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1. F UNDAMENTAÇÃO T EÓRICA

1.2. Concepções de Gramaticalização

1.2.7. Eve Sweetser

Uma hipótese similar é encontrada em Sweetser (1988, 1990). A autora considera que a linguagem é sistematicamente baseada na cognição humana, no sentido de que a base para a semântica das línguas naturais é o sistema conceitual, que emerge das experiências humanas do dia-a-dia (SWEETSER, 1990, p.1).

De acordo com Sweetser (1990, p.1), na abordagem cognitivista o sistema conceitual pode ser estudado por três diferentes áreas, que envolvem o uso de uma forma para mais de uma função: a polissemia; a mudança semântica lexical e a ambigüidade pragmática. Na mudança semântica, uma forma adquire, historicamente, uma nova função para substituir ou estender suas formas antigas. A polissemia, por sua vez, refere-se à ligação sincrônica

entre os múltiplos sentidos relacionados a uma única forma. No caso da ambigüidade pragmática, uma função semântica da forma base é estendida pragmaticamente e passa a cobrir outros referentes ou significados, por exemplo, o sintagma: “How are you?”, que retém seu sentido original de questionamento, mas também é interpretado, convencionalmente, como uma saudação ou iniciador de conversa.

Para Sweetser, a linguagem é estruturada pela percepção humana e pelo entendimento de mundo dos falantes. Portanto, segundo a autora, não é controverso afirmar que o relacionamento entre a forma e função lingüística reflete a estrutura conceitual humana e os princípios gerais da organização cognitiva. A evidência para a formação da linguagem pela cognição humana, e não por outra direção, tem sido especialmente convincente nos estudos do vocabulário de domínios físicos, como cores e termos espaciais. Ela cita a diferença entre os sistemas de categorização de cor em diferentes comunidades lingüísticas como um exemplo de que a variação cultural é baseada linguisticamente.

A autora (1990, p.8) pontua que grande parte da polissemia surge em virtude dos usos metafóricos da língua e que, na verdade, não apenas nossa linguagem, mas nossa cognição, opera metaforicamente. As metáforas permitem às pessoas entender uma coisa em termos de outra sem pensar que essas duas coisas são objetivamente iguais. Sob o mesmo ponto de vista, Lakoff e Johnson (1980) já haviam proposto que os usos lingüísticos refletem nosso inerente entendimento metafórico das diversas áreas da nossa vida, ou seja, assim como a linguagem, a cognição também opera de modo metafórico na maioria do tempo.

Segundo Sweetser, quando um uso lingüístico específico, baseado em uma estrutura metafórica, torna-se não mais conscientemente metafórico, pode-se dizer que a forma lingüística adquiriu um sentido secundário, motivado metaforicamente. Desse modo, a categorização lingüística depende não apenas de nossa nomeação das distinções que existem

no mundo, mas também de nossa estruturação metafórica e metonímica de percepção (SWEETSER, 1990, p.9).

A lingüista destaca a relação entre polissemia sincrônica e mudança semântica diacrônica, no sentido de que as polissemias são entendidas como pistas capazes de recapitular e de esclarecer a trajetória histórica de desenvolvimento de uma palavra ou morfema. Nessa perspectiva, Shyldkrot (1995) ressalta que, com base nas diferentes significações (formas polissêmicas) de uma unidade lingüística em dada sincronia, pode-se formular hipóteses relacionadas à evolução histórica dessa mesma unidade e restituir a ordem em que esses sentidos foram adquiridos. Segundo Tabor e Traugott (1998), essa afirmação – do isomorfismo entre o desenvolvimento histórico e as relações sincrônicas dos itens polissêmicos – pode ter sua origem na hipótese de que a ontogênese recapitula a filogênese.

Nenhuma mudança histórica pode ocorrer sem um estágio interveniente de polissemia, conforme afirma Sweetser (1990). Se uma palavra uma vez significou A e agora significa B, é certo que houve um estágio em que a palavra significou A e B, e o significado primeiro de A eventualmente foi perdido. Assim, se um estágio interveniente de polissemia foi envolvido, então todos os dados históricos, como evidência das relações polissêmicas anteriores, são uma fonte interessante de informação sobre a estrutura cognitiva na linguagem (SWEETSER, 1990, p.9).

Sweetser (1990, p.18) informa que trabalhos recentes em semântica histórica revelaram que a mudança semântica é estruturada pela cognição e apresenta regularidades. Ela atribui à gramaticalização um mecanismo geral de mudança semântica, que se realiza por meio de projeções metafóricas entre os diferentes domínios conceituais: o domínio do

conteúdo (sociofísico), o domínio epistêmico (raciocínio lógico) e o domínio conversacional (atos de fala). Para ela, existe uma relação unidirecional entre os domínios, sendo que o vocabulário característico do domínio epistêmico origina-se do vocabulário do domínio do

conteúdo, assim como o vocabulário do domínio conversacional origina-se do vocabulário do domínio epistêmico, o que pode ser ilustrado com o seguinte esquema:

DOMÍNIO DO CONTEÚDO DOMÍNIO EPISTÊMICO DOMÍNIO CONVERSACIONAL sociofísico raciocínio lógico atos de fala

As conexões metafóricas entre os domínios são baseadas cognitivamente, e eles influenciam fortemente os padrões de polissemia, mudança semântica e interpretação da oração. Sweetser (1990, p.19) ressalta a necessidade de estudos sobre a sistematicidade das conexões entre os domínios, e argumenta que a sobreposição de dois sistemas distintos de metáforas conecta o vocabulário de ação/ movimento/ localização física com os domínios de estados mentais e atos de fala. Em outras palavras, o mundo físico e o social são utilizados para compreender o entendimento de lógica e o processamento mental, da mesma forma que as expressões lingüísticas não servem apenas como descrição (um modelo de mundo), mas também como ação (um ato descrito no mundo) e como entidades epistêmica e lógica (premissa ou conclusão no nosso mundo da argumentação) (SWEETSER, 1990, p.21).

Em suma, a autora trata de um sistema metafórico particular que direciona o curso das projeções entre domínios conceituais, os quais determinam diferentes formas polissêmicas que são interpretadas como etapas em uma trajetória progressiva, em direção a construções mais gramaticais. Em outras palavras, para Sweetser, um elemento do domínio do léxico resulta em um elemento do domínio da gramática, por meio de uma relação de transferência de significados, fundamentalmente metafórica7 (1988, apud LONGHIN-THOMAZI, 2003).

Sweetser afirma que alguns itens lingüísticos apresentam usos ambíguos entre os domínios do conteúdo, epistêmico e conversacional. Para exemplificar a aplicação nos três

diferentes domínios, ela utiliza-se de conjunções causais e adversativas. Os exemplos seguintes da conjunção causal “since” são casos de (a) conjunção do conteúdo; (b) conjunção epistêmicas; e (c) conjunção de atos de fala:

(a) Since John wasn’t there, we decided to leave a note for him.8

(A ausência de John propiciou nossa decisão no mundo real.)

(b) Since John isn’t here, he has (evidently) gone home.9

(O conhecimento da ausência originou a minha conclusão de que ele foi para casa.)

(c) Since we’re on the subject, when was George Washington born?10 you’re so smart,

(Eu pergunto algo a você porque nós estamos no assunto, ou porque você é esperto – o fato de nós estarmos em um determinado assunto, por exemplo, possibilita o ato da pergunta.)

Sweetser (1990, p.81) explica que a escolha de um domínio para a interpretação da conjunção é essencialmente uma escolha pragmática. A conjunção causal, no domínio

conversacional, indica uma explicação causal do ato de fala pronunciado; já no domínio

epistêmico a conjunção causal marca uma crença ou uma conclusão, ao passo que no domínio

do conteúdo a conjunção causal assinala uma causalidade de um evento no “mundo-real”. Sweetser nota que a conjunção “since”11 tem uma forte tendência em direção à leitura epistêmica ou de ato de fala, em vez de uma interpretação em direção ao domínio do conteúdo.

8 Já que John não estava aqui, nós decidimos deixar um recado para ele. 9 Já que John não está aqui, ele deve ter ido para casa.

10 Já que estamos no assunto / Já que você é tão esperto, quando George Washington nasceu?