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2. HIV/AIDS, SOROPOSITIVIDADE E EXPERIÊNCIAS

2.8 A biopolítica do cuidado

O cuidado se dá mediante a inserção dos sujeitos a um conjunto de práticas clínicas e institucionais e, nesse sentido, refere-se a práticas de governamentalidade. Uma problematização nesse sentido nos leva a analisar a vida, e o cuidado, pela perspectiva do poder que cuida. Foucault (2005) discorre a respeito da teoria clássica da soberania, que se refere ao direito de vida e ao direito de morte. O poder soberano, o de causar a morte ou deixar viver, para o autor, introduz uma assimetria de poder que pende mais para o lado da morte. Ou seja, o direito à vida se exerce quando ao soberano é legítimo matar para guardar seus próprios interesses. A partir do século XIX17, vê-se surgir uma transformação do direito

político que consiste na complementação do velho direito de soberania: o poder de “fazer” viver ou de “deixar” morrer.

17 No capítulo V da História da Sexualidade (Direto de morte e poder sobre a vida), Michel Foucault discorre a

respeito das transformações ocorridas na época clássica que originaram um novo regime de poder. O poder soberano caracteriza-se pela capacidade de apreensão das coisas: do tempo, dos corpos e da vida. Na época clássica, desenvolveu-se novos mecanismos de poder no Ocidente, para além do confisco, cuja função seria de incitação, controle, vigilância e organização das forças. Deste modo, o direito de morte se deslocaria nas exigências de um poder de gestão da vida. A morte, segundo Foucault, fundamentava-se no direito do corpo de garantir a própria vida. Para ver mais, Foucault, 1999.

Nessa nova configuração, cuja genealogia é explicada por Foucault no volume 1 da

História da Sexualidade (A Vontade de Saber), a vida é problematizada no campo da análise

do poder político. A transformação se dá, então, nos mecanismos, técnicas e tecnologias de poder, que por sua vez seriam centradas em dois eixos: uma no corpo individual, através de técnicas cujo objetivo seria a criação de um tipo de tecnologia disciplinar do trabalho, menos onerosa, mediante um sistema de vigilância e docilização dos corpos. A outra seria voltada ao homem-espécie, ou seja, ao surgimento de um corpo em massa. Segundo Agamben,

O „limiar da modernidade biológica‟ de uma sociedade situa-se no ponto em que a espécie e o indivíduo enquanto simples corpo vivente tornam-se a aposta que está em jogo nas suas estratégias políticas (AGAMBEN, 2010)

Foi no século XVIII que se observou o surgimento de uma tecnologia de poder que segundo o autor embute, integra e modifica a técnica disciplinar direcionada não somente ao homem-corpo, mas ao homem-espécie. Segundo Foucault,

... A disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente, punidos. (FOUCAULT, 1999)

Essa nova tecnologia disciplinar é direcionada à multiplicidade dos homens que, segundo o autor, constituem “uma massa global, afetada por processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc”. Ou seja, Foucault está tratando sobre duas tomadas de poder: uma individualizante e outra massificante. Para o autor, o poder soberano de causar a morte ou deixar viver passou a ser substituído, então, pelo de causar a vida ou devolver a morte. É o que ele denomina biopolítica da espécie humana, ou seja, o desenvolvimento de um poder cuja função é investir sobre a vida.

A biopolítica se caracteriza como um modo de poder cuja função seria investir sobre a vida de modo verticalizado, de cima para baixo. A técnica do poder soberano, agora, refere-se à administração dos corpos, à regulação das populações. Discute-se, então, a entrada da vida na história, ou seja, os fenômenos próprios à vida na ordem do saber e do poder no campo das técnicas políticas. Conforme o autor,

Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no político; o fato de viver não é mais esse sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos, no casado da morte e de sua fatalidade: cai, em parte, no campo do controle do saber e de intervenção do poder. (FOUCAULT, 1999)

Deste modo, emerge uma tecnologia do poder sobre a população, contínua e científica, que se trata do poder de “fazer viver”. E eis que agora aparece um poder que eu chamaria de regulamentação e que consiste, ao contrário, em fazer viver e em deixar morrer”. Para Foucault a biopolítica se apresenta nos seguintes termos:

Trata-se de um conjunto de processos como a proporção dos nascimentos e dos óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de uma população, etc. são esses processos de natalidade, de mortalidade, de longevidade que, justamente na segunda metade do século XVIII, juntamente com uma poção de problemas econômicos e políticos constituíram, acho eu, os primeiros objetos de saber e os primeiros alvos de controle dessa biopolítica. (FOUCAULT, 1999)

Nesse sentido, as epidemias possuem um lugar central na teoria da biopolítica foucaultiana. O problema da morte permanente que afeta uma população, da subtração das forças, daquilo que pode ter um custo, sobretudo para a racionalidade econômica – o tempo de trabalho ou o que pode custar sobre uma população. Aquilo que afeta não somente o corpo- máquina, mas o corpo-espécie. Não à toa, a medicina, assim como as instituições de assistência e as cidades, são campos, por excelência, de intervenção da biopolítica. Faz-se necessário cuidar, tratar, extirpar o que afeta uma população. O problema se coloca nos seguintes termos:

A biopolítica lida com a população, e a população como problema político, como problema a um só tempo cientifico e político, como problema biológico e como problema de poder... (FOUCAULT, 1999)

Dentro de uma perspectiva histórica, se trata do biológico que se reflete no político. A vida entra no campo do saber e de intervenção do poder. O poder encarregado sobre a vida precisa fazer uso de mecanismos de regulação e correção tanto no nível individual (corpo) quanto no coletivo (população). A disciplina viria a se constituir em um mecanismo de poder sobre o corpo individual e, nesse sentido, a norma viria a se constituir no desenvolvimento do biopoder, assim como mecanismos reguladores, amparados pelo Estado, ao nível das populações. Tratamos, assim, de duas questões: a disciplina do corpo e a regulação das populações; a vigilância, controle e ordenação dos corpos, e a medição e intervenção das populações, ou, em outros termos, dois mecanismos: um disciplinar e outro regulamentador. A norma viria a ter função regulatória, cada vez mais integrado com as instituições judiciárias. Para o autor,

Pode-se dizer que o elemento que vai circular entre o disciplinar e o regulamentador, que vai se aplicar, da mesma forma, ao corpo e à população, que permite a um só tempo controlar a ordem disciplinar do corpo e os acontecimentos aleatórios de uma multiplicidade biológica, esse elemento que circula entre um e outro é a norma (FOUCAULT, 1999)

A norma ocuparia um lugar de articulação entre os dois mecanismos de poder que atuam tanto no nível individual quanto no coletivo, dentro da perspectiva de uma biopolítica exercida pelo biopoder; “uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida” (Foucault, 1999). Assim, a norma articularia as dimensões individuais e coletivas no cuidado e na experiência da doença, na medida em que essas experiências ocorrem mediante o exercício de um poder cuidador sobre as condutas humanas. As tecnologias de poder possuem efeitos individualizantes, uma vez que o poder em si se trata da regulação dos fluxos e da normalização de uma população, estabelecendo um limite entre o saudável e o patológico, o normal e o anormal. As tecnologias de governo, por meio da produção de normas, produzem indivíduos e populações disciplinadas (e acrescentaria disciplináveis) e, nesse sentido, o cuidado se relaciona a regimes de governamentalidade que produzem condutas e, também, experiências.