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6. ENTRE VERDADES, AGONÍSMOS E SUBJETIVAÇÕES: A CONSTITUIÇÃO DA

6.1 PERSPECTIVA HISTÓRICA

6.1.2 O NEOLIBERALISMO DÁ A LUZ AO SEU REBENTO: O CREEP

Anteriormente busquei observar de que forma ocorrera a modificação de uma sociedade disciplinar para uma outra forma de controle e de governamento atrelada à biopolitica no estado neoliberal e seus dispositivos de biopoder vigentes na contemporaneidade, alicerçados em uma conceituação foucaultiana. A partir desse momento, o foco estará em contextualizar um tanto mais essa sociedade neoliberal na perspectiva do presente, possibilitando a emergência de uma experiência creep em nossos tempos.

Para Han, (2017), a sociedade do século XXI é uma sociedade do desempenho, essa concepção visa dar segmento à noção de empresário de si, ampliando alguns aspectos que não foram possíveis por Foucault. O autor delimita um marco para tal transformação. A transitoriedade de “sujeitos de obediência” para “sujeitos de desempenho”.

Desse modo, a sociedade de desempenho vai se afastando paulatinamente dos efeitos do “não”. A desregulamentação contínua do mercado e o poder ilimitado vão repolarizando a atmosfera antes negativa, transformando-a em uma voluptuosa positividade. Um dos exemplos dessa era da positividade na sociedade do desempenho. É a afirmação construída para a campanha eleitoral de Barack Obama em 2008, Yes, we can e que rapidamente se espalhou para além do marketing político. No lugar de proibir, somos conduzidos ao sim, recebemos doses cavalares de motivação e de que é possível, basta ter iniciativa e um projeto minimamente coerente com a lógica mercadológica do viver. Outra diferença significativa está no produto final gerado pelas sociedades disciplinar e de desempenho. Enquanto uma produz loucos e delinquentes, a outra produz depressivos e fracassados (HAN, 2017).

Como observado anteriormente a necessidade de uma transformação da sociedade disciplinar para uma sociedade do desempenho se deu entre outras coisas, porque a sociedade disciplinar nos moldes que ela se estruturou, alicerçada na proibição e na obediência, limita a

expansão produtiva por meio da otimização do viver. Indispensável para a afirmação desse neoliberalismo contemporâneo, ou se assim podemos chamar esse capitalismo tardio que deseja quase que obstinadamente acabar com o sono (e por consequência a capacidade de sonhar e imaginar, intrínseca ao indivíduo dotado de humanidade) visando à constituição de um sistema 24/7 como apontado por Crary (2016), em seu ensaio intitulado: “24/7 Capitalismo Tardio e os Fins do Sono”

Nesse sistema “24/7”, o ser humano tornou-se ele próprio um obstáculo para o capital e sua voracidade insaciável de acumulação de riquezas. É importante traçar um paralelo entre a sociedade do desempenho e essa tentativa de instaurar um sistema que nos colocaria 24 horas por dia, 7 dias por semana, conectados, hiperativos, dispostos a sempre produzir mais para que, assim, estejamos inseridos no constructo social (CRARY, 2016).

Destarte, a positividade como poder10 (aquilo que se pode fazer) é mais potente que a negatividade do dever. O sujeito imbricado no enunciado discursivo do poder se torna mais célere e produtivo do que o sujeito do dever, que tem como princípio obedecer. Todavia, o poder não anula por completo o dever. O ser otimizado ainda é um sujeito disciplinado. O poder tem sua serventia na elevação do nível de produtividade que só pode existir por meio de uma intenção que permeia as técnicas disciplinares, o imperativo do dever. Então, temos o dever como dispositivo que dispara a intencionalidade de uma ação produtiva. Nesta lógica, apropriar- se de si mesmo, tomando sempre a iniciativa pessoal como desencadeadora das práxis da existência, os esforços concentrados em ser nós mesmos gera um esgotamento do indivíduo.

Nas palavras de Han (2017, p. 29-30), o sujeito da sociedade do desempenho encontra- se:

[...] livre da instância externa de domínio que o obriga a trabalhar ou que poderia explorá-lo. É senhor e soberano de si mesmo. Assim, não está submisso a ninguém ou esta submisso apenas a si mesmo. É nisso que ele se distingue do sujeito de obediência. A queda da instância dominadora não leva à liberdade. Ao contrário, faz com que liberdade e coação coincidam. Assim, o sujeito de desempenho se entrega à liberdade coercitiva ou à livre coerção de maximizar o desempenho. O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração. Essa é mais eficiente que uma exploração do outro, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade. O explorador é ao mesmo tempo o explorado. Agressor e vítima não podem mais ser distinguidos. Essa autorreferencialidade gera uma liberdade paradoxal que, em virtude das estruturas coercitivas que lhe são inerentes, se transforma em violência. Os adoecimentos psíquicos da sociedade desempenho são precisamente as manifestações patológicas dessa liberdade paradoxal.

10 Entendo por poder aquilo que se pode fazer, no sentido de poder fazer algo, característica da positividade

contemporânea. Nada tem a ver com as relações de poder preconizadas por Foucault. Por esse motivo ela aparece em itálico, para que não ocorra interpretações equivocadas desta expressão.

Nesse contexto de autorregulação e definhamento do humano, de acordo com Crary (2016), o sono consiste na última barreira a ser transposta para virada do orgânico em pós- orgânico. Ainda segundo o autor, os EUA vêm investindo consideravelmente em pesquisas que buscam tornar concreto o “sonho” do estableshiment em produzir um soldado que não tenha a necessidade biológica de dormir. Estaríamos prestes a ver também um trabalhador ou consumidor sem sono. Os “fins do sono” significa uma diminuição da vitalidade, em vista de, um trabalho intensamente precarizado.

A própria formação no ensino superior está centrada nesta lógica. Segundo Dalbosco (2015), os contextos mundiais que orbitam a educação superior tendem a uma redução significativa do espaço destinado a disciplinas humanistas, em face a uma educação especializada de cunho tecnicista. Nas palavras de Dalbosco (2015, p. 128), movida pela lógica mercantilista global:

[...] a educação mundial assume a ideia de que para manter a competitividade no mercado e, por sua vez, para poder formar profissionais competitivos, ela precisa dispensar as humanidades, enfatizando cada vez mais a formação tecnológica. É no contexto dessa tendência mundial mais ampla que devemos inserir o predomínio, no âmbito educacional brasileiro, da pedagogia das competências e da problemática que lhe é inerente, a saber, de reduzir a idéia de formação humana ao desenvolvimento das habilidades e competências do educando.5 Também é nesse âmbito que precisamos aprofundar a reflexão sobre a formação oferecida pelos nascentes Institutos Federais de Educação às novas gerações, ampliando-a para além da esfera estritamente tecnológica.

Para Dardot e Laval (2016) a conjuntura neoliberal que vivenciamos centraliza as práticas formativas em torno de uma áurea empreendedora. Os dispositivos de subjetivação, dessa forma, conformam-se a produzir cada vez com maior intensidade esse “sujeito empresarial”. Segundo os autores, estamos falando de um modo de governar-se que prima pela competência e competitividade, com vistas a otimizar as esferas que concernem a sua existência, exercendo um trabalho sobre si, na intenção de transformar-se constantemente, por meio de um paradigma de educação e formação humana, que adentra uma concepção de “formação por toda a vida” (long life training). Esse seria o ethôs de nossos dias atuais, esculpir- nos para o “sucesso”. Podemos comparar, de certa forma, a empresa de si mesmo a um modo de cuidado de si contemporâneo.

Por esse motivo que utilizo a palavra creep para demarcar essa ruptura na experiência do anormal. A experiência creep difere-se de todas as outras experiências históricas, porque ela circula em espaços outros, outrora destinados aos normais e que o freak do início do capitalismo, por exemplo, não poderia transitar. Mesmo que o creep não pertença a esses

lugares, que a sua presença cause estranheza, desconforto, perturbação, hesitação, diante de sua experiência aberrante, ele é convidado, intimado a adentrar nesses espaços.

A monstruosidade do freak moderno era necessária para que pudéssemos ensinar a norma, a distinção que se fazia evidente entre normal e anormal. Sua espetacularização e seu aparecimento se dava mais a fins de sobrevivência por via do entretenimento, da bizarrice como espetáculo de horrores, a sua circulação e aparição não era bem quista se não fosse dentro desses ditames.

Por esse motivo, ao percorrer toda essa perspectiva histórica, culminando no contexto contemporâneo neoliberal, tornou-se difícil para mim descrever essa experiência, dar corpo e materialidade a ela se não através do creep. Tanto o freak, quanto o creep, são monstros, aberrações, sujeitos que fogem à norma, que escandalizam sua existência. Porém, para que pudéssemos ver o freak, tínhamos que pagar um ingresso, sua aparição estava atrelada a horários, a dias, a cenários bem específicos. O creep anda solto, os palcos são outros, não é necessário ingresso, sua presença aos poucos vem sendo “naturalizada”, “estimulada”, às vezes, diante disso acaba se tornando quase invisível.

Ao contrário de outros momentos históricos, as estratégias de poder/saber, os dispositivos de subjetivação, não se voltam apenas para os creeps, a fim de corrigi-los e normalizá-los, como também atua com maior veemência sobre os normais. A sociedade neoliberal nos necessita, pois se não tivermos incluídos, não podemos ser controlados. E se não somos controlados, a nossa aberração, a nossa experiência escandalosa pode acarretar em riscos para o status quo vigente. A de que possamos modificar as regras dos jogos de verdade instituídos, que acabemos por transgredir mais do que o permitido as linhas limites que situam o nosso campo de ação.

Nesse sentido, minha intenção é evidenciar em que contexto se insere esta pesquisa e, por conseguinte, as análises que virão a seguir: como se constitui esse modo de experiência, quais os processos de subjetivação nos atravessam a partir do exposto. Pretendo observar que esta experiência pode operar uma transgressão, uma transformação dos campos de experiência, criando possibilidades outras que não aquelas já cristalizadas pela governamentalidade neoliberal.