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1 INTRODUÇÃO,

1.3 A BRINCADEIRA COMO PONTO DE ENCONTRO TEÓRICO

Estes avanços conceituais das duas disciplinas permitem novo entendimento acerca da relação entre crianças, sociedade, cognição e cultura. A questão que norteia os novos trabalhos deixa de lado, desta forma, a preocupação em como a cultura e a estrutura social são “transmitidas para” e “compreendida pelas” novas gerações, aprofundando-se para entender como a criança constrói significados para o mundo social que integra e ajuda a construir o sistema simbólico de sua cultura e as estruturas, relações e papéis sociais de sua sociedade.

Segundo Lopes da Silva (2002) somente após este longo processo, a partir da década de 80 e com maior incidência na segunda metade dos anos 90, é que esta nova área de investigação se consolida, com a criação de centros de pesquisa, novas disciplinas nos currículos universitários, seminários e linhas de financiamento de pesquisa.

O questionamento que se constrói caminha no sentido da apreensão da infância como um momento importante em si mesmo e a criança como um ser social tanto quanto os adultos, tendo assim capacidade de construção e reconstrução de conhecimentos e sentidos, visões diferenciadas e válidas da realidade social e do mundo dos adultos. Aprendizado e produção de conhecimento caminham lado a lado. As crianças são socializadas e socializam a si, às outras crianças e também aos adultos.

Lopes da Silva (2002), continuando seu raciocínio, aponta a situação dos povos indígenas brasileiros como “um cenário particularmente interessante e invulgar” para a abordagem seguindo os princípios deste novo paradigma, na medida em que são povos que “lutam por re-afirmar suas referências de origem ao mesmo tempo em que sempre as recriam” (p. 15) atravessados pelos desafios impostos pelo processo de globalização, do qual não estão alheios e pelos crescentes “desafios, paradoxos e ambigüidades no relacionamento entre o universo infantil e a sociedade adulta” (p. 15).

Conforme Nunes (2002a), em seu trabalho de reflexão acerca da forma de manifestação da presença das crianças em textos produzidos por diversos pesquisadores considerados referências no estudo antropológico de sociedades indígenas brasileiras, se as diversas monografias não se detiveram diretamente no estudo do universo infantil (conforme exposto acima), ao menos dois pontos diferenciais deste contexto são ressaltados:

a) A profunda liberdade em que as crianças são deixadas em sua experiência cotidiana, desenvolvendo suas modalidades de construção de saberes (em contraposição ao controle na construção de conhecimentos na sociedade ocidental);

b) A raridade de momentos de punição física em sociedades ameríndias, ao lado da raridade de reprovações por performances inadequadas comparadas com o desempenho esperado de um adulto.

Assim, segundo Nunes (2002a) a diferença mais marcante da vivência da infância nas sociedades indígenas brasileiras, se encontraria na profunda liberdade com que as crianças são deixadas em sua experiência cotidiana, tendo acesso aos espaços da vida adulta, atividades domésticas, atividades produtivas, rituais, campanhas de caça e /ou migratórias, em contraponto aos esquemas rigorosos de controle na construção do saber nas sociedades ocidentais e na separação destas do “mundo dos adultos” (atividades produtivas, atividades domésticas, rituais, locais exclusivos, etc).

Paralelo a isto, os adultos contam com mais tempo disponível no decorrer de suas diversas atividades diárias, com ritmo de vida que permite a tolerância com a experimentação e com a ludicidade da forma como a criança se envolve mesmo em atividades produtivas e domésticas, aprendendo brincando com instrumentos reais em atividades reais.

Esta caracterização nos interessa particularmente, já que apresenta um amplo espaço de experimentação e apreensão do mundo de forma lúdica pela criança, em que recebe e reconstrói conhecimentos e significados sociais. Neste processo, ao mesmo tempo em que ocorre o desenvolvimento de sua capacidade cognitiva, suas

referências culturais são atualizadas e um entendimento sobre o mundo dos adultos é expresso.

Se o papel da brincadeira e o jogo no desenvolvimento humano já é ponto pacífico teoricamente (CHATEAU, 1987), pensamos que esta seja uma porta de entrada interessante também para a compreensão de crianças de etnias diferentes em seus próprios termos. A criança e a infância indígena poderiam ser mais bem compreendidas, então, através da pesquisa sobre suas brincadeiras e atividades lúdicas – sua cultura lúdica (BROUGÈRE, 1998; 2000).

Essas são situações em que a recepção e a reconstrução de conhecimentos e significados sociais ocorrem nas atividades cotidianas, na sua relação com as atividades e espaços dos adultos e na sua relação com as outras crianças, em um processo no qual a criança “socializa-se”, atualizando suas referências culturais frente à sua realidade e construindo um discurso sobre o mundo dos adultos.

A brincadeira, assim, pode ser considerada como uma atividade molar, “um comportamento (...) com movimento e tensão próprios percebido pelo sujeito como tendo significado e intenção” (BRONFRENBRENNER, 1996, pg 58), no sentido em que apontam para a possibilidade de intervenção da criança em seu meio ambiente, demonstrando também como ela o percebe: sua visão de si, do outro e do mundo (GOLDNER, YUNES E FREITAS, 2005)

Também para Bichara (2002), a brincadeira seria um elemento interessante para a “compreensão do modo como crianças apreendem e relacionam os conteúdos à realidade vivenciada” (p. 141). Citando Moraes e Carvalho, esta autora defende que, além das relações freqüentemente apontadas entre o brincar e a aquisição de habilidades, deveríamos enfatizar a brincadeira como oportunidade para a interação

social. No brincar a criança estaria “construindo e vivendo a realidade (social)”, ou

seja, recebendo, interpretando e atualizando o campo de significados de seu contexto sócio-cultural. Nas palavras de Moraes e Carvalho, referindo-se especialmente às brincadeiras de faz-de-conta,

[...] a criança está mudando o significado das coisas socialmente adquiridas, e deve fazê-lo através de códigos e significados também socialmente adquiridos; ao mesmo tempo, está criando um novo significado, que pode passar a ser compartilhado no grupo do brinquedo, tornando-se um novo elemento da cultura e da história do grupo (MORAES E CARVALHO, apud BICHARA, 2003).

Desta forma, mais do que um mecanismo psicológico, brincar seria uma “atividade dotada de significação social” que “acima de seu substrato natural, biológico (...) só se desenvolve e tem sentido no contexto das interações simbólicas, da cultura (BROUGÈRE, 1998), ainda que partamos do pressuposto do humano como um ser ‘biologicamente cultural’”(BUSSAB E RIBEIRO, 1998).

Poderíamos entender que “através do jogo a criança faz a experiência do processo cultural, da interação simbólica em toda sua complexidade”, habilitando-se a ser um sujeito competente e ativo. Neste processo, “assimilam ativamente” (CONTI E SPERB, 2001) as mensagens emitidas pelos adultos, sendo, portanto importantes atores no processo de dinâmica de seu contexto sócio-cultural.

A viabilidade e riqueza desta abordagem já aparecem em trabalhos tanto de referenciais da antropologia como da psicologia, que propiciam o diálogo entre as duas áreas. Como exemplos, dentre outros, temos os trabalhos de Gosso (2004) com os Parakanã do Pará, Bichara (2002) com os Xocó de Sergipe, Cohn (2000) com os Xikrin do Pará, Nunes (1999) com os A’uwe Xavante do Brasil Central e Ferreira (2002) com os Guarani, entre outros.

Chamamos a atenção especial para o caso dos Guarani, uma das duas etnias presentes no estado do Espírito Santo. O foco nas crianças e em suas brincadeiras já foi apontado por Ferreira (2002) como importante fonte para uma nova leitura desta realidade sócio-cultural.

Reconhecendo a autonomia do universo infantil (por exemplo, desta cultura lúdica) dentro do quadro da antropologia da criança, esta autora apresenta, em pequeno ensaio, três jogos de representação de crianças guaranis de dois a doze anos. Em sua análise, Ferreira (2002) defende que

As encenações das crianças revelam nuances da cosmologia e da situação histórica do povo Guarani [...]. As crianças põem em evidência a reinvenção da concepção de mundo guarani em reservas indígenas onde, atualmente, a terra é improdutividade, a caça inexistente e o poder e sabedoria dos profetas karaí posto em xeque por missionários e funcionários públicos [...] (FERREIRA, 2002).

Nós mesmos tivemos oportunidade de verificar (ainda que superficialmente), em pesquisa recente, a possibilidade de trabalhar com tal autonomia do universo infantil com crianças de uma aldeia guarani em Aracruz – ES. Neste caso, através da produção de desenhos sobre a temática da “luta pela terra”, crianças guarani de 9 a 12 anos de idade demonstraram não só uma maneira própria de compreender o delicado processo de disputa territorial que seu povo empreende neste momento, mas também uma interessante elaboração sobre o “mundo guarani”, relativo ao “modo de ser” (teko) e a base territorial necessária para a concretização deste ideal (tekohá).

Para nós, estas crianças, à sua maneira, demonstraram ser capazes de produzir e expressar um ponto de vista relevante sobre a atual situação de sua etnia e, ao mesmo tempo, elaboraram uma concepção sobre o que significa ser guarani neste contexto. Contrariam-se idéias de uma não competência cognitiva infantil para “temas adultos” bem como um possível conflito entre identidades disponíveis, provavelmente apoiadas em visões já superadas acerca dos conceitos de cultura e cognição.

A partir dos resultados – que podem ser vistos nas pesquisas já realizadas citadas acima – podemos aprofundar os conhecimentos acerca da infância em contexto sócio-cultural diverso, sobre o processo de atuação da criança como sujeito ativo na construção e reconstrução de significados culturais e relações sociais. Abre-se espaço, também, para a maior interação tanto entre campos da própria psicologia (psicologia social, psicologia do desenvolvimento) como entre a psicologia e a antropologia cultural, campos do saber nem sempre tão próximos.

Acreditamos, também, na relevância social deste campo de pesquisa, já que seus resultados podem ser interessantes para diversas áreas que lidam diretamente com a realidade destas crianças, principalmente dentro da especificidade das relações

entre cada grupo indígena e as diversas agências de contato que atuam em relação à criança neste contexto (agentes de saúde, agentes educacionais, agentes religiosos, agentes de mídia, pesquisadores, turistas, curiosos, a cidade envolvente, etc...). Esta abordagem pode propiciar, enfim, o encontro de um discurso social válido, coerente e indispensável, porém muitas vezes ignorado: o discurso das próprias crianças sobre si e sua realidade social.