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5. ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA

5.1 A ARQUEOGENEALOGIA: UM OLHAR SOBRE A DEFICIÊNCIA

Esta pesquisa terá como norte uma perspectiva arqueogenealógica foucaultiana como procedimento teórico-metodológico, visando analisar discursivamente o percurso acadêmico dos estudantes com deficiência no ensino superior a partir de uma perspectiva de cuidado de si de Michel Foucault.

É importante ressaltar, como demostra Veiga-Neto (2009), a dificuldade em se estabelecer um entendimento de método e teoria nos estudos de Foucault se considerar uma perspectiva rígida desses conceitos. Ainda, segundo o autor, para Foucault o método não demonstra um caminho seguro, previsível, tampouco aponta um ponto de chegada. Tal formalismo metodológico não se aplica à flexibilidade encontrada no conjunto de práticas investigativas propostas por Foucault. Assim, como os conceitos foucaultianos passam por inúmeras transformações e deslocamentos durante a sua obra, poder-se-ia observar por meio desse prisma rígido que essas mutações implicariam uma inexistência de teoria ou método. Contudo, se analisarmos de forma mais ampla, podemos dizer que há, sim, métodos e teorias que permeiam o pensamento de Foucault.

Ressalto que essa compreensão arqueogenealogica visa romper com a separação entre arqueologia e genealogia em Foucault, uma vez que uma não se sobrepõe a outra. Enquanto a arqueologia está mais enraizada no campo do saber, tendo como objetivo compreender como determinados domínios de saberes estruturaram formações discursivas em dado tempo histórico acerca de um objeto, a genealogia irá se ocupar criticamente das relações de poder que incidem sobre esses saberes e discursos em relação a práticas não discursivas. Por esse motivo, podemos considerar que Foucault estabeleceu no decorrer de suas obras uma arqueogenealogia, pois mesmo em sua fase genealógica continuou a examinar as formações discursivas, visto que seu tema central não era o poder, mas o sujeito. As práticas discursivas são analisadas pela genealogia a fim de observar como essas práticas possuem um caráter normalizador, disciplinador e medicalizador. Nesse sentido, a arqueologia e genealogia se complementam, uma não está em posição superior à outra, ou em grau de importância maior (ARAÚJO, 2004). Portanto, para melhor compreensão desses conceitos e suas inter-relações, serão apresentadas em um primeiro momento a concepção de arqueologia e, posteriormente, o que se entende por genealogia.

Os códigos fundamentais de uma cultura que permeiam e determinam a linguagem, seus esquemas perceptivos, suas técnicas respondem a uma ordem estrutural como menciona Foucault (2000, p. XVI):

A ordem é ao mesmo tempo aquilo que se oferece nas coisas como sua lei interior, a rede secreta segundo a qual elas se olham de algum modo umas às outras e aquilo que só existe através do crivo de um olhar, de uma atenção, de uma linguagem; e é somente nas casas brancas desse quadriculado que ela se manifesta em profundidade como já presente, esperando em silêncio o momento de ser enunciada.

Essa afirmação dá a ideia de como a ordem forma os objetos, produz os indivíduos, a maneira de ser, e a respeito do que se fala, tutelando as relações e os lugares, possuindo um caráter inconsciente, incidindo sobre as possibilidades de experiência. Nesse sentido, os discursos também obedecem a essa ordem. Para Foucault (2008a), a noção de discurso pode ser entendida como uma representação culturalmente construída da realidade, um conjunto de enunciados que se apoia em um sistema de formação próprio. O sujeito é produzido pelo discurso, e o discurso constitui conhecimento, inclui e exclui, avalizando o que pode ou não ser dito.

Uma arqueologia busca descrever o ordenamento que regem as dispersões dos enunciados que fazem parte desse discurso, buscando identificar as articulações entre as práticas discursivas e não discursivas que estão em relação de exterioridade com o discurso como as condições econômicas, sociais, políticas e culturais (FOUCAULT, 2008a). Nesse contexto, pode-se dizer que a arqueologia:

Busca definir não os pensamentos, as representações, as imagens, os temas, as obsessões que se ocultam ou se manifestam nos discursos, mas os próprios discursos, enquanto práticas que obedecem a regras. Ela não trata o discurso como documento, como signo de outra coisa, como elemento que deveria ser transparente, mas cuja opacidade importuna é preciso atravessar frequentemente para reencontrar, enfim, aí onde se mantém à parte, a profundidade do essencial; ela se dirige ao discurso em seu volume próprio, na qualidade de monumento. Não se trata de uma disciplina interpretativa: não busca um "outro discurso" mais oculto. Recusa-se a ser "alegórica. (FOUCAULT, 2008a, p. 157).

Desse modo, a arqueologia procura definir os discursos em sua singularidade, mostrar como esse ordenamento estrutural se torna soberano a qualquer outro, por meio de um emaranhado de saberes. Tenta descrever como o discurso vem a ser o que é, não refletindo sobre o que motivou o seu enunciado. Atenta-se ao contexto formulativo do discurso, desviando de qualquer olhar hermenêutico sobre ele (FOUCAULT, 2008a).

Assim, a arqueologia não visa buscar encontrar a origem do conhecimento, pois colocá-la em um constructo epistemológico seria afastá-la de seu propósito de escavar verticalmente as camadas dos discursos que já foram pronunciados, de ir ao passado não para julgá-lo, mas para compreender o presente, de como dada questão emerge com mais veemência sobre a outra em determinado contexto histórico.

Nesse ponto, é relevante trazer a concepção de Foucault acerca do que convenciona de epistémê. Esse conceito está relacionado a um espaço de ordenação dos saberes que determina as possibilidades de conhecimento em um período histórico. Observamos na busca por uma epistémê, por meio de uma arqueologia, em qual ambiente de ordem se construiu determinado saber, na edificação de qual a priori histórico e em que esfera de positividade deliberadas ideias se tornaram ciências, formando certas racionalidades (FOUCAULT, 2000).

Desse modo, Foucault (2000) menciona que entre o olhar que já fora codificado e o conhecimento reflexivo, existe uma região mediana que liberta a ordem. É nessa região mediana entre os modos de uso daquilo que se convenciona códigos ordenadores e a reflexão sobre a ordem, que se expressa os modos de ser da ordem e “há a experiência nua” da mesma. Ainda segundo Foucault (2000, p. XVIII- XIX):

Não se tratará, portanto, de conhecimentos descritos no seu progresso em direção a uma objetividade na qual nossa ciência de hoje pudesse enfim se reconhecer; o que se quer trazer à luz é o campo epistemológico, a epistémê onde os conhecimentos, encarados fora de qualquer critério referente a seu valor racional ou a suas formas objetivas, enraízam sua positividade e manifestam assim uma história que não é a de sua perfeição crescente, mas, antes, a de suas condições de possibilidade; neste relato, o que deve aparecer são, no espaço do saber, as configurações que deram lugar às formas diversas do conhecimento empírico. Mais que de uma história no sentido tradicional da palavra, trata-se de uma “arqueologia”.

Diante desse contexto, as análises sobre as formações dos discursos, as positividades e saberes em sua relação com as competências epistemológicas e ciências pode ser denominada de análise da epistémê. Utiliza esse termo para evidenciar a distinção de outras formas possíveis de história das ciências. Dessa maneira, a epistémê pode ser concebida como um olhar sobre o mundo, uma parte da história que é habitual a todos os conhecimentos e que instituiria a cada um deles, um conjunto de normativas e de estrutura de pensamentos. Por essas considerações, podemos entender a epistémê como o conjunto das relações que podem unificar as práticas discursivas em um dado período histórico, as quais abrem espaço a figuras epistemológicas, à ciência e em certo grau a sistemas formalizados. A epistémê configura uma rede discursiva baseada na dispersão, no jogo das relações entre as ciências, tornando-se um a priori histórico para algumas práticas discursivas (FOUCAULT, 2008a).

Se a arqueologia visa descrever as ordens estruturais a partir dos saberes instituídos, a genealogia irá analisar os mecanismos de poder que estão presentes nos discursos, e que auxiliam nessa produção do sujeito.

Contudo, a genealogia não almeja a busca simples pela origem, mas está mais atenta ao processo que se dá na tentativa de encontrar uma determinada gênese. Para Foucault, a genealogia tem como premissa:

Marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda finalidade monótona; espreitá−los lá onde menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo história − os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos; apreender seu retorno não para traçar a curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes cenas onde eles desempenharam papéis distintos; e até definir o ponto de sua lacuna, o momento em que eles não aconteceram. (FOUCAULT, 1998, p. 15).

É possível entender, então, que a genealogia não visa se debruçar por uma origem estanque ou conceber a história como um processo meramente natural de evolução. Ela é um instrumento minucioso de entendimento acerca do poder, dos processos de ruptura, de como se cristalizaram certos saberes e conhecimentos.

A genealogia deve observar a história dentro de seu processo de funcionamento, em sua própria materialidade. Para Foucault (1998), tentar encontrar uma origem é intentar reencontrar o que era imediato, o “aquilo mesmo”. O instrumento genealógico deseja retirar todas as máscaras para descortinar uma identidade originária.

A busca em retornar a um passado não está na tentativa de repará-lo ou olhá-lo com as lentes do presente. Ela auxilia a identificar as inconstâncias:

[...] demarcar os acidentes, os ínfimos desvios − ou ao contrário as inversões completas − os erros, as falhas na apreciação, os maus cálculos que deram nascimento ao que existe e tem valor para nós; é descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos − não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente (FOUCAULT, 1998, p. 21).

Esse entendimento genealógico elencado acima conduz a reflexão durante a pesquisa e, como pesquisador com deficiência física, como se deu este processo histórico de ruptura que originou o conceito de anormalidade, de corpo deficiente, de educação inclusiva. E nesse processo arqueogenealogico tentar construir outros espaços discursivos de fortalecimento do “ser deficiente” que por ventura esta pesquisa possa propiciar.

Diante do exposto, procuro identificar as proveniências, o que Foucault se utilizou da compreensão que Nietzsche chama de Herkunft, como possibilidade para a emergência (Estestebung) daquilo que se é falado, refletido e transformado em ação. Podemos dizer que a

proveniência é uma investigação por terrenos instáveis, fragmentos e incoerências sobre aquilo que a história tradicional por vezes excluiu. A emergência remete ao que emerge em um determinado contexto histórico, dentro de uma determinada possibilidade, atentando para, o que já fora mencionado aqui, não colocar nessa história uma ideia de presente (FOUCAULT, 1998).

Portanto, não é pretensão da arqueologia, tampouco da genealogia constituírem-se como campos teórico-metodológicos puramente sistemático e científico, o que elas propõem quando em conjunto é analisar a partir de uma concepção transformadora, metamorforsiante, não baseando seu lócus de atuação na busca de uma origem, lei universal ou uma essência fixa (VEIGA-NETO, 2007).