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CAPÍTULO II – DO FORDISMO À ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL, COM BASE NAS MUDANÇAS

2.4 A ascensão do regime de acumulação flexível

Nos anos 1970, o esgotamento do potencial das técnicas de produção em massa, expõe os limites do sistema fordista para sustentar taxas de crescimento da produção com redução de custos. No plano da política econômica, o keynesianismo dá sinais de esgotamento frente ao aumento do desemprego e do avanço do descontrole inflacionário. Observa-se nesse cenário a crise do regime de acumulação fordista.

Segundo Lipietz (1997), a perda de vigor do fordismo manifestou-se primeiramente na contração da demanda, em um cenário de equalização competitiva entre EUA, Alemanha e Japão. Posteriormente a crise ganhou força, no lado da oferta, com a queda de produtividade, em decorrência da elevação dos gastos com salários e matéria prima nos EUA. Nesse cenário, os choques

do petróleo em 1973 e 1979, favorecem a elevação dos preços dos combustíveis e derivados do petróleo, agravando a crise.

Com a crise do fordismo observa-se uma tentativa de retomada do crescimento a partir da reestruturação dos padrões de produção e consumo. Assim, no intuito de reduzir custos e aumentar a produtividade, cresce o deslocamento de plantas industriais dos países centrais para os países periféricos. Novos polos tecnológicos estruturados em torno da tecnologia da informação tornam-se relevantes, à medida que antigas áreas industriais, de estrutura fordista, entram em decadência, como no caso de Detroit, nos EUA e Liverpool e Manchester na Inglaterra (BENKO, 1999).

Ao passo que essas transformações ocorrem, as grandes fábricas de estrutura vertical, isto é, que produzem boa parte das peças e insumos necessários à fabricação de um produto, passaram a ser substituídas por empresas de integração horizontal. Nesse novo modelo empresarial, o foco na atividade principal manifesta-se no alto coeficiente de subcontratação presente na figura das empresas terceirizadas, as quais passaram a assumir um papel central no fornecimento de mão de obra e insumos necessários a montagem dos produtos (BENKO, 1999).

Segundo Harvey (2009), a adoção de novas tecnologias e a consequente reestruturação das empresas, com base em métodos flexíveis de organização do trabalho, surge em oposição a rigidez do fordismo. Estas transformações têm contribuído para ascensão de um regime de acumulação flexível, que passou a redefinir os conteúdos do espaço, do nível local ao global. Nas palavras do autor:

A acumulação flexível como vou chamá-la, é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional (HARVEY, 2009, p. 140).

Essas mudanças fazem parte de um quadro maior de transformações do qual se destaca o aumento da velocidade da circulação das informações, a crescente revolução dos meios de transporte e o aumento da importância da

publicidade22. Essas mudanças acabam por alterar a maneira como

representamos o mundo e a nós mesmos. Essas transformações encurtam as distâncias e redefinem as barreiras espaciais, fato definido como compressão do tempo-espaço (HARVEY, 2009).

Pretendo indicar com essa expressão processos que revolucionam as qualidades objetivas do espaço e do tempo a ponto de nos forçarem a alterar, às vezes radicalmente, o modo como representamos o mundo para nós mesmos. Uso a palavra “compressão” por haver fortes indícios que a história do capitalismo tem se caracterizado pela aceleração do ritmo da vida, ao mesmo tempo em que venceu as barreiras espaciais em tal grau que por vezes o mundo parece encolher sobre nós (HARVEY, 2009, p. 219).

A compressão do tempo-espaço assinala intensas mudanças na composição orgânica do capital23, ou seja, representa uma nova rodada no ciclo

de rotação do capital. Essas transformações do padrão de regulação do capital são puxadas pela crescente importância do capital financeiro, pelo fortalecimento do ideário neoliberal e pela popularização das formas de organização do trabalho de caráter flexível, com destaque para o toyotismo.

Sobre a importância das finanças, Harvey (2009) nota que para o desenvolvimento do capitalismo ela sempre foi relevante, todavia, com a crise das políticas keynesianas, a guinada para as finanças ganha força e desloca a importância atribuída à produção material, principalmente nos EUA, Europa Ocidental e Japão. A desregulamentação promovida na economia pelo ideário neoliberal, a partir dos anos 1970, por sua vez, reforça o papel das finanças, à medida que os atores do mercado passam a redesenhar o funcionamento dos mercados financeiros ao reduzirem o papel de regulação do Estado.

Nessa lógica, a liberalização das finanças tende a favorecer tanto a entrada de capital produtivo, que procura um retorno de longo prazo, quanto a entrada indiscriminada de capital especulativo que visa se aproveitar da alta dos juros para auferir lucros de curto prazo. Nesse sistema, sem barreiras para

22 A publicidade cada vez mais influi nos desejos do consumidor ao fazer com que o consumo,

de uma maior variedade de produtos, ocorra rapidamente. Esse processo acompanha a redução do tempo de vida útil dos produtos (obsolescência programada).

23 A composição orgânica do capital é formada pelo capital constante e pelo capital variável. O

capital constante é formado pelos meios de produção, as matérias-primas, os materiais auxiliares e os meios de trabalho. O capital variável e formado pela força de trabalho, que pode variar em qualidade e quantidade durante o processo produtivo (MARX, 1988).

circulação do capital, é intensa a negociação e renegociação de títulos, com base em promessas de rendimento futuro. Em um ambiente de incertezas essas transações contribuem para a expansão do capital fictício, este com mais frequência passa a levar o desenvolvimento de bolhas24 especulativas que, por

conseguinte podem se desdobrar em crises no sistema financeiro (CHESNAIS, 2003).

No plano da política econômica as ideias keynesianas passaram a ser postas de lado tendo em vista que ocorria a popularização das ideias neoliberais. Sobre essa tentativa de recuperação econômica via neoliberalismo destaca-se a disseminação do pensamento econômico de Milton Friedman, da escola de Chicago, nos EUA e de Friedrich Von Hayek, da escola Austríaca, este último teve forte repercussão na Inglaterra.

Essas ideias ganharam repercussão nos anos 1980, inicialmente nos governos de Margaret Thatcher na Inglaterra e de Ronald Reagan nos EUA. Com isso, o estímulo às privatizações, a redução da intervenção estatal de modo a ampliar o papel das empresas na economia ganha destaque. Tal processo, foi alimentado pela tendência de individualização das relações de trabalho, que pode ser notada na depreciação das negociações coletivas em favor da valorização das negociações individualizadas.

Nesse período as respostas à crise do fordismo dirigiram-se igualmente contra os movimentos sociais (estudantes, negros e mulheres) e dos trabalhadores, que marcaram época nos anos 1960 e 1970, através de grandes atos e manifestações. As entidades ligadas ao mercado julgavam que a força desses movimentos agravava a crise, prejudicava a governabilidade, freava o crescimento das forças produtivas, portanto precisava ser contida (GORZ, 2004). Nesse cenário, o avanço do neoliberalismo passou a sustentar a afirmação que as políticas sociais realizadas na escala da sociedade, de caráter keynesiano ou marxista, estavam fadadas ao fracasso. Para isso, argumentam

24 Conforme Chesnais (2003, p. 62) “A bolha é uma possibilidade inscrita na própria instituição

da liquidez. O acionista institucional do mercado financeiro não se satisfaz mais em embolsar dividendos. Ele busca sobretudo a plena liquidez de suas aplicações, isto é, a possibilidade de realizar ganhos de capital em bolsa de valores e, portanto, de reavaliar suas escolhas a cada momento e de desfazer-se de tais ou tais títulos. Para isso, ele tem a necessidade de mercados financeiros mais amplos, que são o lugar de formação de um mercado fictício de enormes proporções, das quais a capitalização em bolsa oferece uma ideia”.

a incapacidade de totalização dos interesses gerais da sociedade por meio da interferência do Estado (GORZ, 2007).

A alternativa, em relação ao que consideravam excesso de poder do Estado residia em dar vazão às iniciativas individuais, por considera-las capazes de alimentar o crescimento da racionalidade econômica e com isso garantir os interesses de todos. Retomava-se dessa maneira o princípio da “mão invisível” de Adam Smith, consequentemente a crença na capacidade de auto-regulação do sistema capitalista. Por fim, essa abordagem acaba por enfatizar que a busca egoísta para o crescimento é a raiz de todo desenvolvimento, recuperando Adam Smith:

Não é por generosidade que o homem do talho, quem faz a cerveja ou o padeiro nos fornecem alimentos; fazem-no no seu próprio interesse. Não nos dirigimos ao seu espírito humanitário, mas sim ao seu amor- próprio; nunca lhes falamos das nossas necessidades, mas dos seus próprios interesses (SMITH, 1974, p. 20).

Desse modo, para essa corrente ao procurarmos maximizar nossos interesses individuais o geral será contemplado. Tal princípio para ser realizado necessita da redução da interferência do Estado na economia. Com isso, a ação independente dos autores econômicos pode contribuir para o aumento do excedente e dos lucros gerando satisfação e riqueza a todos (ROBINSON, 1964).

De acordo com Gorz (2007), a popularização dessas ideias, em um momento histórico de enfraquecimento das organizações dos trabalhadores, passou a contribuir no plano da sociedade para uma supervalorização do individual em detrimento do coletivo. As consequências destas práticas vêm implicando na degradação sem limites do meio natural e social. Isso decorre da lógica liberal que substitui o necessário, “o isso me basta”, pela lógica do não limite econômico “do quanto mais melhor”.

Nesse contexto, as iniciativas de reestruturação do capital, passam a afetar drasticamente a organização sindical, que perde força no embate entre capital versus trabalho. A queda da taxa de sindicalização, relação entre o número de sindicalizados e população assalariada é um indicador dessas mudanças. Conforme Antunes (2002, p. 69) “A Europa Ocidental em seu conjunto, excluída a Espanha, Portugal e a Grécia, reduziu de 41% em 1980

para 34% em 1989. Incorporando-se aqueles três países acima citados, as taxas seriam ainda menores”.

Nesse processo, que emerge o regime de acumulação flexível, cresce inicialmente o número de postos de trabalho nas atividades no setor de serviços, concentradas nas áreas urbanas. Concomitante, verifica-se a redução do emprego na indústria e no campo em decorrência do avanço tecnológico e das novas técnicas de organização do trabalho de caráter toyotista. Tal dado nos leva a questionar a qualidade do emprego gerada nesse ambiente.

Os empregos gerados passaram a ser mais expressivos no setor de serviços, que é tradicionalmente pouco sindicalizável quando comparado a indústria. Nesse setor, que abarca o comércio e os prestadores de serviços, a maior dispersão das atividades econômicas dificulta ainda mais a organização dos trabalhadores. Acrescente-se a isso, o avanço da terceirização que tende a fragmentar e desarticular25 a luta do trabalhador. Na Inglaterra, por exemplo, o

avanço gradual da terceirização passa a atingir todos os setores econômicos. Como salienta Wills (2009, p. 443, tradução nossa). “Para além do setor de serviços, como limpeza, cozinha, segurança e estagiários, não obstante trabalhadores do setor de transporte, distribuição e manufatura também podem ser terceirizados”26

Em síntese, observa-se a partir dos anos 1970 a emergência de um regime de acumulação flexível. Fazem parte desse processo o aumento da força do capital financeiro, a repercussão das ideias neoliberais e o avanço tecnológico. No plano da organização do trabalho, diferentes experiências foram implementadas, contribuindo para criar as bases de sustentação do atual regime de acumulação.

25 Isso ocorre com a tendência de uma mesma firma concentrar trabalhadores de mais de uma

empresa terceirizada, portanto com diferentes formas de comando, contratação e salário. Tal situação dificulta a união e mobilização dos trabalhadores em relação a uma pauta comum de reivindicação.

26 “Beyond service sector jobs such as cleaning, catering, security, and trainining, however,

workesin sector such as transport, distributition and manufacturing are also likely to be subcontracted” (WILLS, 2009, p. 443).