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tem 29 anos, é solteiro, possui o Ensino Médio completo e trabalha

4.2 Múltiplos modos de participar

K. tem 29 anos, é solteiro, possui o Ensino Médio completo e trabalha

atualmente como office-boy. Sua agilidade como motoqueiro lhe rendeu destaque em seu trabalho de “entregas-rápidas” e muitas brincadeiras entre seus companheiros na “Casa do J.”118. Vizinho e amigo de infância de G.S. e Al., ele chegou ao terreiro quase que simultaneamente a este último, ou seja, por volta do ano de 2005. Desde então vem desenvolvendo sua “missão” como ogã, mas ainda não foi “suspenso”.

K. é muito franzino para sua idade, tendo uma aparência adolescente, quase infantil e apresenta uma certa dificuldade de fala. Mas nas rotinas do terreiro é extremamente dinâmico (“elétrico”, como Pai J. gosta de dizer), circulando por todo o barracão atento aos menores sinais que possam lhe indicar uma oportunidade de ação.

O seu entusiasmo é notável, e foi justamente isso que o fez se tornar rapidamente um membro muito querido por todos da “Casa”, reconhecido por seus pares como um bom companheiro, sempre comprometido e alegre. Mas, apesar de seu grande empenho, K. demonstra não ter a mesma habilidade que seus pares ogãs, sendo até mesmo menos habilidoso do que alguns umbandistas recém-chegados à “Casa do J.”. Por essa razão, não demorei a perceber que, muitas vezes durante as cerimônias e rituais, ele se aproxima das entidades que “baixavam” no terreiro ou se posiciona junto aos atabaques completamente sem saber o que fazer. Não obstante, o que quero destacar aqui é justamente o fato de que seu modo de atuar nas diferentes rotinas da “Casa do J.” tornava quase imperceptíveis as suas dificuldades em realizar sua função religiosa.

Identifiquei que K. freqüentemente é auxiliado por alguém, sendo que quase sempre este auxílio vem de G.S. ou Al.. Nas situações em que se percebe em maiores dificuldades, ele tenta ser o mais discreto possível, procurando, por exemplo, servir as entidades que se encontravam mais ao fundo do barracão ou esperando que um outro ogã “puxasse o ponto”para que pudesse imitá-lo. Apesar de primar pela discrição, e de concentrar seus pedidos de ajuda em apenas duas pessoas (G. e Al.), K. não esconde suas dificuldades dos outros membros da “Casa” e nem da assistência.

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“É por isso que os exus gostam do K.. Ele trabalha de mensageiro e é rápido como eles”; “Eu vou pegar carona com você, mas se a gente cair, você vai ter que se ver com o meu santo”; Você é rápido, mas o orixá é mais”; “Eu acho que o K. corre tanto é pra ver se o santo dele não vê e esquece de cobrar suas obrigações ”; “Eu falei pro K. assim: você corre a 120, mas seu santo corre a 1000 por hora. Agora eu tô com medo dele querer voar com aquela motoquinha dele”.

150 Os ogãs dizem, geralmente em tom de brincadeira, que essa insegurança apresentada por K. se deve ao “medo” que este sente com relação a possíveis “castigos” que pode vir a receber dos orixás e das entidades se cometer algum erro grave. E quanto a Pai J.? Será que ele sabe dessas dificuldades de K.? E que importância isso adquire na forma como o considerava enquanto membro da “Casa”?

Certa vez, comentei com Pai J. sobre as dificuldades que eu havia percebi em K. e ele foi bastante enfático em afirmar que o rapaz iria aprender, pois não considerava as tais dificuldades nem inultrapassáveis nem comprometedoras. Como referi no segundo capítulo desse trabalho, Pai J. tem a convicção de que todos os médiuns, com o tempo, aprendem o que precisam para serem bons umbandistas.

Essa postura do pai-de-santo se confirmou quando em outra ocasião observei que ele encarregou K. da tarefa de ir buscar folhas e galhos de árvore para completar a decoração do barracão para uma Festa de Boiadeiro. A leitura que fiz naquele momento era de que o K. seria o ogã menos aconselhável para tal tarefa, pois era o que corria mais riscos de se enganar. Mas, na lógica daquela comunidade e da relação existente entre os dois (Pai J. e K.), esse risco não existia. O rapaz em termos de honestidade era de total confiança e, além disso, Pai J. sabia que se ele sentisse dificuldades demais em realizar a tarefa não hesitaria em pedir ajuda.

Assim, o mais importante era saber que aquele ogã a quem entregava tal responsabilidade não deixaria de cumpri-la, de um jeito ou de outro. A capacidade de dominar todo o fundamento religioso de tal tarefa não era a questão mais importante na ocasião. O que foi posto à prova referia-se a um saber fazer e um saber ser que estava mais relacionado com certos valores e significados culturais partilhados entre os membros daquela comunidade, do que propriamente com um saber dogmático da umbanda.

K. é, portanto, um médium que, se for observado de um ponto de vista rígido, não possui os saberes para ser considerado um umbandista habilidoso. Mas, do “lado de dentro” da prática, ele era reconhecido como plenamente habilitado (ou “habilitável”) sendo assim possível que lhe sejam atribuídas atividades de certo prestígio na “Casa”. E são esses saberes (que o olhar “de dentro” reconhece em K.) em conjunto com a sua participação engajada e alinhada com os outros naquela comunidade

151 de prática que constituíram os elementos que me fizeram questionar minha leitura inicial de uma possível não-habilidade por parte deste ogã.

É verdade que no período em que realizei a pesquisa ele não dominava todos os aspectos que constituem a prática religião e que caracterizam o repertório que produz um umbandista, mas isso não o impede de desenvolver na “Casa do J.” uma

participação plena. Contudo, para que isso realmente ocorresse, é fundamental a

aceitação (por parte não só dos membros de carne e osso, mas também, e principalmente, dos membros espirituais dessa comunidade) da existência de uma diversidade de saberes e da complementaridade de formas de participação que tornam possível a produção/reprodução da umbanda.

A sua participação nas rotinas do terreiro – lado a lado com todos os outros médiuns, interagindo com as divindades e a assistência – possibilita que ele acesse situações que lhe permitem não só assumir sua função de ogã, mas também se engajar nos empreendimentos fundamentais que sustentam a existência do terreiro.

Enfim, com estes dois casos quis chamar a atenção para a heterogeneidade e a

aceitação da diversidade que me parecem ajudar a caracterizar bem a complexidade dos

modos de participação produzidos na “Casa do J.” – que estou compreendendo como uma comunidade de prática119 – e como esta variabilidade não é vista como ameaçadora nem leva à exclusão da participação.

Por um lado, temos o caso da L., cuja conduta pessoal apresenta aspectos que lhe permitem a conjugação de um aparente baixo empenho na comunidade de prática dos umbandistas, com uma não exclusão dela. Embora não seja o desenvolvimento religioso que a atrai, ela mantém com segurança os laços que a une à “Casa do J.”, participando dos momentos que lhe permitem consolidar o estatuto de pertença à essa comunidade. Mas isso só foi possível porque ela foi capaz de, no cotidiano do terreiro, também contribuir para que essa pertença se efetivasse.

Naquele universo, seu aparente não-alinhamento com os comportamentos esperados de um umbandista , convive com uma percepção sua de quais os argumentos que são aceitos como legítimos para justificar seu modo de participação. Ou seja, ela

119 Lembrando que, como expliquei no capítulo introdutório, quando uso a expressão “Casa do J.” estou

querendo me referir justamente a esse tipo especifico de relações, ou seja, refiro-me a uma comunidade de prática.

152 identifica e usa os critérios de legitimidade da própria prática religiosa – cozinhar e tratar bem a assistência, por exemplo – que lhe garantem a não exclusão da prática.

L. mantém também com os membros da “Casa” um tipo de atuação que lhe permite ser reconhecida internamente como membro: compartilha momentos importantes e alguns dos espaços de vivência comuns, revela a atenção necessária à identificação do que é relevante para a sustentação da prática e da comunidade.

K., por sua vez, consegue participar de uma forma que lhe permite disfarçar as suas dificuldades ou receios (que segundo seus companheiros ogãs diziam se referiam aos mistérios e poderes sobrenaturais que envolvem a umbanda) precisamente através da vivência engajada da parceria. Ele encontrou uma forma de participação no cotidiano da “Casa do J.” que lhe possibilita lidar com suas fragilidades – precisa da ajuda do Al. para realizar algumas atividades – através de uma presença constante e atuante. Desta forma, tal como L., K. apresenta uma participação ativa e relevante para a existência e manutenção da comunidade e da prática dos umbandistas.

Ao pensarmos nos três casos focalizados neste capítulo – Ad., L. e K. – o que me parece mais fortemente distinto é que, enquanto o primeiro apresenta uma

resistência inicial ao engajamento, mas que progressivamente evolui para uma efetiva

pertença, eu não percebia ou não eram tão claras as mudanças nos dois últimos. Isto fez com que, para mim, durante bastante tempo suas participações parecessem de certa forma “inconsistentes”, ou para usar o termo de Lave e Wenger, periféricas demais.

Mesmo depois de passado um ano do início de minhas observações na “Casa de J.”, L. e K. não me pareciam modificar sua forma de participação e ou mudar seus lugares dentro da comunidade. Quando comparava suas atuações com o que identifiquei como sendo o repertório partilhado entre os umbandistas da “Casa”, para mim eles mantinham o mesmo comportamento e nível de conhecimento, denotando uma certa “descontinuidade” com os demais membros.

Entretanto, não pude ignorar que eles eram legitimamente reconhecidos como “filhos da Casa”, quer do ponto de vista deles próprios, quer dos outros umbandistas e também por parte de Pai J., revelando uma pertença completa. Da análise de mudança de comportamento destes três umbandistas – Ad., L. e K. – acredito ser possível concluir que há uma relação íntima entre o desenvolvimento da noção de pertença a uma comunidade e a participação na prática que constituiu tal comunidade. É possível

153 concluir também que os três, bem como todos os outros membros “Casa”, acabaram

produzindo sua identidade umbandista, porém cada um encontrou, dentro do

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CAPÍTULO V

“É noite escura, acenda a vela É noite escura, acenda a vela Sete Coroas é o bamba da favela É malandrinho não precisa trabalhar Sete Coroas manda alguém no seu lugar”

ENTRE DEUSES E HOMENS: