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uma análise complexa

4.1 A atualidade das canções

A maioria das canções do corpus da nossa pesquisa data da década de 50 do século XX, fato que pode suscitar restrições quanto à sua atualidade. Nascidas sob determinadas condições (históricas e sociais) de produção, essas canções não deixam de ser portadoras da marca da sua época, onde tiveram, de forma limitada, aspirações, interesses, força ou fraqueza histórica percebidas pelos seus destinatários imediatos. Contudo, seria nocivo ao nosso estudo fechar o espectro delas à época da sua criação, em sua chamada atualidade, uma vez que analisá-las apenas com base nas condições da época de sua composição, apenas sob condições de sua época mais próxima, não nos permite penetrar nas profundezas dos seus sentidos. Mesmo porque quem segue orientações metodológicas bakhtinianas, como nós, não pode estudar um fenômeno da linguagem mantendo-o preso à cultura da sua época, e, sim, precisa ficar atento ao

fato de que, se o sentido delas nascesse todo e integralmente no ninc et nunc da época da sua criação, não daria continuidade ao passado e não manteria com o presente um vínculo substancial, como também não poderia viver no futuro, pois “tudo que pertence apenas ao presente morre juntamente com ele” (BAKHTIN, 2003, p. 263). De acordo com o pensamento bakhtiniano, um enunciado não se desatualiza.

Sustentando-se nesse postulado, a nossa análise procura libertar cada música do “cativeiro do tempo” e oferecer-lhe a oportunidade de ser nova portadora material de sentido, o que requer adotar um estilo de análise que evita tratá-las como um acontecimento produzido em um tempo e lugar determinado e que só poderia ser lembrado e celebrado de longe, como um ato de memória. De certa forma, fazemos essa atualização quando levamos as canções nordestinas a dialogarem com a sociologia baumaniana, sob os auspícios da Linguística Aplicada. Ademais, como enunciado concreto, as canções nascem, vivem e morrem no processo de interação social. Se cortadas do solo real que as nutre, perdem a chave tanto de sua forma como do seu conteúdo e tudo que resta delas é uma “casca linguística”.

Como enunciado concreto, não perdem sua atualidade porque, não só agora como desde sua origem, penetram num meio dialogicamente perturbado e tenso de diálogos de outrem, de julgamentos e entonações, e se entrelaçam com eles de maneira complexa, ora fundindo-se com uns, ora isolando-se de outros. Podemos dizer que, em sua trajetória, elas estão amarradas e penetradas por ideias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações, sendo oportuno saber de que modo elas atualizam esse já-dito. Assim posto, sairemos à procura dos “tesouros dos sentidos” que se escondem na linguagem verbalizada dessas canções, momento em que elas se enriquecerão de outros sentidos e significações, podendo superar a entonação que tiveram na época da sua criação. Com essa aposta heurística, a análise quer descobrir algo novo nesses escritos do passado.

A respeito dessa marca épica, até podemos dizer ainda que, de cada época, a letra de uma música é uma espécie de monumento com um “significado

final”. Contudo, além desse significado final do monumento, existe um significado vivo, crescente, em formação e em mudança que não nasce inteiramente na época limitada do nascimento do monumento. Um significado que, pela ótica de Bakhtin (2003), é preparado ao longo de séculos antes do nascimento e continua a viver e desenvolver-se durante séculos após. Ou seja, um significado que remonta o enunciado, inclusive com suas raízes, a um passado distante, preparado por séculos. De maneira que, na chamada época da sua criação, a letra da música está apenas colhendo os frutos maduros do longo e complexo processo de amadurecimento a que está submetida.

Em se concordando com esse entendimento, o significado crescente e inconcluso da letra de uma música não pode ser deduzido e explicado apenas das condições limitadas de uma dada época, da época do nascimento do monumento. Ademais, quando a letra da música é considerada enunciado, como procedemos aqui, somente as condições de produção imediatas não servem para dar sentido a ela, pois elas são apenas as condições ideais de uma determinada época e não esgotam o significado crescente e permanente de uma obra artística aberta, como é a letra de uma música. Não queremos dizer com isso que iremos ignorar inteiramente a época contemporânea da gênese das canções.

Foucault (2002, p. 121) também oferece-nos um reforço a essa questão da atualidade das letras de músicas, dizendo que

Ao invés de ser uma coisa dita de forma definitiva e perdida no passado como a decisão de uma batalha, uma catástrofe ecológica ou a morte de um rei – o enunciado, ao mesmo tempo em que surge em sua materialidade, aparece com status, entra em redes, se coloca em campos de utilização, se oferece a transferências e a modificações possíveis, se integra em operações e em estratégias onde sua identidade se mantém ou se apaga. Assim, o enunciado circula, serve, se esquiva, permite ou impede a realização de um desejo, é dócil ou rebelde a interesses, entra em ordem das contestações e das lutas, torna-se tema de apropriações ou de rivalidade (grifo nosso).

Assim, apostamos que, mesmo distante do vínculo substancial do passado, a presente análise pode conseguir enriquecê-las com novos significados e novos sentidos, superá-las no que foi em sua época, em seu momento histórico,

dissolvendo as fronteiras de sua época. Queremos crer que, vivendo outro momento

estético, isto é, no grande tempo de um estudo de caráter científico, em outro plano de sua existência, as canções podem levar, como parte inseparável da cultura humana, vida intensiva e plena, tanto quanto foi em sua atualidade propriamente dita.