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2.ª PARTE FATORES CONTEXTUAIS

4.4.2. A aplicabilidade da CIF

A CIF integra o conjunto das classificações internacionais desenvolvidas pela OMS e apresenta uma estrutura multifuncional e transversal (Arthanat et al., 2004, Bickenbach et al., 2003, OMS, 2004, Kostanjsek, 2011, Üstün et al., 2003). Assim, além de ser utilizada no âmbito da saúde, pode ainda ser aplicada, simultaneamente, num leque diversificado de setores, como “seguros, segurança social, trabalho, educação, economia, política social, desenvolvimento de políticas e de legislação em geral e alterações ambientais” (OMS, 2004, p. 10), como se pode observar na Figura 13.

A CIF apresenta uma estrutura concetual que pode ser aplicada na área dos cuidados de saúde pessoais, nomeadamente na prevenção e na promoção da saúde e do bem-estar, contribuindo Figura 13. Principais aplicações da CIF. Elaborado a partir da Classificação Internacional de

Funcionalidade e Saúde (CIF) (OMS, 2004).

APLICAÇÃO DA CIF Instrumento de Investigação Ferramenta estatística Ferramenta clínica Instrumento de trabalho Ferramenta pedagógica

- Permite a recolha e o registo de dados. - Permite a medição de resultados da qualidade de vida e dos fatores ambientais. - Permite a avaliação das necessidades, tornando as condições de cada pessoa compatíveis com o tratamento adequado. - Avaliar as capacidades profissionais, a reabilitação e os resultados obtidos.

- Facilita o planeamento de sistemas de segurança social.

- Ajuda na elaboração de projetos e desenvolvimento de políticas.

- Apoia a elaboração dos programas educacionais.

111 para a diminuição ou a remoção das barreiras físicas ou sociais. Este documento aceite como uma das classificações sociais das Nações Unidas constitui um instrumento apropriado para o desenvolvimento de legislação internacional sobre os direitos humanos (Kostanjsek, 2011, OMS, 2004). Neste sentido, a sua implementação verificou-se não só na Europa, mas também nos Estados Unidos e na Austrália, país onde a adoção da CIF se revelou uma peça fundamental na estrutura técnica que permitia articular de modo harmonioso os dados recolhidos sobre a população. Apresenta-se, ainda, com um importante catalisador no incentivo de uma visão mais ampla da deficiência, em particular, e na criação de uma estrutura concetual que inclui a participação e os fatores ambientais (Madden, Choi, & Sykes, 2003, Reed, Lux, Bufka, Trask, Peterson, & Stark, 2005).

A CIF pode, por isso, ser utilizada no âmbito da saúde em articulação com as problemáticas de ordem social e humanitária. Na opinião de Kearney e Pryor (2004) este sistema classificativo é, igualmente, útil no ramo da enfermagem, enquanto uma mais-valia para uma maior consciencialização das dimensões sociais e culturais da deficiência. Analogamente, Wade e Halligan (2003) defendem que esta classificação pode contribuir de modo favorável na descrição de situações das pessoas com doenças prolongadas. Contudo, estes autores consideram que, apesar de se apresentar como uma “estrutura incompleta” (p.349), a CIF pode ultrapassar as suas fragilidades e tornar-se num modelo eficaz na análise e explicação do comportamento humano. Este sistema classificativo, apesar das falhas que apresenta, pode ser utilizado na esfera internacional para documentar o impacto que os fatores ambientais produzem no modo de entender a incapacidade, bem como para destacar a necessidade da criação de soluções políticas e socias passiveis de executar. A CIF pode, por isso, tornar-se num foco de esperança, para que no futuro se concretize uma mudança expressiva no modo como as pessoas pensam e olham a incapacidade, fomentando uma abordagem multidisciplinar das mesmas. Pode, ainda, permitir que os políticos empreguem os fatores ambientais como base de avaliação dos serviços prestados, construam um quadro legislativo não discriminatório, que assegure os cuidados de saúde e os apoios apropriados a cada pessoa (Hurst, 2003).

No domínio das NEE a CIF pode ser utilizada nas diferentes áreas, desde a avaliação até aos serviços e apoios a prestar às pessoas incapacitadas. Na área da recolha de informação e avaliação dos distúrbios cognitivos, a aplicação deste sistema permite à equipa multidisciplinar uma sistematização do historial clínico do indivíduo e das suas limitações. Além disso, contribui para que a cada pessoa seja aplicado o conjunto de apoios que melhor se coaduna com as suas necessidades, de modo a maximizar o seu potencial. Ao ser utilizada como um instrumento multidisciplinar, na qual se requer uma articulação imprescindível entre os diferentes profissionais que compõem a equipa que acompanha a pessoa pode tornar- se uma ferramenta de classificação eficaz (Arthanat et al. 2003). No campo da terapia ocupacional, permite uma sistematização da condição apresentada pelo doente e facilita aos

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terapeutas a comunicação entre estes e os restantes profissionais da área da saúde, do trabalho ou da educação. No entanto, esta classificação revela-se insuficiente como linguagem profissional, pelo que os técnicos de reabilitação necessitam de utilizar a sua própria terminologia, de modo a complementar a que é utilizada pela CIF (Arthanat et al. 2003, Haglund, & Henriksson, 2003, Üstün et al., 2003). Na área da paralisia cerebral, esta classificação pode assumir-se como modelo orientador na pesquisa e prática clínicas, ao permitir uma maior abrangência de ação dos profissionais no aperfeiçoamento da atividade e da participação de crianças com risco de funcionalidade, bem como na prevenção de deficiências de grau leve ou moderado (Rosenbaum, & Stewart, 2004). Salienta-se, ainda, a área da pediatria onde, não existe um consenso quanto à sua aplicação às crianças. Na verdade, o componente «Actividades e Participação» não abrange na totalidade a natureza do desenvolvimento da criança. Deste modo, torna-se premente uma adaptação específica do documento, para que abarque as peculiaridades das funcionalidades e das incapacidades inerentes à fase infanto-juvenil, e que apresente uma estrutura multidimensional (Battaglia t al., 2004). Analogamente, Simeonsson et al. (2003) afirma que a realização de adaptações na CIF, direcionadas aos mais novos, tem como prioridade construir um sistema classificativo que permita o desenvolvimento de meios de avaliação para crianças e jovens. Por último, salienta-se a aplicação desta classificação no âmbito da educação, uma vez que permite aos docentes de educação especial, em conjunto com a equipa multidisciplinar, proceder a alterações no desenho curricular do aluno, para que este possa desenvolver as suas potencialidades (Arthanat et al., 2003, OMS, 2004).

Dadas as múltiplas finalidades da CIF, surgem, por vezes, equívocos na sua compreensão: ao ser considerada apenas como uma ferramenta do e para o setor da saúde (WHO, 2002). Segundo Felgueiras (2009), tais lapsos resultam das imprecisões nos conceitos de saúde e de medicina. Além disso, a experiência profissional demonstra que os instrumentos de avaliação só se revelam benéficos quando são compreendidos antes de serem utlizados. Neste sentido, é imperativo que os diferentes profissionais sejam devidamente preparados para que possam utilizar a CIF corretamente (Hurts, 2003). A par dos equívocos na compreensão concetual, a OMS reconhece que, um sistema de classificação como a CIF pode ser utilizado de forma abusiva e negligente. Neste sentido, a OMS realizou, após o seu lançamento, em 2001, um conjunto de worshops em diversos países com o objetivo de esclarecer os diferentes profissionais sobre a aplicação da CIF. As principais conclusões foram: (i) na elaboração de uma definição de incapacidade devem ser utlizados os conceitos postulados pela CIF. Deste modo, deve fomentar-se o uso de uma linguagem comum e neutra na construção das definições, de modo a tornar possível a comparação de resultados entre diferentes regiões e países. Além disso, os profissionais deverão receber formação para que utilizem corretamente esses mesmos conceitos; e (ii) na construção de formulários que servem de base à identificação das pessoas com incapacidades devem ser considerados alguns princípios orientadores que abarcam as questões formuladas. Assim, as mesmas devem: (a) referir-se às

113 limitações nas atividades, considerando o contexto de uma vida saudável; (b) descrever o tipo de limitações nas atividades; (c) permitir, a quem responde, determinar o grau de severidade e/ou de limitação. Em vez de incluir respostas do tipo sim/não, a escala de resposta deve ser formada por várias opções, como por exemplo nenhuma/um pouco/muito/ às vezes/frequentemente/não; e (d) incluir uma referência ao período de tempo em avaliação, de modo a possibilitar uma distinção entre limitações de curto e longo termo (Mbogoni, 2003). Posteriormente, a OMS apresenta um conjunto de disposições que visam minimizar o risco de um uso indevido: (i) o respeito e o direito de sigilo sobre os dados pessoais e clínicos; (ii) a partilha de informação do médico com a pessoa que está a ser avaliada; e (iii) as informações da CIF que devem ser utilizadas no sentido de permitir um maior controlo dos indivíduos sobre as suas vidas (OMS, 2004).

Não obstante vários autores considerarem a CIF como um modelo promissor, outros demonstram reservas e preocupações. Nordenfelt (2003, 2006) apresentou uma análise crítica sobre a base concetual deste sistema classificativo, centrada na validade e coerência das definições de «atividade» e «participação» que são apresentadas numa categoria ontológica única, abrangendo o mesmo domínio, mas com duas definições diferentes. Segundo o autor, estes conceitos não podem ser entendidos de modo isolado, uma vez que qualquer que seja a atividade a realizar, esta só pode ser concretizada quando inserida num ambiente da vida quotidiana do indivíduo. O desenvolvimento destes conceitos assenta, na sua opinião, numa filosofia denominada action theory, cujos pilares são as definições de «capacidade» e «oportunidade», uma vez que ambas são condições imprescindíveis para todo o tipo de ação. Entenda-se por «capacidade» aquilo que a pessoa é capaz de realizar, em função da sua condição de saúde, e por «oportunidade» a possibilidade que a sociedade oferece ao indivíduo de concretizar uma tarefa (Nordenfelt, 2003, Perenboom, & Chorus, 2003). Esta teoria da ação, quando relacionada com a área das NEE, apresenta uma complicação resultante do modo como a sociedade comunica entre si sobre a deficiência. Além disso, permite a especulação dos termos incapacidade e deficiência, ao questionar se a impossibilidade de realizar uma tarefa está relacionada com a deficiência intrínseca à pessoa ou com os fatores externos. O problema reside, por isso, na forma como a CIF tem sido utilizada. Assim, a falta de consistência na matriz dos conceitos «atividade» e «participação», e a consequente confusão entre os mesmos, pode resolver-se substituindo o componente «atividade e participação» pela categoria da «ação», uma vez que a capacidade para executar a ação depende tanto do ambiente generalizado como do específico. Nesta linha de pensamento, a CIF necessita de uma reconstrução ao nível concetual, uma vez que a distinção entre os dois conceitos não é coerente. (Nordenfelt, 2003, 2006).

Por seu turno, Imrie (2004) considera que a CIF procura desenvolver uma conceção integral da pessoa humana, baseada no princípio platónico e aristotélico da relação entre o ser humano e o ambiente. No entanto, contém imprecisões ao nível dos conceitos que podem originar

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interpretações díspares por parte dos diferentes setores. As suas principais lacunas são três. Assim, a definição de incapacidade surge como a primeira omissão. Deste modo, perante as diversas formas de entender a deficiência e a incapacidade, a CIF procura assumir uma posição mediadora entre os diferentes componentes. No entanto, expõe uma visão ontológica do corpo, que reflete uma dimensão materialista, ao apresentá-lo como uma entidade física que delimita e define, parcialmente, os limites e as capacidades da ação humana. Neste sentido, a CIF deveria ser mais explícita nas questões ontológicas sobre o corpo e a deficiência. A teoria biopsicossocial emerge como a segunda falha presente na classificação. Na verdade, apesar de considerar que esta é o cerne da CIF, o autor defende que este sistema classificativo apresenta défices no seu desenvolvimento teórico e prático, constituindo-se numa dificuldade para os utilizadores. Contrariando esta opinião, a OMS afirma que “a CIF tenta chegar a uma síntese que ofereça uma visão coerente das diferentes perspectivas de saúde: biológica, individual e social” (OMS, 2004, p.22). Contudo, Imrie (2004) diz que muito pouco é referido sobre essa síntese que permita obter “uma visão coerente” dado o carácter omisso do documento, exceto no que se refere ao desenvolvimento da teoria da deficiência. Por último, os princípios da universalização como base para a elaboração de programas relacionados com a saúde, a deficiência e as questões sociais, sobrevêm como uma lacuna. Esta falha prende-se com o facto de a perspetiva universalista presente no documento, baseada no conceito de universalização de Zola‟s (1989), se referir apenas ao reconhecimento de que a população é um potencial alvo de contrair uma deficiência e não à criação de políticas universais nessa área. O referido conceito apelava para a apresentação de políticas universais que tornassem possível um atendimento eficaz e condigno das necessidades reveladas pelas pessoas com deficiência (Bickenbach et al. 1999). Falar de universalidade é falar de diferença, pelo que não se pode pretender conjugar da mesma forma realidades que estão inseridas em contextos diferentes. A criação de políticas universais não pode, por isso, ignorar a diversidade social ou ceder a pressões políticas que resultem na atribuição de benefícios e serviços seletivos. Deste modo, segundo o autor, a CIF é um produto que está longe de ser terminado e as suas bases teóricas necessitam de ser clarificadas e ampliadas (Imrie, 2004).

4.5. A Classificação Internacional de Funcionalidade e Saúde-