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2 TEORIAS GERAIS SOBRE O BRINCAR

2.3 O BRINCAR NO CAMPO DE CONHECIMENTO DA PSICOLOGIA

2.3.1 A Visão Psicanalítica e o Brincar

A psicanálise irá desenvolver seu pensamento sobre o jogo e o brincar durante a elaboração de seu próprio corpo teórico. Para Mrech (1998) a psicanálise, logo de início, irá se contrapor à vinculação automática entre a criança, o brinquedo e o brincar, acusando tais idéias como resultado de formas preconcebidas de abordagem do tema do brincar.

Na teoria psicanalítica o jogo será compreendido como uma das formas possíveis de revelação dos conflitos interiores da criança (em paralelo com a forma que os adultos os revelariam falando), propondo a distinção entre a realidade psíquica (simbolizações, imagens) e a realidade concreta (brinquedos e jogos) na compreensão do brincar (MRECH, 1998, p.164).

De acordo com Santa Roza (1993), ainda que não proponha uma teoria própria sobre o brincar, ao abordar o jogo como objeto da reflexão psicanalítica, Sigmund

Freud estabelecerá um elo de continuidade entre os jogos infantis, os devaneios da vida adulta e a criação literária e poética, já que no brincar estaria o germe da atividade imaginativa.

Em “Além do princípio do prazer”, Freud (1996) revisará as pesquisas sobre o jogo, criticando-as por ignorarem o princípio do prazer como motivo primeiro do brincar. A partir de então inicia sua análise sobre o brincar de seu neto, um menino de pouco mais de um ano de idade. A brincadeira em questão é o chamado “fort-da”, um jogo de ocultação em que a criança, repetidas vezes, faz um objeto sumir e aparecer.

Este jogo é tomando como ponto de partida para elaboração da teoria freudiana acerca da repetição compulsiva não só de situações prazerosas, mas também daquelas em que não há prazer (portanto, que estão além deste princípio). A partir daí, Freud elabora a idéia do embate entre as duas principais forças na psique – Tânatos e Eros.

Melanie Klein, por sua vez, foi a principal responsável pela sistematização da chamada psicanálise de crianças na qual o brincar é visto como expressão simbólica de conflitos e utilizado como material de interpretação, já que no jogo a criança estaria expressando suas fantasias inconscientes, em substituição às associações livres do adulto (SANTA ROZA, 1993).

Para Klein, ao brincar a criança estaria “colocando em jogo” diversas emoções como ódio, inveja, agressividade, sexualidade. Os seus brinquedos e jogos são percebidos, então, como processos simbólicos, com significações próprias para cada criança, em geral apresentando conteúdos sexuais (MRECH, 1998, p. 166).

Ampliando a forma de percepção do brincar, Winnicott (1975) propõe a própria psicoterapia como brincadeira, dizendo que “a psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas”. Com isso, coloca o brincar como a base da vida saudável biológica, psíquica e socialmente, facilitando o crescimento, conduzindo ao relacionamento grupal e mesmo tornando-se uma forma de comunicação, inclusive na psicoterapia.

Desta forma, a psicanálise de Winnicott se afasta das proposições que ligam o brincar à atividade masturbatória ou dos estudos da brincadeira apenas como um instrumento na psicanálise infantil, como em Melanie Klein. Sua proposta é o estudo do brincar em si mesmo, na medida em que a própria psicanálise passa a ser vista como “forma altamente especializada do brincar, a serviço da comunicação consigo mesmo e com os outros” (WINNICOTT, 1975).

É a partir da proposição do conceito de fenômeno transicional que o brincar passa a ser pensado. Assim, postula-se um lugar para a atividade lúdica, que não se situa nem no intrapsíquico, nem no mundo externo. Este é o fenômeno transicional: um espaço potencial entre a mãe e a criança, ou seja, entre o mundo interno e a realidade objetiva. É neste espaço que a criança inicia o uso diferenciado de algum objeto – o objeto transicional: um cobertor, um carrinho, uma boneca, uma fralda (WNNICOTT, 1975, p. 71).

Neste quadro teórico, o caminho de desenvolvimento se dá a partir do fenômeno transicional para o brincar, tornando-se em seguida o brincar conjunto (com outro) para, enfim, o fenômeno transicional se espalhar por todo o território entre a realidade psíquica interna e o mundo externo, a saber, o campo cultural. (WINNICOTT, 1975, p. 72).

Teríamos aqui a origem das operações simbólicas, a partir dos jogos de ocultação, como o fort-da estudado por Freud, que já preconizam a utilização de pares de opostos (fora – aqui / presença - ausência) que baseiam uma estrutura elementar de significação, dando campo para a função simbólica.

Temos, então, um gancho para uma nova perspectiva. A abordagem lacaniana trará novas idéias para a visão psicanalítica do jogo, a partir do conceito de gozo, que se articula com a visão de Freud do “além do princípio do prazer”. Quando a criança brinca, o faz a partir de estruturas de pensar e de saber, que se repetirão como uma cadeia de gozo, que são o real motivo do brincar que se repete constantemente (MRECH, 1998, p. 168).

Após as propostas de Lacan frente à teoria psicanalítica freudiana, e tendo em vista o desdobramento das idéias de Winnicott, o brincar infantil será compreendido também através de sua articulação com a verbalização, como uma forma especial de linguagem. Ou seja, o brincar passa a ser visto pelas teorias psicanalíticas como

prática significante (SANTA ROZA, 1993).

A partir deste conceito, Lacan lembrará que é exatamente o “real” da criança o que as teorias do desenvolvimento não conseguirão apreender, na medida em que estas teorias são constructos de linguagem e da fala (da psicologia sobre a criança). Ora, segundo Lacan, por definição sempre há na linguagem algo que vaza, que não pode ser atingido e que permanecerá assim. Este “algo” só poderá ser atingido aproximadamente, através de símbolos, imagens e significações culturais – nas

práticas significantes.

Em nosso caso, este “algo” é a própria criança ao brincar, livre dos preconceitos teóricos e dos estereótipos dos adultos sobre as crianças, identificando esta região como o local de existência do registro do real, que nunca seria apreendido pelas psicologias do desenvolvimento. A brincadeira que se repete, encarada como prática significante, seria compreensível como produto daquelas cadeias de gozo específicas de cada criança e não das etapas de desenvolvimento (MRECH, 1998, p. 170)

Encarar o brincar sobre a ótica de etapas de desenvolvimento ou através de tipos de brincadeiras seria um reducionismo do fenômeno, uma tentativa de encaixar casos específicos e concretos (o brincar de cada criança) em conceitos generalizantes e abstratos (fases do desenvolvimento). Antes, o brincar seria sempre uma categoria nova para cada criança.

Portanto em seu desenvolvimento como corpo teórico e ao pensar o brincar, a psicanálise termina por elaborar uma forte crítica acerca das teorias do desenvolvimento e sua relação com a criança e o lúdico, preconizando o desvelar de seus limites e pré-concepções teóricas que visariam enquadrar a criança e o brincar em fases, terminando por criar impasses teóricos e perdendo o real da criança, do brinquedo e do brincar.