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3 A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO E AUTONOMIA INTELECTUAL:

3.2 A Autonomia intelectual e moral

3.2.2 A autonomia moral

Falar em autonomia moral requer que pensemos sobre as interações sociais que implicam relações de cooperação e respeito mútuo apontados por Piaget (1998a). Como já abordado a função da escola ativa é formar indivíduos autônomos que garantam a liberdade de expressão, de criatividade e desenvolver o interesse natural da criança. Isso nos remete ao estudo da moralidade, que dentre seus

estudos epistemológicos sobre o conhecimento científico, Piaget (1932/1994) dedicou parte de sua atenção ao desenvolvimento da moralidade humana, à prática e à consciência da regra (anomia, heteronomia e autonomia).

Autor de importante obra “O juízo moral na criança” (1932/1994), Piaget fundamentou-se em Immanuel Kant que se dedicou entre outros estudos às questões morais. A autonomia para Kant é concebida a partir da totalidade do ser humano, ou seja, a autonomia caracteriza-se pela competência do sujeito em agir de maneira independente e de acordo com sua vontade própria, diante das tensões a ele expostas. De acordo com Kant

Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as ações das leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão a razão prática. Se a razão determina infalivelmente a vontade, as ações de um tal ser, que são conhecidas como objetivamente necessárias, são também subjetivamente necessárias, isto é, a vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer, como bom. (KANT, 1974, p. 217).

Desta forma, o fundamento da autonomia para Kant é o imperativo categórico, ou seja, o indivíduo deve agir mediante preceitos que sejam bons tanto para si como para o outro, segundo uma máxima universal. Zatti (2007), complementa que para Kant, “tal princípio [o fundamento da autonomia] só é possível na pressuposição da liberdade da vontade, a vontade deve querer a própria autonomia e sua liberdade consiste em ser lei para si mesma [...]”. (ZATTI, 2007, p. 16).

Para Piaget (1932 /1994, p. 23) “toda moral consiste num sistema de regras e a essência de toda moralidade deve ser procurada no respeito que o indivíduo adquire por estas regras”. O que envolve dois tipos de respeito: o unilateral e o mútuo. O primeiro implica na relação de coação, como o respeito do pequeno pelo grande; o respeito mútuo nas relações de igualdade entre as pessoas.

[...] a sociedade é o conjunto das relações sociais. Ora, entre estas, dois tipos extremos podem ser distinguidos: as relações de coação, das quais o próprio é impor do exterior ao indivíduo um sistema de regras de conteúdo obrigatório, e as relações de cooperação, cuja essência é fazer nascer, no próprio interior dos espíritos, a consciência de normas ideais, dominando todas as regras. Oriundas dos elos de autoridade respeito unilateral, as relações de coação caracterizam, portanto, a maioria dos estados de fato de dada sociedade e, em particular, as relações entre a criança e seu ambiente adulto. Definidas pela igualdade e pelo respeito mútuo, as relações de

cooperação constituem, pelo contrário, um equilíbrio limite mais que um sistema estático. Origem do dever e da heteronomia, a coação é, assim, irredutível ao bem e à racionalidade autônoma, produtos da reciprocidade, se bem que a própria evolução das relações de coação tenda a aproximá- las da cooperação. (PIAGET, 1932/1994, p. 294).

Desses dois tipos de respeito apontados por Piaget, duas morais daí decorrem, a advinda do respeito unilateral e das relações de coação: a moral heterônoma, que implica o sentimento do dever e a submissão ao poder das pessoas; e a moral autônoma advinda da cooperação e do respeito mútuo.

É importante ressaltar que embora exista nos estudos clássicos da moral a conformidade sobre o fato de o respeito compor o sentimento fundamental que possibilita a aquisição das noções morais, as circunstâncias de tratamento dessa relação é que podem ser inteiramente opostas.

Assim, segundo Piaget (1998), enquanto Kant vê no respeito um resultado da lei e Durkheim um reflexo da sociedade, Bovet mostra, ao contrário, que o respeito pelas pessoas constitui um fato primário e que mesmo a lei dele deriva. Para Bovet (1912), duas condições são necessárias e suficientes para que se desenvolva a consciência da obrigação: em primeiro lugar, que um indivíduo dê ordens a outro e, em, segundo, que esse outro respeite aquele de quem emanam as ordens. Noutras palavras, é suficiente que a criança respeite seus pais ou professores para que as ordens prescritas por eles sejam aceitas por ela e por isso se tornem obrigatórias. Esse resultado, para Piaget, é essencial para a educação moral, posto que leva logo de início a situar as relações de indivíduo a indivíduo acima de qualquer ensinamento oral e teórico. (MONTOYA, 2004, p. 176).

Isto nos leva a pensar nas tendências morais que a criança passa no desenvolvimento da moralidade: a anomia, a heteronomia e a autonomia moral. A anomia (crianças de até cinco, seis anos) caracteriza-se pela não consciência e discernimento do certo ou errado, e nem tampouco atribui sentido à regras e normas.

De acordo com La Taille

Crianças de até cinco, seis anos de idade não seguem regras coletivas. Interessam-se, por exemplo, por bolas de gude, mas antes para satisfazerem seus interesses motores ou suas fantasias simbólicas, e não para participarem de uma atividade coletiva. (LA TAILLE, 1992, p. 49).

Na heteronomia, a criança, aproximadamente até nove, dez anos, percebe a existência de regras, entretanto, o cumprimento dessas está subordinado às ordens do adulto deflagrando assim, uma relação unilateral. Há um interesse em participar de atividades coletivas, porém as regras, apesar de serem consideradas pela criança como sagrada, no momento do jogo, não se hesita em criar uma variável

que lhe permita ser melhor sucedida, e ainda no final assegura de forma tranquila que todos ganharam. Nesse período, surgem também os sentimentos de amor e medo. Isso nos leva à compreender a noção de sagrado, ou seja, o objeto pode inspirar medo e respeito, que impõe certas condutas, como também pode ser objeto de amor e de desejo (LA TAILLE, 1992).

Outro ponto a ressaltar refere-se ao realismo moral como um fenômeno característico da heteronomia. Esse realismo define-se em três características: 1) é bom todo ato que obedecer às regras ou às ordens dos adultos; 2) a interpretação da regra é levada ao pé da letra, ou seja, não se leva em conta o espírito da regra; 3) há a concepção objetiva da responsabilidade; julga-se a consequência dos atos praticados, não levando em conta a sua intencionalidade (PIAGET, 1932/1994).

Posteriormente, com desenvolvimento e a vivência da criança nos mais diversos ambientes sociais, adentra a terceira e última tendência que é a da autonomia. Nas interações sociais, o jogo em específico, em que as regras são apresentadas, a compreensão da criança em relação a sua origem é clara. Ela as concebe como sendo advinda do consenso e acordo mútuo entre os jogadores, existindo a possibilidade de que cada participante seja um legislador em potencial, desde que a sua criação seja submetida à apreciação e concordância de todos.

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