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2 PERCURSO METODOLÓGICO: procedimentos de um analista

2.6 Luiz Gonzaga: o rei do baião

Numa das poucas casas, por sinal de barro batido, do sítio Caiçara em Exu (700 km de Recife), no sertão do estado brasileiro de Pernambuco, nasceu Luiz Gonzaga do Nascimento (1912-1989), que viera tornar-se uma das maiores

expressões da música brasileira. Cinquenta anos de carreira, com mais de 500 canções gravadas em 56 discos, fincou-se no cenário artístico nacional como uma referência de musicalidade nordestina. Nas canções selecionadas, a literatura de Luiz Gonzaga parece ligada à sua biografia, principalmente à sua experiência de migrante que o levou a deixar o sertão nordestino com apenas 17 anos de idade. De certa forma, é essa experiência que vai marcar os rumos da sua obra musical.

Gonzaga introduziu o Nordeste no espaço da Música Popular Brasileira (MPB) e foi “o mais completo, consciente e talentoso promotor da música regional”, afirma o crítico musical Tárik de Souza4. Antes de Gonzaga, havia pouca aceitação da música nordestina no Sul do país. Faltava ao povo nordestino uma expressão acessível a todos, algo que se pudesse difundir por todo o país. Havia um vazio musical no coração dos nordestinos que, em meados dos anos 1940, vários artistas procuraram preencher, inventando, criando, lançando novos gêneros musicais (DREYFUS, 1996). Neste panorama, surge o artista Luiz Gonzaga, considerado o “primeiro produto industrial da cultura nordestina”, tornando-se um fenômeno de massa.

O país já havia tomado conhecimento da expressão musical nordestina, no início do século, através das belíssimas parcerias de João Pernambuco e Catulo da Paixão Cearense, que hoje são grandes clássicos da música brasileira. Na década de 20, surgiram grupos com os Turunas Pernambucanos, os Turunas da Mauriceia, que fizeram imenso sucesso no Rio de Janeiro e em São Paulo. Vestidos à moda dos sertanejos (chapéu de abas largas, que seriam popularizados pelos cangaceiros, calça e camisa de brim branco, sandália de couro), apresentavam ao público urbano do Sul, emboladas, desafios e outras cantigas do sertão (DREYFUS, 1996, p. 105).

Oliveira (2000) define o cancioneiro popular nordestino como produto puro de uma arte que brota como facheiro e o marmeleiro do sertão. Citando Guerra Peixe, autor erudito da música brasileira, lembra que é difícil dar certidão de batismo

de uma festa, de uma música porque essas manifestações são universais, logo se irradiam, logo se popularizam em países de outras línguas e costumes.

No dia 14 de março de 1941, Luiz Gonzaga gravou seus dois primeiros discos na qualidade de sanfoneiro solista. Ele veio com a linguagem do sertão. Gonzaga procurou traduzir nas músicas que cantava os problemas do Nordeste. As criações dele e de seus parceiros constituem crônicas sobre o Nordeste, sua cultura, sua sociedade, seus modos, sua fala (DREYFUS, 1996). No início da carreira, Gonzaga era mais músico, no sentido de ter muita habilidade em criar ritmos. Pouco compôs, daí sua necessidade de procurar parceiros letristas, conseguindo firmar parcerias históricas. Com um repertório eclético, também interpretou muitas canções de terceiros. Mas foi com Humberto Teixeira e Zé Dantas (teceremos maiores detalhes adiante) que ele deu entrada triunfal na história da música popular brasileira.

Com a canção “Baião”5, que trouxe junto um novo ritmo, mostrou para o mundo como se dança no ritmo nordestino. O ritmo baião conquistou o país e virou moda. O 78 rotações6 com “Baião” foi lançado em outubro de 1946. Houve todo um plano de marketing pensado por Gonzaga para lançar o novo ritmo nos grandes centros urbanos, a fim de evitar que ele fosse visto como mais um, entre tantos, com o maxixe, o choro, samba, música caipira etc. O primeiro LP gravado foi A história do

Nordeste na voz de Luiz Gonzaga, com músicas que se tornaram sucesso, como “Respeita Januário”, “ABC do sertão”, “Acauã” e “Asa Branca”. Na década de 50 e início da de 60, a música regional cantada por Gonzaga teve grande aceitação na classe média, quando o baião gonzaguiano viveu sua época de ouro.

No prefácio da obra de Oliveira (2000), o jornalista pernambuco de nome Potiguar de Matos, após apresentar a obra gonzaguiana como “múltipla e cativante”, define o autor-pessoa como mais do que um “simples homem do povo”, 5O termo “baião”, sinônimo de rojão, já existia, designando na linguagem dos repentistas nordestinos, o primeiro trecho musical tocado pela viola, que permite ao violeiro testar a afinação do instrumento e esperar a inspiração, assim como introduz o verso do cantador ou pontua o final de cada estrofe (DREYFUS, 1996, p. 111-112).

6 Em 1941, foram gravados os seus dois primeiros discos em 78 RPM, pela gravadora RCA, com as seguintes músicas: “Vira e mexe” (Luiz Gonzaga) e “Saudades de Sâo João del Rey” ( (Simão Jandi), e “Véspera de São João” (Luiz Gonzaga e F. Reis) e “Numa serenata” (Luiz Gonzaga).

um artista popularmente excepcional, um homem-índice em que palpita o gênio de um povo, suas dores, angústias, revoltas e esperanças. “Gonzaga é uma lava sonora, vem de camadas ígneas do inconsciente popular”. Em 1988 tivemos “contato” direto com o artista, já na reta final de sua vida, ainda assim como mera plateia naquela que foi sua última apresentação em Natal (RN)7 e a única a que assistimos.

Como autor ou interprete, Luiz Gonzaga deu publicidade a essas músicas, com sua voz. Por intermédio dele, elas ganharam o mundo, caíram na boca do povo, e até viraram hino falando do homem do sertão nordestino. Mesmo que eventualmente em algum show ou programa de tevê Luiz Gonzaga tenha interpretado músicas de terceiros, aquelas que selecionamos fazem parte da sua discografia oficial8. A respeito disso, encontramos um substancioso índice na obra de Echeverria (2006). Dispersas e abertas à visitação pública, as canções existem na forma escrita e impressa em algumas obras, tais como Sá (2002), Oliveira (2000) e quase todas em Barbosa (2007).

Na indústria fonográfica brasileira, o ano de 1945 foi marcante. Apareceram no mercado os primeiros LPs, causando mudanças semelhantes àquelas provocadas pelo aparecimento do CD na década de 80. O sistema de gravação anterior ao LP era o disco de 78 rpm, o conhecido 78 rotações, que desapareceu definitivamente em 1964. Com o novo suporte, Gonzaga passou a gravar a cada ano um novo disco, com músicas originais e com as do repertório antigo.

A importância de se ter em português a obra musical de Gonzaga é imensa e inquestionável, pois ela tornou-se para muitos relevante com o fito de compreender o mundo atual, tornando-se prática discursiva que põe em questão o

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Show em novembro de 1988, realizado na então arena de espetáculo “Casa do Sanfoneiro”, localizada na avenida Roberto Freire, de propriedade do artista potiguar Roberto do Acordeon. Naquela noite, Gonzaga, apresentou-se sob cadeira-de-rodas e mostrava severas dificuldades de visão. Ao adentrar no local, foi recebido apoteótico, com algumas pessoas beijando sua mão, gesto diante do qual brincou “agora virei padre”..

8 Ao longo da carreira, Luiz Gonzaga gravou a maioria de suas músicas na RCA, embora exista registros de músicas dele gravadas na Odeon e na Copacabana.

ato da escrita e da leitura, numa prosa poética que persegue e submete o texto à escolha de uma entonação, de um tom no sentido bakhtiniano, ainda que literário. É uma prosa que nos traz notícias de um mundo distante para muitos, um mundo que vive às margens dos processos de inclusão social. Um mundo relativamente esquecido e desprezado: o sertão nordestino, com seus “cabras da peste” e sua gente humilde.

Por esses e outros aspectos, no universo do discurso cancionista brasileiro não falta a presença da voz do cotidiano nordestino. Luiz Gonzaga, um nome geralmente associado à sua descendência nordestina, considerado porta-voz da música do Nordeste, sua obra musical inspirou trabalhos acadêmicos, como a da doutora Elba Braga Ramalho que escreveu a tese “Luiz Gonzaga: sua carreira e sua música”, defendida na Universidade de Liverpool (Inglaterra). Outro da professora Maria Sulamita de Almeida Vieira, tese de doutorado sobre o trabalho de Gonzaga, intitulada “Luiz Gonzaga, o sertão em movimento”, defendida em Universidade Federal do Ceará em 1999. Além disso, a respeito da obra musical e da vida pessoal de Luiz Gonzaga há uma vasta literatura (ECHEVERRIA, 2006; BARBOSA, 2007; DRAYFUS, 1996; OLIVEIRA, 2000; SÁ, 2002)9.

Sua obra musical parece destinada a ilustrar, como poucos e por meio de um pseudo-relato ficcional, a vida migrante do retirante nordestino. Na leitura das suas canções, somos recompensados por tudo aquilo que nos faz sofrer ou nos alegrar com a trajetória desses seres humanos e, ao mesmo tempo, vivemos a sensação de parte dela também ser a nossa história. Fazer parte da nossa história. Daí não ser um trabalho tão exaustivo ter de transformar ou transpor a intuição de Gonzaga e de seus parceiros em produto acadêmico.

Aqui concluímos as nossas observações metodológicas prévias. O que temos mais em vista para proceder a análise será aclarado nos próximos capítulos e nas análises concretas no último.

9 Em parte delas lemos as letras das músicas, conhecemos um pouco da história artística de Luiz