a ausência de parte vital do cérebro e de qualquer atividade encefálica, é impossível se cogitar em vida, na medida em que o seu contraponto, a morte, está configurado. (TJMG: 100790734317970011 MG 1.0079.07.343179- 7/001(1))

Na mesma linha prescreve o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina:

HABEAS CORPUS. DECISÃO CONCESSIVA. REEXAME NECESSÁRIO. REMESSA DE OFÍCIO (ARTIGO 571, INCISO I, DO CP). DISPOSITIVO NÃO REVOGADO PELO ARTIGO 129, INCISO I DA CF/88. CONHECIMENTO. ANENCEFALIA. HABEAS CORPUS PREVENTIVO QUE DEFERE A INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ APÓS CONSTATAÇÃO DA MÁ-FORMAÇÃO CEREBRAL ATESTADA POR MÉDICA GINECOLOGISTA-OBSTETRA E PARECER MINISTERIAL FAVORÁVEL. DECISÃO CONCESSIVA CONFIRMADA EIS QUE "AS CONSEQUÊNCIAS DOS ATOS PRATICADOS SE RESOLVEM UNICAMENTE CONTRA A MULHER"

(HUNGRIA, COMENTÁRIOS AO CP, VOL. 5, PÁG. 312). RECOMENDAÇÃO QUE A ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DA GESTAÇÃO SEJA REALIZADA POR ESPECIALISTA NA ÁREA DA MEDICINA (GINECOLOGISTA OU OBSTETRA). WRIT CONHECIDO E CONFIRMADO EM REEXAME NECESSÁRIO. (TJSC - Recurso de Habeas Corpus: HC 836066 SC 2010.083606-6)

A antecipação terapêutica do parto encontra, assim como as demais teses, resistência, como se constata na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

HABEAS CORPUS. ANENCEFALIA. ANTECIPAÇÃO DE PARTO. ABORTO.

Pedido indeferido em primeiro grau. Admissão do 'habeas corpus' em função de precedente do STJ. Ausência de previsão legal. Risco de vida para a gestante não demonstrado. Eventual abalo psicológico não se constitui em excludente da criminalidade. ORDEM DENEGADA. POR MAIORIA. (Habeas Corpus Nº 70020596730, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ivan Leomar Bruxel, Julgado em 25/07/2007) (TJRS - Habeas Corpus: HC 70020596730 RS)

A justificativa jurídica utilizada no dispositivo acima, artigo 128, inciso I, é de que ele deve ser interpretado analogicamente “in bonam partem”. Esta é a linha das jurisprudências concessivas do pedido de interrupção da gestação.

Desse modo, não estar-se-i-a criando um direito novo e nem tão pouco se eximindo de uma figura típica, mas apenas utilizando-se de uma excludente de ilicitude extensivamente.

Assim, como todos os tópicos deste capítulo, não há unanimidade nas teses utilizadas. Por esta razão Nucci (2008, p. 621) comenta:

A polêmica certamente existe. Preferimos acreditar que a lei penal, ao punir o aborto, busca proteger a vida humana, porém a vida útil e viável, não exigindo que a mãe carregue em seu ventre por nove meses um feto que logo ao nascer, dure apenas algumas horas e finde sua existência efêmera, por total impossibilidade de sobrevivência na medida que não possui a abóbada craniana, algo vital para a continuidade da vida fora do útero. O anencéfalo não é protegido pelo direito penal, que se volta à viabilidade do feto e não simplesmente à sua existência física. [grifo do autor].

Nucci (2008), quando discorre sobre a possibilidade do aborto eugênico, se posiciona contra, pois, segundo ele, não pode haver seleção onde há vida, ainda mais que isso ocasionaria abusos, com fundamentos dos mais espúrios, tais como já

utilizados em alvarás judiciais em que se fundamentou em abalos psicológicos da mãe. Nesse caso, não pode ser invocado o abalo psicológico para dar suporte à interrupção da gestação. Porém, na mesma sequência, quando trata de inviabilidade do feto anencéfalo, Nucci se mostra totalmente a favor:

Entretanto, se os médicos atestarem que o feto é verdadeiramente inviável, vale dizer, é anencéfalo (falta-lhe a calota craniana), por exemplo, não se cuida de “vida” própria, mas de um ser que sobrevive à custa do organismo materno, uma vez que a própria lei considera cessada a vida tão logo ocorra a morte encefálica. Assim, a ausência de viabilidade cerebral pode ser motivo mais que suficiente para a realização do aborto, que não é baseado, porém, em características monstruosas do ser em gestação, e sim na sua completa inviabilidade como pessoa, com vida autônoma, fora do útero materno, [...]. (NUCCI, 2008, p. 623).

No mesmo sentido Moraes (2007. p. 82):

Entendemos em relação ao aborto que, além das hipóteses já permitidas pela lei penal, na impossibilidade de o feto nascer com vida, por exemplo, em casos de acrania (ausência de cérebro) ou, ainda, comprovada a total inviabilidade de vida extra-uterina, por rigorosa perícia médica, nada justificaria sua penalização, uma vez que o direito penal não estaria a serviço da finalidade constitucional de proteção à vida, mas sim estaria ferindo direitos fundamentais da mulher, igualmente protegidos: liberdade e dignidade humanas. Dessa forma, a penalização nesses casos seria flagrante inconstitucionalidade.

Barroso (2009, p. 28) quando discorre sobre a tese defendida na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF, nº 54/2004, em que pede ao STF para deixar de considerar crime a antecipação do parto em caso de fetos anencéfalos, cita os segmentos da sociedade que apóia a tese defendida – antecipação terapêutica do parto:

A tese defendida na ação proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) tem o apoio majoritário da sociedade (próximo a 70%, de acordo com o Datafolha) e de entidades científicas e profissionais, aí incluídos o Conselho Federal de Medicina, a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia e a Ordem dos Advogados do Brasil, para citar apenas alguns. Também os órgãos governamentais componentes são favoráveis, como o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, do Ministério da Justiça, a área técnica saúde da mulher, do Ministério da Saúde, e a Secretaria Nacional de Políticas da Mulher, subordinada à Presidência da República. Todos movidos por argumentos racionais, científicos, jurídicos e a crença de que qualquer sofrimento inútil e evitável viola a dignidade da pessoa humana.

Coutinho (2004, não paginado) reforça o entendimento de Barroso:

Considerando que não podemos deixar de avaliar o assunto sob o prisma da globalização, impende registrar que praticamente todos os países desenvolvidos já autorizam o aborto por anencefalia (Itália, Espanha, França, Suíça, Bélgica, Áustria, entre outros), contudo, na contramão deste posicionamento encontramos as nações em desenvolvimento como Brasil, Peru, Paraguai, Venezuela, Argentina, Chile, Equador.

Conforme a ótica da corrente favorável à interrupção da gestação de fetos anencéfalos, percebe-se cada vez mais uma pluralidade de argumentos para justificar a defesa e promoção de uma sociedade que proporcione as condições sociais, sanitárias e políticas para que diferentes mulheres expressem suas crenças frente ao aborto.

Mirabete e Fabbrini (2008b, p. 1002-1003) trazem algumas jurisprudências acerca da autorização de aborto por anencefalia do feto e o argumento utilizado. A primeira é do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

O feto anencefálico, rigorosamente, não se inclui entre os abortos eugênicos, porque a ausência de encéfalo é incompatível com a vida pós- parto extra-uterina. Embora não incluída a antecipação de parto de fetos anencéfalos nos dispositivos legais vigentes (artigo 128, I, II CP) que excluem a ilicitude, o embasamento pela possibilidade esteia-se em causa supra-legal autônoma de exclusão da culpabilidade por inexigível outra conduta. O "aborto eugênico" decorre de anomalia comprometedora da higidez mental e física do feto que tem possibilidade de vida pós-parto, embora sem qualidade, o que não é o caso presente, atestada a impossibilidade de sobrevivência sem o fluido do corpo materno.

Reunidos todos os elementos probatórios fornecidos pela ciência médica, tendo em mente que a norma penal vigente protege a "vida" e não a "falsa vida", legitimada a pretensão da mulher de antecipar o parto de feto com tal anomalia que o torna incompatível com a vida. O direito não pode exigir heroísmo das pessoas, muito menos quando ciente de que a vida do anencéfalo é impossível fora do útero materno. Não há justificativa para prolongar a gestação e o sofrimento físico e psíquico da mãe que tem garantido o direito à dignidade. Não há confronto no caso concreto com o direito à vida porque a morte é certa e o feto só sobrevive às custas do organismo materno.

Dentro desta ótica, presente causa de exclusão da culpabilidade (genérica) de natureza supra-legal que dispensa a lei expressa vigente cabe ao judiciário autorizar o procedimento. Provido. (RJTJERGS 253/79)

A segunda jurisprudência é do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina:

Aborto - Autorização judicial - Anencefalia fetal - Comprovada inviabilização da vida extra-uterina - Pedido instruído com laudo médico irrefutável da anomalia e suas conseqüências e com favorável parecer psicológico do casal - Consentimento expresso do pai - Evidência de risco à saúde, especialmente mental da gestante - Interpretação extensiva da excludente de punibilidade prevista no inciso I do Art. 128 do CP - Aplicação dos princípios da analogia admitidos do Art. 3° do CPP - Autorização concedida - Apelo provido.

Diante da solicitação de autorização para realização de aborto, instruída com laudo médico e psicológico favoráveis, deliberada com plena conscientização da gestante e de seu companheiro , e evidenciado o risco à saúde desta , mormente a psicológica, resultante do drama emocional a que estará submetida caso leve a termo a gestação, pois comprovado cientificamente que o feto é portador de anencefalia (ausência de cérebro) e de outras anomalias incompatíveis com a sobrevida extra-uterina, outra solução não resta senão autorizar a requerente a interromper a gravidez (JCAT 83-84.699 e RT 756/652).

A terceira vem do Tribunal do Estado de São Paulo: “Aborto – Autorização – Feto portador de anencefalia – Deformidade no crânio, com ausência de cérebro e olhos – Impossibilidade de sobrevida – Segurança concedida para a interrupção da gravidez (JTJ 232/391).”.

A quarta jurisprudência é oriunda do Tribunal de Justiça do Estado do Amapá:

Direito Penal - Jurisdição voluntária - Alvará de autorização judicial para realização de aborto - Feto portador de anencefálico - Estado depressivo da gestante atestado por laudo psicológico circunstanciado - Consciência da gestante e de seu marido das possíveis conseqüências de um aborto - interpretação da norma jurídica em consonância com art. 5° (Lei de Introdução ao Código Civil). Compõe-se a interpretação das normas vigentes segundo os fins a que se destinam e á luz das exigências do bem comum, para o fim de reformar a sentença fustigada e deferir o alvará autorizando a interrupção da gravidez (RDJ 22/264).

Por derradeiro, traz a decisão em sede liminar do Superior Tribunal de Justiça, concedida pelo Ministro Presidente Edson Vidigal:

Nesse contexto, certo é que a gestação infrutífera ora impugnada trará riscos à própria saúde da gestante, que poderá sofrer por toda sua vida dos danos, senão os físicos, dos prejuízos psicológicos advindos do fato de carregar nove meses criança em seu ventre fadada ao fracasso.

Por saúde, a própria Organização Mundial de Saúde pontifica que há de se entender o bem estar completo da pessoa humana, não só físico, mas também psicológico. E aqui o gravame é duplo.

de todas as pessoas, assim entendidas todas aquelas já concebidas, na forma da reserva civil de seus direitos. É que, no caso dos autos, essa dita vida não se realiza, ainda que tomados todos os cuidados para preservação da mesma, eis que o laudo é categórico ao atestar a ausência de "sobrevida neonatal (pós-parto) destes produtos gestacionais, exceto por horas ou excepcionalmente dias, pela ausência de integridade dos tecidos cerebrais".

Não autorizar a conduta médica seria negar a própria aplicação da lei penal, eis que do ponto de vista criminal a realização do tipo previsto no art. 125 do Código Repressor requer dolo específico para interrupção da vida injustificada ou não-naturais, como bem acentua Alberto Silva Franco, em sua obra "Aborto por indicação Eugênica", Revista dos Tribunais, 1992, p. 90 :

"[...] o preenchimento da área de significado desse dado compositivo da figura típica, deve ser buscado em campo extra-penal, na medicina, ou mais especificamente na biologia, na parte em que cuida do processo de formação da vida e das causas de sua interrupção."

Portanto, plenamente justificada a interrupção da gestação uma vez que coerente com os preceitos de proteção à vida e à saúde, garantidas pela própria Carta Maior. (HC 51. 982-SP- DJU 8-2-2006, p. 207)

Percebe-se que dentro dos argumentos utilizados há uma diversificação na fundamentação do pedido da autorização da interrupção da gestação e, também, nos argumentos das decisões favoráveis. Para esta corrente, tanto na ótica de quem pede como na de quem concede, o foco é o mesmo, ou seja, havendo por parte da gestante o desejo de interromper a gravidez, deve ela ser atendida, já que ela é o bem maior a ser preservado.

A título de curiosidade, Gollop (apud BENUTE, 2005) noticia que em 1989, na cidade de Ariquemes, Rondônia, foi deferido o primeiro alvará judicial permitindo a interrupção de uma gravidez em caso de anencefalia. O segundo caso, que se tem registro, foi na comarca de Rio Verde no Mato Grosso do Sul.