• Nenhum resultado encontrado

2.2.1 – A aprendizagem situada e alguns de seus desdobramentos

Considerar a aprendizagem como situada na prática social é uma concepção significativamente mais abrangente do que os conceitos convencionais de “aprendizagem in situ” ou “aprender fazendo”. Jean Lave e Etienne Wenger (1991) assumem uma perspectiva que vai muito além do situar no tempo e no espaço pessoas, pensamentos e ações, de lhes atribuir um significado quando estão envolvidos, ou mesmo de dizer que estão dependentes do contexto social que as originou. Para os autores, a aprendizagem situada faz parte de uma perspectiva teórica geral que se baseia no caráter relacional da produção de conhecimento, no sentido negociado dos significados e na natureza da atividade de aprendizagem para as pessoas envolvidas. Não existe, pois, atividade que não seja situada.

37

Os cinco estudos são: ser aprendiz de parteiras yucatecas (México); o ser aprendiz de alfaiates em Vai e Gola (Libéria, África); o ser aprendiz de oficiais intendentes na marinha dos Estados Unidos; o ser aprendiz de açougueiros em uma cidade americana e o ser aprendiz em uma Associação de Alcoólatras Anônimos (A.A).

38

Foi ao longo do processo de tentarem clarificar esta perspectiva que os autores chegaram ao atual entendimento da aprendizagem como um aspecto integral e inseparável da prática social. Para uma completa revisão da trajetória de construção da teoria da aprendizagem desenvolvida por Lave e Wenger, ver Santos (2004).

51 Neste modelo de pensamento, aprender independe da existência de uma relação mestre-aprendiz e da instauração de uma relação propriamente pedagógica:

A aprendizagem é, ela mesma, uma prática improvisada: um currículo de aprendizagens explicitado nas oportunidades para se engajar na prática. Este não é especificado como um conjunto de preceitos sobre uma prática adequada.

Na situação de aprendizado, as oportunidades para aprender são, com muita freqüência, estruturadas pelas práticas de trabalho em lugar de relações fortemente assimétricas entre mestre e aprendiz. (Lave e Wenger,1991:93). (Tradução minha).

Adotar uma perspectiva descentrada das relações mestre-aprendiz nos leva a entender que os saberes não residem no mestre e sim na organização da prática social da qual o mestre e o aprendiz são parte (idem). Essa mudança de perspectiva vem deslocando o interesse pelos processos de ensino para a problematização da intrincada organização de práticas que possibilitam a ocorrência de aprendizagens. Nesta abordagem, o conceito de comunidade é fundamental para pensar na concepção da aprendizagem situada enquanto fenômeno de interação num grupo social (e não um processo individual) e o conhecimento como atividade ou processo (em oposição à idéia de produto). A aprendizagem e o conhecimento são vistos de modo contextualizado e relacionados com práticas sociais.

Como me referi anteriormente, no processo de redefinição dos contornos da minha pesquisa, um dos fatores que mais instigou o investimento na compreensão dos modos cotidianos de aprender (na) umbanda foi o fato de se tratar de uma prática social que possui pouco ensino observável. De fato, na “Casa do J.”, o que pude observar ao longo da recolha de dados foi a ocorrência do “mais básico fenômeno da aprendizagem” (Lave e Wenger,1991:93).

Estes autores problematizam os processos de aprendizagem que se dão no cotidiano, sugerindo novas formas de pensar o processo de aprender, dando mais atenção ao mundo social e respeitando a sua tão peculiar “formalidade” constituída de mudanças, improvisos, invenções e negociações. Trata-se de uma perspectiva que compreende o aprender como algo que envolve a pessoa como um todo e que se contrapõe à idéia de recepção de um conjunto de conhecimentos factuais sobre o mundo, considerando que aprender passa pela atividade no e com o mundo.

52 É uma teoria que compreende, portanto, o agente, a atividade e o mundo como elementos da realidade que se constituem mutuamente. Para Lave e Wenger (1991) a aprendizagem ocorre no contexto da nossa experiência quotidiana de participação no mundo e é parte integrante da natureza humana, sendo indispensável e inevitável para a vida, tal como o comer ou o dormir. Desta forma, enfatizam a necessidade de levarmos em consideração os grupos sociais com os quais nos envolvemos, as relações que neles estabelecemos, as atividades que realizamos no seio desses grupos, o tipo de recursos que são utilizados, as histórias partilhadas e construídas ali. São estes grupos sociais em que vivemos e com os quais nos envolvemos e produzimos uma coerência de ações e objetivos que Lave e Wenger (1991) definem como comunidades de prática, um conceito central da abordagem que propõem.

O conceito de comunidade de prática

O argumento principal é que comunidades de prática existem em toda parte e de que estamos geralmente envolvidos em algumas delas, quer seja no trabalho ou em casa, quer seja em nossas atividades cívicas ou de lazer. As características de tais comunidades39 são variadas, sendo algumas mais formais em sua organização e outras mais dispersas, mas todas apresentam em comum situações nas quais pessoas realizam atividades cooperativamente, partilhando os mesmos objetivos e recursos. Ali, as categorias de espaço e tempo são mais fluidas, obedecendo não às determinações burocráticas, mas ao ritmo de trabalho e participação dos sujeitos envolvidos. Assim, aprender em comunidades de prática envolve

um tipo de participação que não se refere apenas a eventos pontuais de engajamento em certas atividades com certas pessoas, mas a um processo mais abrangente de se ser participante ativo nas práticas da comunidade e na construção de identidades em relação àquelas comunidades (Wenger apud Smith, 2003).

39 É importante lembrar que “comunidade de prática é um conceito e, como tal, não existe empiricamente

senão aos olhos do observador, que dele se serve para dar visibilidade a algumas das dimensões da prática social” (Gomes, 2007: 6). Lave e Wenger salientam que não se trata de um grupo bem-definido, identificável e com fronteiras socialmente visíveis. Pelo contrário, admitem a co-existência de diferentes interesses e pontos de vista entre os elementos da comunidade (1991: 98).

53 Isto significa que a atividade produtiva (ou a participação) e a aprendizagem são inseparáveis, pois estão intrinsecamente relacionadas. Em uma comunidade de prática os diferentes membros têm formas distintas de participar, mas é o fato tomarem parte na realização de tarefas que torna possível saber, compreender, aprender. Praticando juntas, porém cada uma a sua maneira, as pessoas buscam meios de melhorar o que fazem, seja a resolução de problemas e conflitos da própria comunidade, seja da relação desta com o seu entorno.

Incluindo o conceito de comunidade na discussão da aprendizagem, além de dar destaque ao aspecto identitário40 de seus membros, Lave e Wenger mais uma vez reafirmam o processo de aprender enquanto fenômeno que diz respeito a um grupo social e não a um único indivíduo. Assim, se uma comunidade de prática pode ser definida como sendo “um conjunto de relações entre pessoas, atividades e mundo” e uma condição “intrínseca para a existência do conhecimento” (Lave e Wenger, 1991: 98), então a “Casa do J.” pode ser compreendida como tal. Como afirmam Lave e Wenger (1991) sobre as comunidades de prática de modo geral, é possível identificar naquele terreiro de umbanda a existência de práticas de aprendizagem (e não de ensino) em seu cotidiano, além de diferentes níveis de participação de seus membros e aspectos identitários.

Neste ponto é importante deixar bastante claro que a noção de comunidade de prática aqui assumida não deve, em hipótese alguma, ser confundida com uma idéia de “oásis” onde imperaria uma absoluta harmonia entre seus membros, em oposição ao caos das relações “extra-comunitárias”. No âmbito de uma abordagem situada da aprendizagem, é fundamental compreendermos os processos de produção/reprodução das comunidades de prática como historicamente construídos, inacabados, conflituais, sinergeticamente estruturantes dos seus propósitos e das interações entre os participantes, estando em jogo, portanto, relações de poder.

Visando evitar este tipo de visão distorcida do conceito, Lave e Wenger estabeleceram três dimensões que consideram como as “fontes de coerência da prática” e, logo, definidoras dos contornos de uma comunidade de prática:

40 Falar em identidade só faz sentido quando relacionada com um coletivo, já que não há identidades sem

54 - a existência de uma iniciativa ou missão conjunta: que passa pela negociação, pelas responsabilidades que se assumem em conjunto, pela semelhança das interpretações feitas, dos ritmos encontrados e das respostas locais construídas;

- o engajamento mútuo: que assume formas diversas, mas que permitem que sejam realizadas iniciativas em conjunto, e onde as relações, a complexidade social e a manutenção da comunidade de prática são aspectos que precisam ser considerados;

- o repertório partilhado: que se consolida e cresce com o tempo através das histórias que se vivem e relatam, dos estilos que se vão identificando, dos artefatos e instrumentos comuns elaborados e utilizados, das ações levadas a cabo, dos acontecimentos históricos partilhados e interpretados conjuntamente, assim como os discursos e conceitos partilhados e reconhecidos como pertencendo aquela comunidade específica.

Numa comunidade de prática, aprender diz respeito não ao processo de aquisição de conhecimento pelos indivíduos, sendo mais o resultado de um processo de participação social e que advém amplamente das experiências vividas coletivamente. Estas afirmações trazem pelo menos duas implicações fundamentais para a comprensão da aprendizagem que ocorre em contextos como um terreiro de umbanda. A primeira dela é que, por ser inerente a prática social, não seria necessário providenciar para que a aprendizagem aconteça; ela acontece precindido de situações de ensino. Já a segunda nos faz concluir que é o envolvimento na prática que gera as possibilidades de aprender. A realização de uma “gira”, por exemplo, nos remete a uma prática, a um fazer coletivo em que não há a intenção primordial do ensinar, mas onde a participação produz aprendizagem. Dito de outro modo, os fiéis se dirigem a um terreiro para praticar a religião e, como conseqüência, aprendem. A razão que motiva estarem ali não é, portanto, aprender umbanda e sim praticá-la. Os rituais implicam num fazer compartilhado, bem como em troca de saberes e experiências.

Da mesma forma, é por meio da participação nesses contextos de prática que os adeptos vão se constituindo como membros daquela comunidade religiosa. Envolvendo- se inevitavelmente nas relações de poder, acordos, negociações e conflitos inerentes a vida social, o povo-de-santo aprende os gestos, os significados, as emoções, as disposições corporais e identidades que produzem um umbandista. Há, portanto (e como

55 já foi mencionado) diferentes níveis de participação, como há diferentes níveis de aprendizagem.

Segundo Lave e Wenger (1991), as pessoas se juntam às comunidades e aprendem a princípio “de maneira periférica”. À medida que gradativamente a participação aumentar em engajamento e complexidade, as pessoas irão mover seu lugar na comunidade até atingir uma participação plena. Porém, para que essa mobilidade seja possivel, é preciso primeiramente que cada um seja reconhecido como membro e que, assim, sua participação possa ser legitimada, mesmo se periférica pela sua ainda impossibilidade de agir/interagir de outra forma. Se a participação de uma pessoa não é reconhecida pelos pares, esta pode estar presente junto com os demais na realização das práticas, mas não vai conseguir aprender, pois sua forma de participação não o levará a viver as ocasiões necessárias para isso.

A partir deste entendimento, os autores cunharam o conceito de particpação

periférica legitimada que refere-se exatamente ao processo através do qual um recém-

chegado vai se tornando, progressiva e efetivamente, membro de comunidade de prática, ou seja, processo que o leva a sair de uma posição periférica para se tornar um participante pleno numa determinada prática.

O conceito de participação periférica legitimada

Pensar em termos de participação periférica legitimada (p.p.l) nos permite compreender as relações entre membros novatos (newcomers) e veteranos (old-

timers)41, as inter-relações de ambos com as iniciativas em curso, as identidades, os instrumentos, da própria comunidade de prática. Assim, por ter a propriedade de conseguir delinear todo este processo, p.p.l. pode ser considerado um interessante “descritor do processo característico da aprendizagem” (Santos, 2004: 25).

O conceito de p.pl., pois, refere-se à localização no mundo social. E a mudança de localização e, conseqüentemente, de participação dentro dele faz parte das trajetórias de aprendizagem, do desenvolvimento de identidades e das formas de pertença e de envolvimento numa comunidade de prática. É nesse sentido que a questão da identidade

41 Os termos newcomers e old-timers são característicos da discussão de Lave e Wenger sobre a

56 é central na perspectiva teórica de Lave e Wenger, onde a aprendizagem não é encarada como processo de adquirir saber, de memorizar procedimentos ou fatos, mas é considerada como forma evolutiva de pertença, de “ser membro”, de se “tornar- como”42.

Sendo assim, uma das idéias mais instigantes que este conceito traz diz respeito a pensar a “periferialidade” como uma posição privilegiada de participação, que não carrega a carga negativa que comumente se atribui ao termo. Lave e Wenger argumentam que o oposto de “periferialidade” não é “participação central”, e sim sugere uma multiplicidade e variedade de modos de participação existentes numa comunidade, de maior ou menor engajamento, e com diferentes condições de domínios e acesso aos saber que ali circulam.

Já de início faz-se importante dizer que Lave e Wenger (1991) advertem que a expressão participação periférica legitimada não deve ser compreendida “pelo contraste”, nem os termos serem considerados isoladamente. Por fazer referência à “uma noção complexa que implica relações envolvendo estruturas sociais de poder”, a proposta é que o conceito seja tomado como um todo, pois “cada um dos seus aspectos é indispensável na definição do outro” (p: 35).

Para os autores, não se pode considerar que numa comunidade de prática existe um “centro” uniforme e unívoco ou uma noção linear de aquisição de capacidades, assim como não existe uma posição designada “periferia”. A “participação periférica” conduz à participação plena43. “Periferialidade” é, pois, encarada como um termo positivo, um conceito dinâmico, que sugere uma abertura, uma forma de ter acesso aos recursos necessários, que se vai aprofundando através de um crescente envolvimento na prática social. Sendo assim, a suposta ambigüidade inerente à participação periférica deve ser compreendida em termos de legitimidade e acesso44, tanto da organização

42 Tradução do termo becoming utilizado por estes autores.

43 Os autores justificam a escolha do termo plena e não completa para qualificar o modo de participação

no entendimento de que este último termo pressupõe um corpo fechado de conhecimentos ou de práticas coletivas, em relação às quais se poderia considerar graus de aquisição mensuráveis. Com a expressão

participação plena pretendem fazer “justiça” à diversidade de relações envolvidas nas várias formas de

pertença a uma comunidade de prática (1991).

44

57 social quanto do controle sobre os recursos, de modo a possibilitar o desenvolvimento do potencial analítico destes conceitos.

Ao lado dos conceitos aqui apresentados, trago também para o centro da discussão da aprendizagem na e da umbanda as noções de habilidade e educação da

atenção desenvolvidas por Tim Ingold (2000, 2001), por acreditar que trazem valiosas

contribuições para a descrição e análise do complexo campo de relações que, no caso da umbanda, envolvem seus praticantes, os santos, os guias espirituais, os objetos sagrados, as energias manipuladas, os tempos e espaços, além do próprio terreiro (tomando em seu aspecto físico e social).