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PARTE I – AS CONSTRUÇÕES TEÓRICO-CONCEITUAIS

2.2. A bacia hidrográfica: fundamentos teórico-conceituais

Este subtítulo almeja refletir sobre as leituras acerca do referencial teórico- conceituais sobre a bacia hidrográfica, compreendida como escala espacial de estudos acadêmicos de diversas áreas de conhecimentos, entre outras, geografia, agronomia, engenharias florestal e ambiental, na saúde pública e geociências (CARVALHO, 2009). No âmbito da Política Nacional de Recursos Hídricos, destaca-se a bacia hidrográfica como a escala territorial adotada para as ações voltadas ao planejamento e gerenciamento dos recursos hídricos.

A compreensão conceitual da bacia hidrográfica com o enfoque físico-funcional da totalidade dos seus componentes e nas suas inter-relações está associada à teoria geral dos sistemas surgida nos Estados Unidos, no final da década de 1920. Essa compreensão ganhou notoriedade no meio acadêmico, como também, passou a ser aplicada em várias áreas da ciência. Fato que, no Brasil, ao longo da segunda metade do século XX, especialmente, entre o final da década de 1960 e início de 1970, o uso da teoria geral dos sistemas ganhou impulso notadamente nos estudos de hidrologia, hidrogeologia e a geomorfologia fluvial (MENDONÇA, 1998; MARINHO, 1999).

Na época, a teoria foi amplamente aplicada nos estudos associado à Teoria dos Modelos e Quantificação. Um exemplo são os estudos que adotam as perspectivas de compreensão da bacia hidrografia como um sistema aberto de equilíbrio dinâmico organizado de tal forma que seus elementos apresentam relações discerníveis uns com os outros e opera, integralmente, como um todo complexo (CHRISTOFOLETTI, 1980).

Corroborando a discussão, Prochnow (1990) compreende a bacia hidrográfica como um conjunto de atributos e elementos do meio físico e antrópico, constituindo paisagens integradas cujos elementos se inter-relacionam de maneira efetiva e inseparável.

Segundo Leal (1993), a integridade da bacia hidrográfica ocorre em cada um dos seus elementos, onde matéria e energia apresentam uma função própria e todos estão estruturados e intrinsecamente inter-relacionados. Nesse sistema, há uma integração processual, interna e externa, por onde circulam matérias sólidas e líquidas fornecidas a partir do fluxo de matéria e energia de um rio ou de uma rede de canais fluviais (CARVALHO, 2009).

Para Rodriguez et. al. (2011) a bacia hidrográfica pode expressar distintas formas de classificação e a caracterizam como uma superfície terrestre drenada por um sistema fluvial contínuo e bem definido; as águas vertem a outro sistema fluvial ou a outros corpos

hídricos; seus limites estão geralmente determinados pelos divisores d‘água principais, segundo o relevo; é um conjunto de terras drenadas por um curso d‘água principal; é um espaço físico-funcional.

A bacia hidrográfica, referindo-se a sua demarcação a partir das curvas de nível, ao ser tecnicamente cartografada adquire o significado de limites separando-a pela topografia e pelo sentido da direção das águas, terrenos ou territórios contíguos e o divisor de águas assume a condição de marco físico de divisão hidrográfica. Tal abordagem provoca inquietações no tocante às formas abstratas das noções da bacia hidrografia. Se, de um lado, articula-se o seu recorte uno, de outro, fragmenta-o em partes ou unidades. Neste caso, o uno é explicado pela integração, separação. Em outros termos, compartimenta-se algo para o estudo do seu todo. Portanto, ao mesmo tempo em que se insinua a unicidade para compreendê-la, há a necessidade de se adotar critérios para separar em partes, subdividir e classificar.

Conforme Hissa (2002), nos recortes e nas delimitações estão contidas a abstração dos objetivos do observador, portanto, as classificações podem, dependendo desse olhar, juntar o que aparentemente mais se assemelha ou reparti-lo em pedaços, adquirindo, assim, o significado que os olhos pretendem lhe fornecer. Afinal, ―[...] é sempre possível designar os entes de modo diferente, dar nomes distintos, tornados igualmente (socialmente) próprios. E os nomes próprios, sabemos, são apropriações do mundo, são invenções de mundo‖ (PORTO- GONÇALVES, 2002, p. 231).

Os limites, perceptíveis ou não, são tecnicamente desenvolvidos para representar uma ordem na natureza. Desse modo, repartir em pedaços, classificando e unindo o que, aparentemente, mais se assemelham, facilita a compreensão no sentido de aproximar-se de seu controle (HISSA, 2002). Contudo, nessa base físico-territorial, há uma multiplicidade de implicações internas e externas, em que os fenômenos originários da dinâmica das relações sociais anulam a compreensão de limites físico-hidrográficos. Desse modo, se, por um lado, a compreensão conceitual da bacia hidrográfica como unidade de planejamento e gerenciamento, parece resolver a questão técnica de delimitação da escala nacional e regional, por outro, no entanto, apresenta clareza insuspeita por criar instâncias institucionais cujo território possui fronteiras políticas não coincidentes com limites hidrográficos (MARINHO; MORETTI, 2013).

Do ponto de vista do gerenciamento dos recursos hídricos, ao criar uma territorialidade que não coincide com a divisão político-administrativa, levantam-se diversas limitações, dificuldades e desafios para a operacionalização dos comitês de bacias

hidrográficas. Por exemplo, embora a Lei federal não dê destaque aos municípios, eles são as ―células políticas‖ de execução das políticas públicas em um sistema o qual os interesses estaduais não são sempre convergentes (ABERS; JORGE, 2005; MAGALHÃES JÚNIOR, 2007).

Sob outra ótica, Leal (2012) reconhece que delimitar a área dos comitês de bacias hidrográficas interestaduais é desafio, pois, nessa delimitação, há necessidade da complementação e sobreposição de informações que em geral não possuem as mesmas territorialidades definidos para fins de gestão da água e atuação do Comitê. Nesse caso, pode ser especificada a base de dados nacionais, socioeconômicos, censitários e de infraestrutura disponibilizados por municípios, estados ou federação. Nota-se que não são obedecidos os limites técnicos cartográficos de bacias hidrográficas.

Na prática, isso significa limitações no que diz respeito aos diferentes critérios técnicos de ordenar e classificar as bacias hidrográficas formadas por rios de domínio estaduais e pelos rios de domínio federal. Outra questão, diz respeito às especificidades das bacias hidrográficas brasileiras, como as que ocorrem em localidades da região Nordeste, em que a rede hidrográfica possui muitos rios intermitentes, ou da região Norte, onde há rios em escala amazônica, além daquelas situações especiais como as previstas no Plano Nacional de Recursos Hídricos50 que demandam uma gestão voltada para alocação dos recursos hídricos, muitas vezes, entre bacias hidrográficas diferentes, a título de exemplos nacionais, como acontece no Sistema Canteira, e do Paraíba do Sul (BRASIL, 2006).

Em relação às negociações, tem-se caminhado para alternativas, por exemplo, há casos no nordeste brasileiro em que a dependência de obras hídricas reforça o surgimento das associações de usuários que se reúnem em comitês ou as associações visando uma perspectiva de gestão, desejada há séculos, mais igualitária de acesso aos recursos dos recursos hídricos (PACGNOCCHESCHI, 2003; TORRES, 2007).

No caso dos rios amazônicos e pantaneiros assume relevância organizar, articular e instalar comitês em escala de bacias hidrográficas com características como: distintas realidades das populações residentes e as distâncias continentais entre as localidades na mesma bacia apresentam um universo de percepção dos conflitos que, muitas vezes, está muito distante das necessidades básicas e reais dos povos que vivem nesses territórios.

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São identificadas como as Situações Especiais de Planejamento (SEP) as áreas suscetíveis à desertificação, o Pantanal, a transposição do sistema Cantareira, a operação do sistema hidráulico do Rio Paraíba do Sul, a bacia da Lagoa Mirim (BRASIL, 2006).

Há estudos que revelam outra noção do território com vínculo cultural e da construção do conhecimento pré-existente das populações residentes, entre os quais os povos indígenas e as comunidades tradicionais51 são muito mais conectados, no sentido do entendimento de seu espaço próximo, incluindo trechos de rios.

Conforme analisado por Magalhães Júnior (2007), em muitos casos, a bacia hidrográfica não possui a identidade sociológica, administrativa ou política e, geralmente, não traz de visão global, como apregoado na noção de espaço funcional de políticas e plano de gerenciamento de recursos hídricos.

Outra perspectiva refere-se aos conflitos como, por exemplo, no uso da base cartográfica das bacias hidrográficas e a disponibilidade de dados nacionais52

. Na prática aplicada de métodos de sobreposição de dados, as análises cartesianas ficam fragilizadas, como, por exemplo, ao observar localidades onde há obras de engenharia como os açudes, cisternas e reservatórios para geração de energia elétrica e abastecimento público urbano, bem como as situações especiais das reversões e de transposições de bacias. Tais fatos têm revelado outra lógica de percepção territorial, e a escala da bacia hidrográfica apresenta limitações para integrar as formas de associações de usuários.

De modo geral, considerando essa multiplicidade das realidades brasileira, a bacia hidrográfica pode revelar-se com um conceito abstrato e distante, pois comporta limitações técnicas e fragilidades práticas. Nesses casos, tais questões não podem sobrepor-se aos aspectos que envolvam situações de crescente pressão de usos das águas, com tendência de privar o seu acesso como elementos vital, social e comum dos sujeitos que possuem vínculos histórico-culturais na construção desses territórios. Nesse sentido, na construção das políticas públicas de recursos hídricos, observa-se que a racionalização dos limites e controles nem sempre são os mais justos do ponto de vista econômico e social, ou, ainda, coerente ambientalmente (IORIS, 2009, 2013).

Outro obstáculo em relação às atuais políticas públicas de gestão dos recursos hídricos está associado à duplicidade de domínio (União e Estados) que incluem na bacia

51 Aspectos observados nos projetos de pesquisa realizados pelo grupo de pesquisa do Laboratório de Gestão de

Recursos Hídricos e Desenvolvimento Regional – LabGest da Universidade do Espirito Santo, desde o ano de 2008, o grupo formado por docentes e acadêmicos do Departamento de Engenharia Ambiental e do Curso de Geografia da UFES desenvolve projetos de pesquisas visando desenvolver metodologias em suporte ao fortalecimento da gestão das águas, em específico, do rio Doce. Disponível em: <http://www.labgest.com.br> Acesso em: 22 jun. 2014.

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No Brasil, em geral os dados cartográficos disponíveis são apresentados em escalas de 1: 50.000 e 1: 100.000. Isso resulta num alto custo para trabalhar com imagens de alta resolução e, em termos, dificulta o detalhamento de dados para os estudos (CARVALHO, 2009).

hidrográfica as divisões político-administrativas territoriais de no mínimo dois estados e de vários municípios. Conforme a análise de Gontijo Jr e Trigo (2013), tais situações são desafios ao modelo de gestão integrada por bacias hidrográficas por incompatibilizar os limites e na prática revelam dissonâncias entre a unicidade da bacia e a fragmentação das ações de gerenciamento, causando, entre outras complicações:

[...] os usos da água em uma bacia são uma variável crítica da gestão e, para que esta seja adequadamente conduzida, torna-se indispensável o compartilhamento dos dados, a pactuação de padrões de qualidade e dos volumes de entrega. No modelo fragmentado de gestão vigente, tanto os pactos quanto a sua efetiva implementação dependem essencialmente da boa vontade dos agentes políticos, que nem sempre se sentem compelidos a aceitar acordos de seus antecessores (GONTIJO JR; TRIGO, 2013, p.11).

Sobre a formação e atuação dos comitês de bacias hidrográficas, Leal (2012) explica que, para definir a área de atuação dos CBH Interestaduais, além da identificação da área drenada por um sistema fluvial, devem ser consideradas:

[...] a análise dos divisores d‘água deve ser complementada com dados e informações sobre as divisas estaduais e municipais e da área de atuação dos Comitês de Bacias Hidrográficas estaduais pré-existentes, influenciando na delimitação da unidade hidrográfica a ser definida como área para o planejamento e gestão por um CBH Interestadual. [...] esse recorte físico-territorial será a unidade hidrográfica para o gerenciamento de recursos hídricos, com variações na sigla, mas comumente chamada de ―bacia hidrográfica‖, embora seus divisores d‘água possam não ser coincidentes com os limites definidos para fins de gestão da água e atuação do Comitê (LEAL, 2012, p. 222).

Se, por meio dessa base físico-territorial da bacia hidrográfica são propostos planos e ações voltadas às políticas públicas ambientais e na delimitação cartográfica da bacia hidrográfica se agrega total e/ou parcialmente, dados e informações fragmentadas, como identificar no conjunto todos os atores sociais diretamente interessados e envolvidos na tomada de decisões?

Por tais razões, podemos entender que adotar tal definição se constitui em um desafio analítico, pois, conforme observa Rodrigues (2007), se a gestão, tal como preconizada pela lei, tem que ser feita na bacia, então, alguns postulados da própria lei não podem ser aplicados sem ressalvas. Por exemplo:

[...] definir-se que os recursos provenientes da cobrança pelo uso da água, em uma determinada bacia hidrográfica, terão que ser investidos na própria bacia é uma determinação arbitrária, pois não há como saber em princípio, se água cobrada nesta bacia provém dela mesma ou se é oriunda de outra bacia. Ainda que seja possível

encontrar essa resposta quando se tratar de águas superficiais, não se pode dizer o mesmo quando se tratar de águas subterrâneas (RODRIGUES, 2007, p. 165).

Na busca de uma orientação, concordamos com a perspectiva de Machado (2013) ao afirmar que há necessidade de compreensão da bacia hidrográfica de uma forma mais complexa, que vá além da abordagem conceitual de sua delimitação física, pois, na gestão, parece razoável considerar que a unicidade territorial da bacia hidrográfica pode não exercer a função integradora prevista na Lei.

Portanto, ao adotar a base física e escala territorial da bacia hidrográfica, algumas restrições acabam sendo impostas principalmente quando envolvem variáveis sociais, econômicas, políticas e culturais (CARVALHO, 2009). Concordando, na interpretação de Ioris (2008) as representações técnicas e as classificações apresentadas em:

[...] mapas, hidrogramas e modelos de computador conseguem capturar apenas momentos, ou fragmentos, de um sistema estruturado, aberto e dinâmico: mesmo os fatores que aparentemente demonstram ser estáticos, como os divisores de água, a rede fluvial e o regime hidrológico, são regularmente transgredidos em razão, por exemplo, de sucessões ecológicas, alterações geomorfológicas, migrações demográficas ou transferência e represamento de água (IORIS, 2008, p. 63).

Desse modo, a bacia hidrográfica compreende dimensões do espaço geográfico que incluem distinções da soma das ações metabólica entre sociedade e natureza, incorporando diferenças e conflitos entre grupos sociais, uma vez que o acesso à natureza e os impactos da sua transformação são sentidos de forma diferenciada pelos diferentes grupos sociais (IORIS, 2008).

Essa leitura sugere o uso e a aplicação dos conceitos da bacia hidrográfica como um espaço social complexo e em permanente transformação, entendendo-se como unidade física em que a atuação dos comitês terá suas ações refletidas no território. Por isso, faz-se necessário analisar as reformas institucionais e a construção das políticas de gestão dos recursos hídricos compreendendo que, apoiado em Raffestin (1993), somente se exerce o poder sobre o território quanto existe algo que chame a atenção ou desperte o interesse e passe a ser fonte de recursos para o grupo social que sobre ele exerce poder.

A bacia hidrográfica pode, portanto, expressar nas delimitações cartográficas informações locais ou regionais vinculadas às políticas públicas e relações de controle e poder externamente definidas, por exemplo, como a criação e instalação dos colegiados gestores de recursos hídricos. Visando fundamentar esse enfoque, optou-se no resgate histórico do

processo de institucionalização53 e atuação dos comitês de bacia hidrográfica, apresentado a seguir.