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7. APRENDENDO A CONVIVER COM O HIV – SOROPOSITIVIDADES

7.1 A Construção Social da Realidade com HIV

A realidade construída a partir do diagnóstico positivo constitui-se em modos de experiências, aprendizado e convivência com o vírus: estamos tratando de uma realidade

26 Esses argumentos foram levantados por Fassin ao analisar o caso da aids na África do Sul. Mesmo também se

tratando de um país em desenvolvimento, como o Brasil, a aids é um grave problema nacional para aquele país africano e muitos aspectos da doença e da epidemia tratada pelo autor não apresenta muita semelhança com o problema da aids no Brasil atualmente; entretanto, seus argumentos sobre a materialidade da doença nos ajuda a compreender os aspectos concretos que, salvo as diferenças entre os dois contextos, interferem no modo como os indivíduos lidam com a aids. Para ver mais, Fassin, 2007.

cotidiana que, uma vez rompida, é reconstruída com o HIV presente. E, ao trabalharmos com a ideia de realidade, no sentido de se entender a realidade que se rompe a partir da infecção, o cotidiano se apresenta como campo privilegiado de análise. E, nesse sentido, segundo Berger e Luckmann (2013), nosso material de análise se refere ao conhecimento que dirige a conduta das pessoas na vida diária. Ao falarmos sobre cotidiano, em termos sociológicos, estamos tratando segundo a noção definida pelos autores nos seguintes termos:

A vida cotidiana apresenta-se como uma realidade interpretada pelos homens e subjetivamente dotada de sentido para eles na medida em que forma um mundo coerente. (BERGER E LUCKMANN, 2013)

Dentro de uma perspectiva fenomenológica, ou seja, a mesma trabalhada pelos autores, caberia à Sociologia se debruçar sobre os fundamentos do conhecimento da vida cotidiana, as objetivações dos processos subjetivos em que são construídos um mundo intersubjetivo do senso comum (2013). Mas do que se trata essa intersubjetividade?

A intersubjetividade, segundo Alves e Rabelo (1999), é um dos elementos que constituem as experiências dos sujeitos, junto com a corporeidade. Segundo Schutz (2012), a intersubjetividade se trata da “categoria ontológica fundamental da existência humana”, condição para qualquer experiência humana imediata no mundo da vida, ou seja, no mundo das relações sociais. Dentro dessa perspectiva, a conduta cotidiana no mundo da vida toma como base que os indivíduos agem conforme o estoque de conhecimento, ou seja, os meios através dos quais os indivíduos orientam suas condutas em situações diferentes e adquiridas ao longo do percurso biográfico. Os indivíduos partilham de um mundo familiar com outros e agem neste mundo a partir de uma atitude natural, na qual se considera que os objetos existem independentemente da vontade própria. A atitude natural refere-se a postura adotada pelos sujeitos diante dos fatos objetivos, que se referem às condições para a ação, ou seja, tem um sentido estritamente pragmático e utilitarista. Assim, a confirmação do diagnóstico de uma doença incurável representa o rompimento das pressuposições que orientam as condutas dos sujeitos no cotidiano. Em parte, devido às representações sobre a aids que, mesmo em contexto de terapia antirretroviral, associa a infecção à mortalidade, sobretudo para os entrevistados mais jovens:

Que a visão que a gente tem quando a gente não tem conhecimento são visões erradas, né, visão totalmente diferente, né, visão preconceituosa em questão. (Carlos, 18 anos)

Passa tudo dentro da sua cabeça, você acha que você vai morrer, por mais que você tenha informações, hoje eu falo que HIV é muito mais uma doença psicológica do que física. Que ela mexe com sua estrutura emocional. Você acha que você nunca mais vai encontrar

ninguém, que ninguém vai te querer, que você vai ter que viver isolado do mundo e tal. Então, aquilo tudo naquele dia foi isso que vinha na minha cabeça. (Dante, 26 anos)

As experiências, constituídas em processos de subjetivação, se conformam basicamente por meio de dois elementos: primeiramente pelo contato direto, ou seja, a partir do diagnóstico positivo para HIV. Nesse sentido, o conhecimento prévio e as representações sobre a aids também são elementos da experiência. Em segundo lugar, as experiências com HIV tomam forma quando os sujeitos se inserem nas políticas de cuidado27.

A realidade da vida cotidiana demanda um ordenamento que faz uso da linguagem para formar um mundo coerente, e atribui sentido na medida em que os indivíduos conseguem interpretar essa realidade. O processo de aprendizado se torna objetivo uma vez que se apreende os novos elementos no plano discursivo. É a linguagem que vai dar coerência à realidade construída pelos indivíduos. É o aprendizado de nomes de origem biomédica, de novos medicamentos e novos termos que os sujeitos passam a organizar a realidade e a enxergar a si próprios. E, também, o apoio buscado no momento da ruptura provocada pelo diagnóstico positivo se constitui no elemento relacional que conduz os sujeitos à construção dessa realidade. O diferencial, sobretudo para o grupo etário mais jovem, é que o interlocutor desse processo não é, necessariamente, o profissional de medicina que vai acompanhar o tratamento. O interlocutor, tanto individual (como no caso de Dante) quanto coletivo (como no caso de Eduardo) vai ser aquele, ou aqueles, que compartilham das mesmas experiências que os sujeitos, e que pelo contato direto possuem a autoridade da experiência a respeito das questões que o HIV traz para os sujeitos.

... Então pra mim o J., naquele momento, por mais que eu contei pra minha mãe, que ela tava me dando toda uma estrutura, ela super me acompanhando, mas naquele momento era só o J. que me entendia. Então o J. começou a ser central na minha vida, porque era só ele que sabia das minhas dores, das minhas ansiedades, minhas sensações, por ele ter vivido, né? Então tudo que eu tinha que falar, todos os meus medos eu contava era pra ele. (Dante, 26 anos)

É nesse sentido que concebemos a soropositividade como um fenômeno construído de modo relacional, cujo princípio básico está amparado na solidariedade (Terto Jr., 1996b). Os efeitos dessa dinâmica serão analisados adiante.