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2 PERCURSO METODOLÓGICO: procedimentos de um analista

2.1 A pesquisa atual na Linguística Aplicada

A maneira de se produzir conhecimento no campo dos Estudos da Linguagem, no Século XXI, em uma sociedade globalizada, está na ordem do dia dos debates que se travam na Linguística Aplicada (OLIVEIRA, 2007). Ainda que transpareça consenso que a LA tem a linguagem verbal como objeto de estudo por excelência e esteja consolidada como área de conhecimento nas Ciências Humanas, algumas questões colocam em debate sua “identidade”. Contudo, essa é uma discussão, de certo modo, já aguardada, tendo em vista que a produção do conhecimento científico na atualidade já não corre em bases tão firmes e seguras e o paradigma positivista há tempos denota sinais de esgotamento (SANTOS, 2005). Pois, para esse autor, a ciência moderna, em geral, e as Ciências Sociais, em particular, atravessam profunda crise de confiança epistemológica relacionada aos processos de transformação social, numa época de grandes turbulências, de equilíbrios e regulações particularmente precárias, uma época fractal com mudanças de escala imprevisíveis e irregularidades difíceis de serem concebidas dentro dos parâmetros cartesianos de produção de conhecimentos.

Em sendo assim, a LA não foge a essa realidade. Oliveira (2006) e Moita Lopes (2006) anotaram que o norte das pesquisas em LA, nos diversos cursos de pós-graduação espalhados pelo país, está orientado para temáticas específicas cuja preponderância concentra-se em sua interface com a Pedagogia ou a

Educação, privilegiando investigações sobre avaliação, estudos de letramento, estudos lexicográficos, interação em sala de aula, tecnologia e ensino, formação de professores. Como anotou Moita Lopes (2006), há na LA uma predominância no estudo da aprendizagem e do ensino de uma segunda língua ou de uma língua estrangeira, inclusive por parte de uma LA tradicional que seria ainda muito positivista e exclusivamente centrada em práticas de ensino-aprendizagem, tanto no modo presencial como no à distância, com forte dependência da linguística, ignorando inclusive intravisões de linguagem provenientes de outros campos. Todavia, Oliveira (2007) anota que há uma outra área que

[...] aos poucos direciona-se para práticas discursivas em contextos institucionais diversificados, para o questionamento sobre as metodologias de investigação e sua ética, para o campo da tradução, do estudo das identidades, das questões de gênero social, entre tantos outros relacionais à transculturalidade (OLIVEIRA, 2007, p. 57).

A autora mostra que na LA também ganha corpo uma concepção de produção de conhecimento que atravessa limites e fronteiras, estendendo-se para estudos de problemas de questões de linguagem os quais envolvem temas desde o letramento crítico, a inclusão digital, o ensino à distância, até questões mais amplas que remetem para outras relações, tais como linguagem e trabalho, linguagem e tecnologias. Por obra desse outro campo, paulatinamente, a LA vem ampliando seus espaços e, cada vez mais, se envolvendo em estudos que exploram as relações entre práticas discursivas e práticas sociais, desgarrando-se de uma visão que a cingia a uma aplicação de modelos da linguística teórica, o qual a coloca como quase uma sinonímia para a didática das línguas.

Todavia, à medida que muda o foco tradicional, a LA passa por questionamentos por parte de uma vertente que se preocupa em mantê-la em um campo genuíno e “não-contaminado” por outras áreas, um campo que insiste em não deixá-la se abrir. Esta vertente teme que, ao se engajar e se inserir em um contexto mais amplo do debate contemporâneo de natureza inter e transdisciplinar,

a LA pode perder sua especificidade como campo de produção de conhecimento. A preocupação parece ser válida, mas não encontra respaldo num contexto em que a própria ciência contemporânea de modo geral se (des)configura, como foi anotado há pouco. Além do mais, a LA demonstra não ser capaz de, sozinha, dar conta de muitas questões de pesquisa, como aquelas que levantamos há pouco.

Se é consistente afirmar que a LA desvinculou-se da rotulação de ser área de aplicação apenas de modelos teóricos da Linguística, tal entendimento, contudo, ainda não permitiu construir um consenso acerca de quais sejam suas fronteiras. Para Oliveira, as discussões e os pontos de vista diferenciados situam

[...] de um lado, aqueles que defendem sua ampliação, colocando-a nos marcos das Ciências Humanas, visibilizando-a como uma área de conhecimento crítico cujas bordas e limitações ultrapassam os contornos da relação com os modelos linguísticos, assumindo uma relação transdisciplinar com outras áreas do conhecimento, mais especificamente com as vertentes críticas das ciências sociais e das teorias da educação, atravessando ainda outros ramos do conhecimento, tais como os Estudos Culturais, o Letramento Crítico e os Estudos Pós-Colonistas. De outro lado, temos uma compreensão que privilegia como limites e relacionamentos da LA as diversas áreas da linguagem (OLIVEIRA, 2006, p. 67).

Essa discussão traz em si o germe de um outro divisor de águas dentro da LA, o qual está relacionado às temáticas que essa área de conhecimento deveria abordar. Uma visão continua defendendo e entendendo como objeto de estudo privilegiado da LA o processo de ensino e aprendizagem de línguas, aproximando-a de uma “didática das línguas”. Para essa primeira visão, a LA restringir-se-ia a produzir conhecimentos como subsídio teórico para auxiliar e orientar as práticas do ensino de língua materna ou estrangeira, enquanto a segunda visão amplia as fronteiras teórico-metodológicas desse campo de conhecimento (ARCHANJO, 2008).

2.2 Justificativa

Dentro desse quadro, seria possível apontar a relevância da presente pesquisa para o campo da LA, considerando que o discurso cancionista, ao fazer parte da categoria dos longos enunciados da vida corrente, apresenta a condição de assumir saberes, seja histórico, geográfico, social, técnico, botânico, antropológico e, como tal, pode ser tomado como fulgor da realidade. Ou seja, acreditamos que ele faz girar saberes, sabe de coisas, algo das coisas e que as profundidades de seus sentidos o predispõem a infinitas interpretações.

Num trabalho de pesquisa como este, também pode respaldar a preferência pelo discurso cancionista a crença de sua serventia como base social e exibição de um elenco de temas relacionados ao homem e ao mundo em geral, temas polêmicos e complexos, sumamente importantes, sob o eco de vozes sociais que trazem ideias e concepções de mundo e pontos de vista sobre inúmeras ocorrências do mundo empírico. Portanto, a crença que, implícita ou explicitamente, o discurso cancionista encesta questões que permeiam a existência humana e as convertem em dramas de várias dimensões, apresentando questões que participam ora de um microdiálogo, ora de um grande diálogo a respeito do que Bakhtin (2005) denomina as profundezas inconclusíveis do homem.

Desse modo, naquilo que se possa tomar por benéfico e pertinente para a LA, o objeto de estudo da nossa pesquisa, qual seja, a construção de identidade(s) migratória(s) em LMs, contempla aquela outra visão que compreende o horizonte dos objetos de estudo da LA ultrapassando os contextos educacionais e pedagógicos, ao envolver práticas discursivas em múltiplos contextos institucionais. Ao nos guiarmos por essa perspectiva de investigação e lidando com esse objeto de estudo, nossa pesquisa permite ampliar as fronteiras da LA para além da sua interface com a educação (no sentido lato deste conceito). Uma vez que o Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da UFRN (PPgEL) atualmente “assume uma natureza híbrida, contemplando as duas grandes macro-orientações

predominantes nesta área de conhecimento” (OLIVEIRA, 2006, p. 58), a presente pesquisa não parece destoar tanto do corpo dos trabalhos produzidos nas duas linhas dos programas – Discurso, Gramática e Ensino e Linguagem e Práticas Sociais. Uma orientação híbrida que só agora começa a se configurar, conforme registra o levantamento feito por Oliveira (2006) de todos os trabalhos investigativos do PPgEL.

A respeito da opção pelas canções nordestinas, podemos dizer que convidamos esses “poetas do cotidiano” a dialogarem com a LA pela riqueza do uso da linguagem revelada em suas composições e pelo fato de, no diapasão das suas músicas, a temática da migração ocupar uma posição singular. Ademais, como artistas, com raízes nitidamente nordestinas, a preferência pela sua obra mostra-se de grande valia na medida em que suas canções permitem imaginar um mundo simbólico com uma relativa desfamiliarização ou contraposição com/ao Norte imperial.

Contudo, sem que isso possa indicar, seguramente, que não encontraremos no discurso cancionista nordestino estereótipos nortecêntricos a respeito do Sul cujas populações são por vezes vistas como estando mergulhadas num desespero para o qual não há saída (SANTOS, 2005). Queremos dizer com isso que as canções nordestinas permitem trabalhar, potencialmente, um leque simbólico onde nem tudo fica nas mãos da indústria cultural hegemônica dominada pelas grandes redes de comunicação norte-americanas e europeias. Por outro lado, considerando o “lugar social de fala”, o conteúdo das canções abre a possibilidade de se aprender com o Sul, entendendo o Sul como uma metáfora do sofrimento humano causado pelo capitalismo (SANTOS, 2005).

Todavia, cumpre-nos assinalar que, quanto à possibilidade de existirem estereótipos nortecêntricos nas canções nordestinas foi aventada aqui pelo fato de o Sul ser, ele próprio, um produto do império, como adverte Santos (2005), de modo que para uma aprendizagem com o Sul seria igualmente necessária a desfamiliarização em relação ao Sul imperial, ou seja, em relação a tudo o que no Sul é resultado da relação colonial capitalista e seria impossível, de antemão, saber quais “fios ideológicos” as canções tocam. Para esse autor, só se aprende com o Sul

quando concebemo-lo como resistência à dominação do Norte e se busca nele o que não foi totalmente desfigurado ou destruído por essa dominação, na medida em que se contribui para a sua eliminação enquanto produto do império. Junta-se a esses argumentos o fato que, posicionado nas margens ou periferias mais extremas da modernidade ocidental, o cancioneiro nordestino oferece-nos, como ponto de partida, um olhar a partir de uma perspectiva local.

Por sua vez, a escolha, em si, do discurso cancionista está sintonizada com o dizer de Bentes (2003) que considera LMs material linguístico que deve ser tomado para análise e compreensão dos processos de construção de sentidos e funcionamento da linguagem. Ou seja, além das suas finalidades estéticas e lúdicas, LMs se oferecem como lugar de uma grande riqueza para se observar o funcionamento da linguagem. Dessa forma, o investimento heurístico que procuramos proporcioná-las, nesta pesquisa, caminha na direção da capacidade que o discurso cancionista também tem de manifestar determinadas tradições, certas ideias determinantes dos senhores do pensamento expressas e conservadas em vestes verbalizadas, além de ser portador de conteúdos ideológicos e valorativos determinados. Pensamos também que, longe de ser uma composição linguística neutra, LM conforma prática discursiva cuja axiologia realiza em direções definidas e carregadas de conteúdos determinados.

Por fim, é possível indicar o quanto LM constitui, em conjunto, autêntica enciclopédia da atualidade e está, frequentemente, impregnada de polêmicas abertas e veladas com diversas escolas ideológicas, filosóficas, religiosas e científicas. Como diria Bakhtin (2005) plenas de imagens de figuras atuais ou recém- desaparecidas, dos senhores de ideias em todos os campos da vida social e ideológica, plenas de alusões a grandes e pequenos acontecimentos da atualidade, caracterizando-se, portanto, por ter excepcional capacidade ideológica.

Aliado a tudo isso, quem sabe não descobriremos nelas alguma coisa nova que venha contribuir para uma compreensão mais fecunda do homem e da sociedade. pois

Correntes poderosas e profundas da cultura (particularmente as de baixo, populares), que efetivamente determinam a criação dos escritores, continuam aguardando descobertas e às vezes permanecem totalmente desconhecidas de pesquisadores (BAKHTIN, 2003, p. 361).

Por tudo isso, em nossa pesquisa, o discurso cancionista deixa de ser algo pequeno e assunto desprovido de seriedade, isto é, se algum dia o foi assim. Em suma, diferentes de outras áreas de estudo e bases de pesquisa no âmbito dos Estudos da Linguagem, aqui LMs têm um outro estatuto como empiria, uma outra fecundidade heurística.