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6.1 Transparência e opacidade nas ações cotidianas

Logo de início é preciso dizer que a efetiva identificação do que estou considerando como o terceiro recurso estruturante da prática de umbanda só foi possível em virtude de uma narrativa feita pelo ogã de toque Al. que chamou minha atenção para aspectos da produção de umbandistas aos quais eu não havia dado o devido reconhecimento. Ao revelar uma de suas fontes de conhecimento e possibilidade de

195 aprendizagem, esse ogã explicitou a configuração de uma importante categoria nativa: a noção de “estratégia de aprendizagem”.

RENATA: Eu fico impressionada com a quantidade de coisas que vocês têm que saber.

AL. [risos]: É muita coisa mesmo. R: Como é que vocês conseguem? A: A gente tem nossos métodos. R: Como assim, métodos?

A [risos]: Uai, eu por exemplo, eu desenvolvi uma estratégia pra aprender que é assim, é... quando eu não sei as folhas que podem ser usadas na defumação, por exemplo, é só eu ir lembrando do ponto que a gente toca na gira enquanto tá defumando... “com incenso e benjoim, alecrim e alfazema, eu defumo essa casa com as folhas da jurema”. [risos]. Entendeu?

R: Olha só... Entendi... [risos].

A: Assim também, é... Os pontos que a gente toca pra malandro, por exemplo, são praticamente os mesmos que a gente toca pra exu e pomba-gira. Aí você já vai vendo que eles são da mesma linha, da mesma vibração. Aí você pára e guarda “Malandro é da falange de exu. Beleza”. Mesma coisa com Oxossi e os boiadeiros, os caboclos... Os pontos deles sempre falam de mata, de natureza, de folha, de planta. Aí você já vai juntando: “oh, Oxossi é o orixá das matas e os boiadeiros são da falange dele”. Boiadeiro e caboclo, né? Que são ligados às coisas da terra. E por aí vai.

R[risos]: Muito legal!

A: Estratégia, moça. Eu sou um cara esperto [risos].

(Entrevista realizada com Al. em 15/03/2010)

A partir dessa fala de Al., então, vasculhei minhas anotações, gravações e entrevistas e passei a inquirir meu campo de pesquisa com o interesse voltado também para esta categoria nativa. Empreendendo uma espécie de processo “retro- investigativo”, localizei em meu material etnográfico registros que remetiam diretamente à noção de estratégia aventada pelo ogã, bem como anotações que faziam referência, direta ou indiretamente, a idéias como exercício, método ou metodologia de aprendizagem. Isso me levou a concluir que era imprescindível me debruçar também sobre a dimensão estratégica da prática umbandista compreendendo-a como uma componente crucial – juntamente com a participação e as relações – dos principais recursos estruturantes da prática de umbanda na “Casa do J.”.

No processo de releitura de meus dados de campo, foi possível identificar que os membros da “Casa do J.” possuem um discurso sobre essa questão até relativamente elaborado – em vista do eu podia perceber num primeiro momento – o que evidencia

196 consciência por parte dos “praticantes das estratégias” a respeito dessas especificidades de certas ações. Acredito que isso se deva ao fato de que a noção de “estratégia” diz respeito à existência de intencionalidades que permeiam o cotidiano e que regulam a maneira com a qual as pessoas interagem e a forma de lidar mais diretamente com situações de aprendizagem. Tais ações criam um quadro de orientação de conjunto que é muito incisivo a ponto de que ele dá sentido (cria um vetor de ação) que orienta toda a experiência vivida no terreiro, inclusive os mínimos gestos cotidianos.

Não obstante, antes de prosseguir com a análise, é preciso deixar claro que se estou insistindo em mostrar o lado intencional das ações cotidianas de suporte à aprendizagem é para evidenciar sua recorrência, sua força e seu potencial de regulação de toda a organização da prática umbandista. Porém, ao mesmo tempo, é preciso destacar a sutileza e fluidez da ocorrência de tais ações – características que se devem justamente à sua condição circunstancial, mas também regular e freqüente – o que as tornam parte da própria vivência da religião.

O fato de eu ter me apercebido da dimensão estratégica somente a partir de uma determinada situação de interação com um dos meus anfitriões e em ocasião de uma entrevista, tornou ainda mais evidente para mim que, embora recorrentes e potentes, essas ações são, em certa medida e para alguns, “invisíveis” no sentido de que são absolutamente corriqueiras e dadas como óbvias ou naturais pelos sujeitos envolvidos.143

Conforme as várias citações de dados de campo que passarei a apresentar evidenciam, a fala de Al. foi mais uma dentre outras situações em que os umbandistas fizeram referência, verbal ou não verbal, à idéia de “estratégias de aprendizagem”. Porém, foi preciso que eu estivesse instrumental e teoricamente informada, mas acima de tudo foi preciso que eu chegasse a ser simbólica e misticamente “afetada” para conseguir percebê-las.

Portanto, ao tratar das pequenas ações cotidianas que direta ou indiretamente dão suporte à aprendizagem da e na umbanda, estou falando de algo que é intencional, mas que só cheguei a perceber com o tempo e devido à intensidade de minha imersão no

143 Para mim, na condição de pesquisadora, a identificação da dimensão estratégica presente no cotidiano

da “Casa do J.” se mostrou uma tarefa bastante difícil. Foi preciso quase três anos para que eu chegasse a conseguir identificá-las e acredito que só cheguei a isso após adquirir uma sensibilidade que envolve questões que vão muito além do desenvolvimento e uso de procedimentos metodológicos “adequados”.

197 campo. Só depois de conseguir “polir” os meus instrumentos de sensibilidade, tanto em níveis simbólico, espiritual, visual e também corporal é que fui capaz de me dar conta da quantidade de aspectos de “natureza estratégica” em que meus anfitriões de movem, falam e agem no processo de se produzirem umbandistas.

Senti necessidade de trazer essas questões nesse ponto do texto para explicitar a dificuldade que encontrei ao organizar o presente capítulo em específico. No intuito de trazer para o registro etnográfico essas vivências, o processo de escrita se mostrou uma tarefa muito árida, ineficaz e até inadequada para dar conta de sua riqueza. E buscando dar conta de tratar adequadamente essa dimensão da aprendizagem na e da umbanda que eu assumi aqui, como categoria analítica, a noção nativa de “estratégia”.

Surgindo como resposta/reação produzidas pelos próprios médiuns às diferentes demandadas apresentadas a eles no cumprimento de suas atividades religiosas, suas estratégias de aprendizagem servem para “acelerar” ou “facilitar” seu acesso e compreensão dos fundamentos e prática umbandista. Pode-se dizer que se trata de um

modus operandi peculiar que se diferencia das outras disposições e enquadramentos até

aqui discutidos porque assumem contornos de ação direta, ou se referem ao que os membros da “Casa” lançam mão deliberadamente com o intuito de aprender (ou aprender mais rápido) tudo aqui que julgam necessário a sua adequada produção como umbandista.

Refletindo sobre esses aspectos da prática de umbanda, e levando em conta os aportes teóricos, confrontei-me mais uma vez com a impossibilidade de identificar qualquer tipo de ensino dessas formas específicas de atuação. Ou seja, a utilização das “estratégias de aprendizagem” que fazem parte do repertório partilhado entre os umbandistas não decorre do seu ensino explícito, mas sim da visibilidade (para quem é “de dentro”) que tais ações vão assumindo no dia a dia do terreiro.

Jean Lave e Etienne Wenger (1991) sugerem que para o avanço das pesquisas realizadas na perspectiva da aprendizagem situada é preciso deixar de aceitar o modelo da transmissão cultural que caracteriza o aprendizado como uma reação passiva ao ensino. Para os autores essa posição torna difícil examinar as várias fontes de

organização do aprendizado e também impedem a construção de modelos comparativos

de educação que só se tornam viáveis quando os processos básicos são tomados como aprendizados e não como ensino.

198 Como Al. evidenciou, o repertório musical144 da religião exemplifica bem isso, pois no universo do terreiro ele assume um lugar importante na aquisição de saberes, configurando-se como um meio/método de aprendizagem. Na “Casa do J.” não há qualquer tipo de sistematização, discurso ou explicação elaborados sobre os significados dos “pontos cantados”, cabendo a cada um captar e interpretar, a seu modo, os princípios religiosos neles implícitos.

Compreendi que as ações diretas e indiretas de suporte à aprendizagem produzidas e compartilhadas pelos membros da “Casa do J.” não configuravam como parte dos princípios ou dogmas da umbanda de maneira geral ou um modo de agir próprio dos umbandistas. Mas sim deveria ser entendida como resultado da organização e estruturação da participação na prática religiosa vivenciada cotidianamente naquele terreiro específico.

Contudo, se as “estratégias de aprendizagem” devem ser compreendidas como produto, não se deve esquecer que elas são também produtoras daquilo que particularmente caracteriza e define a “Casa do J.”. Isso porque se é possível dizer que as circunstâncias que lhes foram impostas e que demarcaram as bases sobre as quais tais “estratégias” tiveram que ser construídas, estas também deixam marcas e modificam o contexto.

Tal constatação me levou a procurar perceber melhor o que é que, na rotina do terreiro, os meus anfitriões nomeiam como “estratégias de aprendizagem” e como estas se inter-relacionam com outras aprendizagens inerentes ao processo de vir a “ser umbandista”. Com esse intuito, considerei pertinente formular problematizações como estas: há algum tipo específico de interação (falas, conversas e silêncios ) que possa ser classificado a partir da categoria nativa de estratégia? De que maneira é possível compreender o lugar que as trocas entre pares ocupam nos processos de aprendizagem em tal contexto? Qual o papel, por exemplo, de ações como observar e da imitar na construção do conhecimento na “Casa do J.”?

Conforme pretendo discorrer nesse capítulo a aprendizagem da e na umbanda pode acontecer observando como os outros fazem, espiando seus gestos e suas respostas às instruções dos mais experientes, copiando sua rotina, imitando-os de modo mais ou menos consciente. Todavia, sobre essa questão acredito ser pertinente fazer com relação

144 Devido aos objetivos e limites desse trabalho não foi possível explorar a riqueza material e simbólica

199 à aprendizagem (na) umbanda a mesma ressalva que Loïc Wacquant, (2002)145 fez em seu estudo sobre o processo de aprendizagem de boxe: só é possível compreender verdadeiramente o que os outros fazem quando isso já foi, de certo modo, compreendido com todos os sentidos (visão, audição, olfato, paladar e tato). Ou seja, é necessário ter acesso ao ambiente cultural da comunidade e suas atividades com significado próprio.

Tal como ocorre em todas as outras formas de acesso à prática umbandista, também na intrincada relação entre o uso e a compreensão das pequenas ações cotidianas que dão suporte à aprendizagem existe dualidade. Sem um espaço-tempo específico, sem a presença de um mestre ou professor, as estratégias produzidas pelos umbandistas são práticas fluídas, difusas que conjugam aspectos aparentemente inconciliáveis: a aprendizagem se dá de forma intensa e, ao mesmo tempo, opaca, porque fora das situações de ensino, a aprendizagem tem pouca visibilidade.

Para refletir sobre essa questão que diz respeito ao acesso às estratégias de aprendizagem cotidianamente produzidas e reproduzidas pelos próprios membros a “Casa do J.”, mais uma vez recorro a Jean Lave e Etienne Wenger (1991) agora me valendo do conceito de transparência. A metáfora da “janela” (1991:103) utilizada pelos autores me pareceu bastante sugestiva para pensar essas questões específicas da prática de meus anfitriões. Existe uma dualidade interessante inerente ao conceito de

transparência que combina características de invisibilidade e de visibilidade: invisível

no que diz respeito às formas de interpretação e integração não problemática nas atividades, e visibilidade quando se pensa nos meios de que se lança mão para se ter acesso mais amplo ao conhecimento.

Pode ser útil para dar sentido a essa interação fazer analogia a uma janela. A invisibilidade de uma janela é o que faz dela uma janela, ou seja, um objeto através do qual o mundo exterior é visível. Mas o fato de que muitas coisas podem ser vistas através dela, faz da própria janela altamente visível, à mostra, e é bem evidente em uma sala, quando comparada com, digamos, uma parede sólida. (Lave e Wenger: 1991: 103).

145 O livro “Corpo e Alma: notas etnográficas sobre um aprendiz de boxe” de Wacquant (2002) se

mostrou profícuo no processo de escrita deste trabalho, ora pela proximidade na abordagem da questão da aprendizagem, ora para evidenciar diferenças que marcam os contextos da prática esportiva e da prática religiosa.

200 Pensemos no caso da “Casa do J.”: a janela (uma “gira”, por exemplo) deixa ver

através dela (porque é transparente) algo (a prática umbandista), e também torna

visíveis os elementos de que é feita (objetos, sons, ações e seres sagrados146) ao mesmo tempo em que dá visibilidade à parede em que essa janela está colocada (a religião em si). O que dá visibilidade aos fundamentos e preceitos da religião é a invisibilidade da suas formas. É o fato das formas serem transparentes (ou seja, apresentam acesso não problemáticas, são acessíveis) que permite ver o outro lado (seus sentidos e significados).

Para haver aprendizagem é preciso, portanto que o ambiente cultural da comunidade de prática seja transparente como uma janela, ou seja, com a dualidade inerente ao conceito – vê-se o mundo através da janela, porque ela é invisível, mas a sua transparência torna-se visível porque, ao contrário da solidez da parede em que está, permite ver do outro lado.

O ambiente cultural da “Casa do J.” é invisível e por isso permite ver, através dele, as práticas e o conhecimento construídos e aprendidos cotidianamente por seus membros. No entanto, pela variedade de atividades, o ambiente cultural evidencia a necessidade de tornar visível a organização das práticas. Organizar/estruturar as atividades será, então, a forma de se tornar visível, ou não, os saberes e práticas que dão sentido a existência da comunidade.

Sendo assim, a noção de transparência me parece bastante profícua para pensar sobre as formas de acesso à compreensão da prática, como por exemplo, as “estratégias de aprendizagem” desenvolvidas por meus anfitriões. De fato a atividade religiosa e a seu entendimento não são separados ou separáveis, mas estão dialeticamente relacionadas. Os ogãs, por exemplo, não tem acesso somente às rotinas que dizem respeito diretamente a sua função ou aos instrumentos musicais que tocam. Eles também participam do fluxo de informações e conhecimentos num contexto no qual podem construir sentido ao que ouvem e vêem.

Entretanto, entender o uso e o significado de uma determinada ação de suporte à aprendizagem – que são codificados no terreiro em questão na forma de “estratégias” que podem ser mais ou menos transparentes – e as formas de percebê-los e manipulá-

146 Tentei resumir em poucas palavras a variedade de elementos que compõem uma “gira”: velas,

atabaques, pontos cantados e tocados, passes, atendimento a assistência, médiuns e seus guias espirituais, dentre outros.