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2. A A RTICULAÇÃO DE O RAÇÕES

2.2. A Articulação de orações

Com a utilização dos pressupostos teóricos da Gramática Funcional, percebe-se que a articulação de orações reflete o caráter dinâmico da linguagem, visto que os falantes possuem uma ampla liberdade organizacional na estruturação dos enunciados.

Na vertente funcionalista, a rígida dicotomia entre coordenação e subordinação, baseada na dependência gramatical, é contestada e substituída por uma proposta que focaliza as diferentes possibilidades de relação entre um elemento oracional primário e um secundário. Para Halliday (1994, p.216), as relações entre orações devem ser analisadas em termos de componentes lógicos do sistema lingüístico: as relações semântico-funcionais que constituem a lógica da língua natural. Ele aponta que existem dois tipos de dimensões sistêmicas nessa interpretação: (i) sistema de interdependência, ou sistema tático de parataxe e hipotaxe, que é geral a todos os complexos – palavra, grupo, sintagma e oração; (ii) sistema lógico-semântico de expansão e projeção, que é especificamente uma relação inter-oracional – ou melhor, uma relação entre processos, geralmente (mas não sempre) expressa na gramática como um complexo de orações. O cruzamento desses dois sistemas fornecerá a estrutura funcional para a descrição da oração complexa.

Em termos de grau de interdependência, Halliday (1994, p.218) pontua que a relação de modificação, pela qual um elemento modifica o outro, não é a única conexão que

pode ser estabelecida entre os membros de uma oração complexa. Os elementos podem também ser unidos em uma igualdade de condições e não precisam ser dependentes um do outro. Esse tipo de relação, denominado parataxe, consiste na conexão de dois tipos de elementos de igual status, um que inicia e o outro que continua. Por outro lado, quando um elemento modifica o outro, o status dos dois não é o mesmo; o elemento modificador é dependente do modificado. O termo geral para a relação de modificação é hipotaxe – a relação entre um elemento dependente e seu dominante, o elemento do qual é dependente.

Como exemplo desses dois tipos de relação, transcrevem-se as ocorrências citadas por Neves (2001, p.62-3):

(01) Ele chegou, brincou um pouco, depois ficou sério e começou a perguntar. (BAL)

(02) Não deve ter havido nada porque seria a primeira pessoa a tomar conhecimento disto. (AMI, grifo nosso)

Em (01), as orações independentes são mutuamente relevantes; embora sejam ligadas pelo mesmo contorno entoacional, existe um mínimo de hierarquização. Já em (02), o conjunto de uma oração núcleo e uma oração hipotática apresenta uma hierarquia assentada em bases preferentemente retóricas, não gramaticais.

De acordo com Halliday (1994, p.218), todas as estruturas lógicas na linguagem são (a) paratáticas ou (b) hipotáticas. A oração complexa envolve a relação de ambos os tipos. Para exemplificar seu raciocínio, ele cita (03):

(03) I would if I could, but I can’t.40

Existe uma conexão paratática entre I would if I could e but I can’t, bem como uma relação hipotática entre I would e if I could. Halliday refere-se a qualquer um dos pares

da oração relacionados por interdependência, ou taxe, como um nexo oracional. As orações que constituem tais nexos são primárias ou secundárias, tais como ele esquematiza no quadro abaixo:

Primária Secundária

parataxe Iniciador Continuador

hipotaxe dominante Dependente

QUADRO 10: Orações primárias e secundárias. (HALLIDAY, 1994, p.219)

Segundo Halliday, (1994, p.221), dois outros aspectos diferenciam parataxe e hipotaxe: simetria e transitividade. Em princípio, a relação paratática é logicamente (i) simétrica, pois ‘sal e pimenta’ implica ‘pimenta e sal’; e (ii) transitiva, uma vez que ‘sal e

pimenta’, ‘pimenta e mostarda’ juntos implicam ‘sal e mostarda’.

Por outro lado, a relação hipotática é logicamente (i) não-simétrica, pois ‘Eu

respiro quando durmo’ não implica ‘Eu durmo quando respiro’; e (ii) não-transitiva, uma vez que as orações ‘Eu me preocupo quando tenho de dirigir devagar’ e ‘Eu tenho de dirigir

devagar quando está chovendo’ juntas não implicam ‘Eu me preocupo quando está

chovendo’ (HALLIDAY, 1994, p.221).

Quanto ao sistema lógico-semântico, ele assinala que existe uma gama de relações que podem ser estabelecidas entre o membro primário e o secundário do nexo oracional. Porém, é possível agrupar essas ligações em um número pequeno de tipos gerais, baseados nas duas conexões fundamentais de (1) expansão e (2) projeção:

(1) Expansão: a oração secundária expande a primeira oração, elaborando-a, estendendo-a ou realçando-a.

(2) Projeção: a oração secundária é projetada por meio da primeira oração, que a instancia como uma locução ou como uma idéia. (HALLIDAY, 1994, p.219)

Halliday (1994) exemplifica esses subtipos das categorias gerais de expansão e projeção no quadro abaixo:

(i) paratática (ii) hipotática (a)

elaboração

John didn’t wait; he ran away.

John ran away, which surprised everyone. (b)

extensão

John ran away, and Fred

stayed behind. John ran away whereas Fred stayed behind.

(1 ) E xp an sã o (c) realce

John was scared, so he ran away.

John ran away, because he was scared.

(a) locução

John Said: ‘I’m running

away’. John said he was running away.

(2 ) Pr oj eç ão (b) idéia

John thought to himself: ‘I’ll run away’.

John thought he would run away.

QUADRO 11: Tipos básicos de orações complexas. (HALLIDAY, 1994, p.220)

Neves (2006) apresenta um quadro que organiza, no conjunto dos dois eixos propostos (o “tático” e o “semântico-funcional”), a zona referente à “expansão” e, dentro dela, à expansão de realce (território das adverbiais):

EIXO TÁTICO INTERDEPENDÊNCIA

Parataxe (ou: continuação) - Ambas as orações são elementos livres (cada uma é

um todo funcional). - A segunda oração faz a expansão (ordem fixa)

Hipotaxe (ou: dominação) - Uma oração domina /

modifica a outra (há dependência).

- A oração dominante é livre, a dependente, não. Expansão elaboração = - coordenadas assindéticas* - justapostas - relativas explicativas extensão + - coordenadas sindéticas** (aditivas, alternativas, etc.)

- hipotáticas de adição realce

x (com matiz circunstancial: - falsas coordenadas*** conclusivas, etc.) - adverbiais E IX O S E M A N T IC O - F U N C IO N A L Projeção --- * eneárias e com mobilidade.

** binárias e com pouca / sem mobilidade.

*** coordenação indicando circunstância (semelhante às adverbiais) QUADRO 12: O complexo frasal no subsistema de expansão

A presente pesquisa focaliza justamente o tipo de expansão por realce, por meio da qual uma oração expande outra ao qualificá-la com alguma característica circunstancial de tempo, lugar, causa ou condição. A combinação do eixo tático com o semântico-funcional, mais especificamente, o cruzamento de hipotaxe com realce fornece as orações adverbiais, modo como são classificadas na gramática tradicional. Essas orações, quando finitas, são introduzidas por uma conjunção hipotática que serve para expressar tanto a dependência como a relação circunstancial (tempo, lugar, modo, causa, condição). (HALLIDAY, 1994, p.236)

Dentre os tipos de conjunções complexas, uma merece destaque: a derivada de advérbios – da qual fazem parte as perífrases em exame, agora que e já que. Conforme Halliday (1994, p.238), essa classe de conjunções expressava, em sua origem, um tipo de limitação, um aspecto particular a ser destacado, para o qual uma certa circunstância era válida.

Halliday (1994, p.239) declara que uma oração finita é, em princípio, independente: ela torna-se dependente apenas se introduzida por uma conjunção de união (hipotática). Se ela for ligada a uma oração complexa, seu status natural é mostrado tipicamente por uma conjunção de ligação (paratática). O autor acrescenta que existe uma gradual perda de informação, à medida que as orações tornam-se mais entrelaçadas, que parte da oração independente finita em direção ao sintagma preposicional. Como exemplo, a frase ‘soon you will reach the monument; then continue straight ahead’41, que pode ser expressa das

seguintes maneiras (HALLIDAY, 1994, p.241):

(04) oração (finita) independente: You will reach the monument, …42 (05) oração finita dependente: When you reach the monument, …43 (06) oração dependente não-finita: (On) reaching the monument, ...44

41 Assim que você atingir a estátua, então continue em frente. 42 Você vai atingir a estátua, ...

43 Quando você atingir a estátua, ... 44 Ao atingir a estátua, ...

(07) sintagma preposicional: At the monument, …45

Sobre a explicitude da ligação, Lehmann (1988, p.213) reconhece que a presença ou ausência de um mecanismo coesivo entre as orações não tem a ver com a parataxe vs hipotaxe, mas é exclusivamente uma questão de síndese. Ele apresenta o seguinte continuum de explicitude de ligação:

síndese assíndese oração subordinada anafórica

verbo gerundial

sintagma preposicional

advérbio conectivo

conjunção específica

subordinados universal

forma verbal não-finita

Halliday (1994, p.242) ressalta a importância em diferenciar o encaixamento das relações táticas, pois, enquanto a parataxe e a hipotaxe são relações entre orações, o encaixamento consiste em um mecanismo pelo qual uma oração ou sintagma exerce a função de um constituinte dentro da estrutura de um sintagma, o qual também é um constituinte da oração. Na hipotaxe, uma oração é dependente da outra, mas, de modo algum, é constituinte oracional. Sob o mesmo ponto de vista, Matthiessen e Thompson (1988) afirmam que a oração encaixada não se combina com outra oração, mas funciona como um complemento dela. As tradicionais orações substantivas e relativas restritivas são considerados casos de encaixamento. O exemplo abaixo citado por Neves (2001, p.63) é um caso de encaixamento:

(08) Todo mundo sabe que a infelicidade tira o sono de qualquer pessoa. (AF)

De acordo com Neves (2006), a proposta desses autores a respeito da compreensão de como as orações se organizam em uma frase complexa possui um caráter inaugural.

Matthiessen e Thompson (1988) assumem que a sistematicidade da estrutura gramatical segue a sistematicidade na demanda funcional da língua. Em outras palavras, eles propõem que a combinação de orações pode ser entendida à luz da organização retórica do discurso, no sentido de que os princípios que governam a relação entre as orações não deveriam ser compreendidos como diferentes daqueles que governam o modo como os textos são organizados. Desse modo, como aponta Neves (2006), relações como as de causa, condição e concessão são relações retóricas que existem entre as partes de um texto e que podem gramaticalizar-se na combinação de orações, tanto em relações paratáticas, como em relações hipotáticas.

De uma perspectiva diferente, alguns estudiosos evidenciam o caráter contínuo das diferenças que separam as diversas relações entre orações. Por exemplo, para Hopper e Traugott (1993), a articulação de orações pode ser considerada como um cline unidirecional, que parte de justaposições, relativamente livres, em direção à junção sintática e morfológica dentro de uma estrutura com alto grau de gramaticalização. Segundo os autores, pode-se pensar em um continuum, com os seguintes pontos:

(a) Parataxe: relativa independência, exceto pelos limites pragmáticos de “fazer sentido” e relevância;

(b) Hipotaxe (ou interdependência): núcleo e uma ou mais orações que não se sustentam sozinhas, e são, por esse motivo, dependentes. No entanto, elas não são totalmente incluídas dentro de qualquer constituinte do núcleo;

(c) Subordinação (em sua forma extrema, encaixamento): dependência completa, em que uma margem é totalmente incluída dentro de um constituinte nuclear. (p.169-70)

O trajeto de gramaticalização da articulação de orações é ilustrado, por Hopper e Traugott (1993, p.170) pelo seguinte cline, elaborado pela combinação das características +/– dependente e +/– encaixada:

Parataxe Hipotaxe Subordinação

– dependente + dependente + dependente

– encaixada – encaixada + encaixada

QUADRO 13: Cline de gramaticalização de orações.

Tendo em vista essas considerações, concorda-se com a posição de Decat (1999, p.311), segundo a qual o que importa não é classificar uma cláusula como adverbial, como subordinada ou como dependente. Importa, sim, reconhecer a capacidade de ela se combinar com outras, refletindo uma propriedade organizacional básica do discurso em geral, que é a articulação para formação de discurso coesivo e coerente.