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é uma linda jovem de 16 anos que cursa o segundo ano do Ensino Médio em

4.2 Múltiplos modos de participar

L. é uma linda jovem de 16 anos que cursa o segundo ano do Ensino Médio em

uma escola pública de seu bairro. Ela é filha de Jn., sendo, portanto, sobrinha de Pai J.. No início da recolha de dados seus familiares e os membros da “Casa” referia-se a ela com expressões do tipo: “Ela está desperdiçando o dom que recebeu”; “Não sei se é

medo ou preguiça que a L. tem de entrar para religião”; “Essa menina tem uns guias lindos, mas ela não deixa eles trabalharem”, tal como diziam também de Ad.. No

entanto, o comportamento dos dois era bem diferente e, neste momento, vale a pena refletir sobre essas diferenças.

Todavia, para falar do modo da L. participar na “Casa” é forçoso que me refira ao seu irmão – P.116 – seis anos mais novo que ela. Enquanto o P. parece enfrentar com naturalidade e entusiasmo a “herança religiosa” que sua família cotidianamente lhe “transmite”, L. sempre fez questão de demonstrar não ter qualquer interesse em “entrar para religião”, como os meus anfitriões costumam dizer. Ela fala freqüentemente do seu não desejo de se comprometer com algo “tão pesado” e de seus planos de completar seus estudos e ingressar em uma universidade.

Por sua vez, mesmo com pouca idade, P. tornou-se um dos umbandistas mais dedicados e eficientes do terreiro, procurando chegar com antecedência às cerimônias e rituais que acontecem tanto dentro, como também fora da “Casa do Pai J.”. Para L., ao contrário, ir a todos os eventos umbandistas dos quais sua família participa e até mesmo às “giras” – em que, de fato, sua presença é constante – se configuram muito mais como momentos de “lazer”, como ela mesmo me disse, do que um compromisso religioso.

Se seu irmão se empenha em buscar e estabelecer seu lugar e papel na “Casa de Pai J.”, L. conquistou a possibilidade de circular e explorar, sem compromisso, os diversos espaços e circunstâncias da prática de umbanda. E este foi um dos aspectos que me levou a ficar atenta a sua presença constante naquele universo, pois parecia-me contraditório com o seu habitual desinteresse no que diz respeito às “coisas dos santos”.

Era comum, por exemplo, que se sentasse nos bancos destinados à assistência no barracão para conversar com suas amigas, primas ou vizinhas que vinham acompanhar uma cerimônia, ou que saísse e entrasse no terreiro muitas vezes durante a realização das “giras”, dizendo frases do tipo: “já cansei disso daqui”; “Vou dar uma

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circulada por aí”. Por outro lado, L. faz questão de ir com freqüência ao terreiro de

Mãe C. que fica distante de sua residência e, de um jeito ou de outro, estava sempre participando das rotinas do terreiro de seu tio. Outro aspecto significativo que me chamou atenção em L. foi o fato de demonstrar ter um conhecimento bastante vasto dos fundamentos e da liturgia umbandista, sendo a ela que muitas vezes eu recorri para esclareceu algumas dúvidas durante a pesquisa.

Pelas nossas conversas e pelas observações que fui fazendo, percebi que a garota tem prazer em participar das rotinas da “Casa do J.” mas que os seus motivos para isso são bem diferentes daqueles que orientavam os outros membros. O que lhe motiva a estar no terreiro é a atmosfera festiva e agitada desse espaço, e também a multiplicidade de pessoas e situações que tem a oportunidade de acessar estando ali. Ela gosta de observar como as crianças que são levadas por suas mães se comportam naquele universo (o que fazem e dizem, como se relacionam com as entidades), conhecer os médiuns de outras “casas”, perceber a variedade de formas de dançar e cantar dos guias espirituais que ali “baixavam”, se divertir “analisando” a diversidade de pessoas que formavam a assistência e suas reações.

Enquanto eu ajudava T. a fazer um coque em seu cabelo antes da festa começar, L. entra saltitante na sala e diz:

L.: Amiga, hoje o negócio tá bom aqui, viu? Só tem gatinho!

T. [em tom de brincadeira]: É, sua chata? Valeu por me avisar... [risos] A casa cheia de gatinho e eu com essa roupa linda [tom

irônico] de pombagira... Ninguém merece [risos].

L [risos]: Coitadinha da minha priminha querida! Eu só sei que eu vou aproveitar.

T: Vai periguete!

L. sai da sala rebolando.

(Diário de campo - Festa de Exu - 14/02/209)

Conforme ela mesma me contou, por ter sido uma criança “desinteressada desses negócios de umbanda”, o seu conhecimento da religião, a princípio, era muito restrito, o que não lhe permitia ter acesso aos rituais e tarefas mais complexas do terreiro. Mas, à medida que foi “crescendo”, paulatinamente foi ganhando maior domínio dos fundamentos e da prática umbandista e acabou por desenvolver uma interessante capacidade (e direito) de se movimentar e explorar tal universo. E que melhor pretexto para isso do que, por exemplo, ajudar na organização do barracão? Ou auxiliar na

147 cozinha e cuidar das roupas rituais guardadas no “quartinho”117? Ou ainda se encarregar de “cuidar” dos bebês e crianças pequenas que eventualmente são levadas ao terreiro?

No entanto, como o que orienta a sua forma de participar na “Casa” é mais o desejo de fruir o ambiente do que se iniciar na umbanda, L. não se fixa em uma tarefa a ponto de aprofundar seu conhecimento a respeito de todos os aspectos religiosos que a envolve. Assim, sem se preocupar com os “segredos” inerentes a cada função, espaço e tempo do terreiro, a jovem ora ajuda no “quartinho”, depois passa para a cozinha, para já em seguida se dirigir ao barracão ou qualquer outro lugar, procurando explorar o que ainda desconhece. Desse modo consegue, no seu ponto de vista, uma boa forma de participar da “Casa” já que lhe permite conciliar os seus reais interesses com uma justificação perfeitamente legitimada no contexto umbandista, a saber, a conservação e organização do terreiro.

Foi interessante notar que Pai J. não se incomoda ou se queixa com relação a esse modo de atuar de L.. Se comportando quase como uma expectadora, praticamente apenas observando e ouvindo o que se passa, de fato não oferece bons indicadores de que ela esteja interessada em se tornar uma umbandista habilidosa.

Embora com o tempo L. tenha conseguido atingir uma condição de acesso bastante razoável dos saberes e práticas da umbanda, ela continua evidenciando uma postura de certo distanciamento e permanece declarando sua não intenção de se “desenvolver” na religião (pelo mesmo por enquanto). Não obstante, por ser muito atenta, esperta e amigável com todos os médiuns e também com a assistência, ela consegue realizar bem e com responsabilidade as eventuais tarefas que assume e acaba contribuindo significativamente para a comunidade, ainda que de maneira informal. E desse modo, L. garante também, e principalmente, a sustentação da legitimidade de sua participação ali.

Acredito que pelo fato de reconhecerem como legítima e respeitarem sua postura, nunca ouvi os membros da “Casa” fazerem qualquer tipo de comentário negativo ou alguma forma de comparação entre ela e seu irmão, por exemplo, pelo contrário. O que é mais evidente é que todos ali consideram a jovem como também um membro daquela comunidade, mesmo ela não tendo passado pelos mesmos processos

117 Trata-se de um cômodo da própria residência de Pai J. que foi transformado em uma espécie de

camarim do terreiro, onde ficam guardadas as vestes cerimoniais dos ogãs, equedes e de cada um dos guias espirituais de todos dos médiuns “rodantes” do terreiro.

148 que eles de integração e iniciação religiosa. Isso se deve, em muitos sentido,s ao fato de que L. está, quer seja este o seu desejo ou não, fortemente integrada àquele universo.

Todavia, a maneira como L. participa na “Casa do J.”, permite leituras diferentes desta acima referida, conforme o ponto de vista de quem as faz. No início de minha pesquisa de campo, a jovem parecia aos meus olhos – ou seja, aos olhos de alguém “de fora” – ser uma participante pouco empenhada, apresentando uma atuação nas rotinas do terreiro que denotava demasiada “periferialidade” quando comparada aos outros membros. As características e sentidos de mudança de seu modo de participação e, conseqüentemente, o seu lugar e função naquela comunidade permaneceram invisíveis a mim durante bastante tempo. Entretanto, a convivência me permitiu por fim reconhecer que sua aparente “não-participação” era na verdade sua forma muito própria de participar: ser “de santo” sim, mas só até onde isso faz sentido relativamente àquilo que ela quer que tal identidade lhe proporcione.

Ser umbandista serve-lhe como um rico e interessante pretexto para viver novas experiências. L. sabe muito bem que se não se propusesse a arrumar as vestimentas dos médiuns ou auxiliar no preparo das comidas dos santos, por exemplo, nunca teria a confiança dos guias espirituais e também não poderia ir às festas mais restritas (e por isso mais interessantes) geralmente inacessíveis aos não iniciados, realizadas tanto na “Casa do J.”, quanto no terreiro de Mãe C.. As pessoas da assistência não a abordariam para pedir sua ajuda ou esclarecimentos durante as sessões e seu jeito espevitado de adolescente não deixaria que as mães confiassem seus filhos a sua guarda.

É, portanto, sua atuação significativa na garantia do que se refere a “parte humana” (e não espiritual) das rotinas de um terreiro que lhe garante participar legitimamente da comunidade de umbandistas da “Casa do J.” e ter, assim, oportunidades de aprender na prática. Em outras palavras, para que sua forma de participação seja aceita, L. tem que apresentar, tanto para os “de dentro da Casa”, como para os “de fora”, uma justificativa que seja reconhecida como legítima e valorizada naquele universo.

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M. V. (K.)